Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXIII)

Pedrógão, 20 de novembro de 2041

O vocábulo “tradição” tem origem no latim traditio, que significa, mais ou menos, “transmissão”. E era função da escola legar às novas gerações o património cultural acumulado. Nesse sentido, faria sentido falar de tradição. Porém, sempre que a tradição agia como obstáculo à reelaboração da cultura profissional dos professores, transmutava-se num sucedâneo: o “tradicionalismo”. 

Aquilino Ribeiro lamentava-se de lhe ter cabido em sorte um professor “tradicionalista”: “Pela minha parte, foi com Dona Letícia (a professora) que aprendi a odiar.” E o mesmo acontecera com a Letinha, na quarta classe em que predominava o “método misto”: metade pelo livro, metade pela palmatória. 

O azar da Letinha era não atinar com as reduções. A professora bem gritava, ameaçava e… nada. A Letinha ora “apanhava bolos”, porque a vírgula tinha ficado fora do lugar, ora porque tinha “ficado para trás”, nas reduções de metros para milímetros. 

A mãe da Letinha era de poucas posses. Os cem mil reis que todos os meses entregava à “professora das explicações” (que era a mesma que aturava a falta de inteligência da Letinha) pagavam a preparação para o exame à escola técnica, não obrigavam a aulas suplementares, que desvendassem as trevas e os mistérios das reduções. 

A Rosinha, por sua vez, era uma aluna aplicada. Sabia a matéria toda “na ponta da unha” e era a encarregada de aplicar os castigos com a palmatória: um bolo por cada falta, três por cada erro e assim por diante. A professora exemplificava o modo e a intensidade com que a Rosinha deveria aquecer as mãos às companheiras. Por incrível que nos pareça, naquele tempo, era mesmo assim. 

Em meados de maio, a professora pegou no papel almaço e dobrou uma margem a três quartos. Era uma prova importante, decisiva. A Letinha saiu-se bem. Fez as reduções todas sem falhar uma vírgula. Foi contemplada com um Muito Bom e um comentário da professora da manhã: 

“Estás a ver como a régua te fez bem?” 

Volvidos alguns anos e uma inútil passagem pela Escola do Magistério Primário (como acontecia antigamente), a Letinha ficou professora. E, também como acontecia antigamente, na primeira colocação, entregaram-lhe a “turma dos repetentes”, que (antigamente) era costume haver em algumas escolas. 

A jovem professora pediu conselhos, mendigou solidariedades. Tudo em vão. A Letinha que se desenrascasse, porque os colegas andavam demasiado preocupados consigo próprios, com o “dar o programa” e atingir a percentagem de aprovações que lhes segurasse o emprego na função pública. Até que, certo dia, um colega mais sensível à dramática situação da Letinha lhe entregou uma régua, ao mesmo tempo que, sábia e solenemente, sentenciava: 

“Ó colega, tome lá. Eu vou para a reforma, a mim já não me faz falta e a si ainda há-de fazer jeito.” 

Subitamente, a Letinha viu-se assaltada pelos fantasmas de antigamente. Via a Rosinha com os olhos encharcados de lágrimas de implorar perdão. Num impulso, atirou com a régua para o fundo da gaveta, a fazer companhia aos cadernos de duas linhas, que eram uns cadernos usados antigamente para escrever letras em carreirinhas. 

Mas a turma dos repetentes continuava apostada em fazer da vida da Letinha um inferno. No fim de uma manhã em que já tinham ficado sem recreio (havia dias assim, antigamente), os alunos levaram a Letinha ao limite da paciência. Um estranho sentimento se apoderou da jovem mestra. Totalmente descontrolada, puxou da gaveta a miraculosa herança. O estrondo do vigoroso atirar da régua para cima da secretária provocou um pesado silêncio na sala de aula.

 

Por: José Pacheco

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