Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXIX)

Moita, 26 de novembro de 2041

O máximo a que um jovem nascido em favela poderia aspirar seria fazer um curso técnico. Para ele escolheram o curso de eletricista. Detestava as aulas, mas decorava conteúdos, que lhe asseguraram o exercício de uma profissão. No trabalho, conseguiu autonomia financeira suficiente para continuar a estudar. E tudo o conduzia para uma vida de engenheiro, quando mudou de rumo, quis ser professor.

Durante a passagem pela escola do magistério, encontrou refúgio na biblioteca, onde teve acesso a obras de pedagogos de que os seus professores não falavam. Para que lhe dessem um diploma, decorou conteúdos dos pedagogos oficiais. Descartada a obrigação, viu-se livre para realizar utopias. 

Foi muito mais alto o preço de outras liberdades. Forçado a cumprir serviço militar, foi colocado num quartel de infantaria, a “carne para canhão” daquela época – havia três frentes de guerra na África. 

Alguém, talvez sabendo das suas andanças de ativista contra a ditadura, decidiu que um professor estrábico deveria ser… atirador. Durante a instrução de tiro, não conseguia acertar nos alvos e, chegado à África, seria um alvo fácil. Que lhe restava fazer? Desertar, como fizeram muitos companheiros de armas? Mas não poderia prever quando tempo o tenebroso regime se manteria, poderia nunca mais voltar ao seu país. 

Decidiu aceitar o desafio de ficar e encontrar algum modo de se libertar daquela situação. Sujeitou-se à decoreba de tipos de armas, de calibres, do alcance das balas, de como matar. Com excelentes desempenhos nos testes, escapou ao africano e fatal destino. Mas foi enorme o preço pago por um pacifista, para alcançar a liberdade.

Após ter participado na revolução, que restituiu a liberdade ao seu país, decidiu fazer um curso universitário. Mais uma vez, gasteou insanas horas a decorar conteúdo. Conseguido o acesso à faculdade, mais uma vez, se livrou da tralha cognitiva, que foi o seu passaporte para a liberdade de aprender. 

Esta é uma história comum a tantas outras, feitas de destinos desviados de rotas desejadas, na sujeição a rituais absurdos como os vestibulares e os enem. 

Para que servia o vestibular, esse tão caro instrumento de darwinismo social? Eram os gastos, em transporte de provas, em taxas, em viagens entre cidades, no pagamento a policiais e seguranças, a professores que elaboram as provas e àqueles que as aplicavam e vigiavam… sem conseguir evitar fraudes. 

O filtro, que impedia muitos jovens de realizar os dons e talentos, não lograva evitar que analfabetos funcionais entrassem na Universidade. Nos idos de vinte, eram cerca de oito por cento os alunos universitários analfabetos, segundo rezavam pesquisas, mas a cifra sria bem maior. 

O vestibular só fazia sentido no contexto de uma escola pública sucateada, que reproduzia desigualdades sociais, inventava cotas compensatórias e limitava o direito de aprender. Para que pudesse ser dispensado, seria necessário que houvesse verdadeira avaliação nas escolas. Porém, ainda havia quem acreditasse na infalibilidade de uma prova e quem confundisse avaliação com classificação.

Se em muitos países não existia vestibular, nem enem, porque se mantinha esse anacronismo? Para alimentar a indústria dos cursinhos? Se o país já produzira mais de um milhão de leis, uma lei a mais não faria grande diferença. Invoquei um eminente educador, quando disse: 

“Precisamos de uma lei proibindo a discriminação na admissão à Universidade”. Se poderíamos dar sinal de maturidade educacional, o que impedia que se publicasse uma lei extinguindo o vestibular? 

 

Por: José Pacheco

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