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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXVII)

Cacela Velha, 17 de dezembro de 2041

No dezembro de 2021, que Natal teriam milhões de brasileiros, que sobreviviam abaixo do limiar da pobreza? No rico Distrito Federal, uma creche comunitária corria risco de fechar as portas, por falta de doações. Sobrevivia, unicamente, de doações da comunidade e cuidava de crianças em situação de risco social.

Num ambiente carinhoso, sessenta crianças ali passavam os seus dias. Ao mesmo tempo que a creche atendia crianças em vulnerabilidade social, auxiliava as famílias, entregando-lhes alimento. A crise econômica provocada pela pandemia comprometera a renda salarial de muitos milhões de brasileiros. Perderam o emprego e a disparada inflacionária dificultava a compra de alimentos básicos.

Muitas pessoas da comunidade, que contribuíam para a manutenção da creche viram-se forçadas a suspender as doações. Mas, embora a instituição tivesse fechado as portas, continuou a oferecer refeições a pessoas da comunidade, que mendigavam um prato de comida. Em 2021, a creche voltou a funcionar presencialmente, oferecendo cinco refeições ao dia: café da manhã, lanchinho com frutas, almoço, lanche da tarde e jantar para as crianças, que voltavam para casa com uma sacolinha de pão, para suprir necessidades básicas.

Escutei protagonistas do drama:

“Um dia, um assistente social veio com a mãe de gêmeos e uma bebê recém-nascida pedindo ajuda e, mesmo sem vagas abertas, nós recebemos os gêmeos e arranjamos um carrinho de gêmeos mesmo, e ela coloca os dois de um lado e a bebê do outro”.

Mãe de cinco filhos, Luciene trabalhava como vendedora nas ruas, para completar o Bolsa-Família, numa luta diária para pagar as contas:

“Para pagar o aluguel, é matando um leão por mês. Para a comida, nós contamos com as doações das igrejas, Casas de Passagem, CREAS, e eu continuo vendendo minhas balinhas, paçocas, picolé, de tudo um pouco.”

Desmaios por fome tornavam-se rotina nas escolas:

“Essa aluna chegou bem atrasada. Ela bateu na porta da sala de aula, eu abri e notei que ela não estava bem, mas não consegui entender o porquê. Passei álcool na mão dela e senti a mão muito gelada, num dia em que não estava frio para justificar.

“Ela sentou e abaixou a cabeça na mesa. Eu estranhei. Perguntei se ela estava bem. Ela fez com a cabeça que estava, mas com aquele olhinho de que não estava. Perguntei se ela tinha comido naquele dia, ela disse que não.

Fui pegar algo para ela, na minha mochila — porque eu sempre levo um biscoitinho ou uma fruta para mim mesma. Mas não deu tempo. Ela desmaiou”.

Era um povo sofrido aquele com quem convivia, nos idos de vinte. A pandemia se aliara uma democracia frágil. E um governo (democraticamente eleito) manifestava-se impotente para deter o flagelo da fome.

Na Brasília do início dos anos vinte, a incompetência coabitava com a corrupção intelectual e moral. Passaria mais de uma década, até chegarmos a um nível de maturidade democrática, que nos permitiria prevenir e evitar dramáticas situações.

Saramago, que exerceu o ofício de escritor com a consciência de um cidadão e a visão ampla de um verdadeiro intelectual, deste modo apontava as raízes do drama:

“Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente, somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto”.

2022 marcaria o princípio do fim de um pesadelo. Nesse ano, se comemorava o centenário do nascimento de Darcy Ribeiro. Em próximas cartas, tentarei descrever-vos acontecimentos desse ano extraordinário.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXVI)

Vila Real de Santo António, 16 de dezembro de 2041

Nos idos de noventa, estando o vosso avô no Conselho Nacional de Educação, coube-lhe redigir um “Parecer” sobre uma proposta de lei. Dessa proposta constava a introdução de uma disciplina e de aula semanal de “educação para a cidadania”. Entre outras considerações, perguntei ao ministério (o autor da proposta) se os alunos só poderiam ser cidadãos uma hora por semana. Na aula de matemática haveria algum exercício de cidadania? E numa atividade extracurricular?

Jamais obtive resposta. As escolas confinaram a ensinagem de cidadania numa aula semanal e uma efetiva educação democrática, cidadã, ficou adiada para as calendas.

Enquanto isso, na Ponte (já cá faltava…) em cidadania se aprendia cidadania. No exercício de uma liberdade responsável, usávamos dispositivos de respeitoso relacionamento. E, todas as sextas-feiras, as crianças realizavam uma reunião de Assembleia.

Alguém nos questionou, nestes termos:

“Gostaria de saber como se dá a organização da assembleia. Os alunos recebem convite formal, ou se organizam espontaneamente? Como vocês conseguem fazer com que o aluno participe?”

Eis a resposta:

“Todas as semanas, a Mesa de Assembleia reúne, faz uma recolha de propostas de assuntos e elabora uma convocatória, informando todos os professores, alunos, pais, funcionários e visitas da hora, dos assuntos agendados e do local onde a reunião da Assembleia se vai realizar.

A participação dos alunos varia em conformidade com o interesse e a forma como os assuntos são apresentados. A Mesa de Assembleia tenta incentivar a participação de cada aluno nas reuniões”.

As ideias são como as cerejas. E logo outra pergunta surgiu:

“Como preparam os alunos para as assembleias? Fico apavorada em pensar que não conseguiríamos que nossos alunos (de colégio…) ouvissem, discutissem.

Estou indo amanhã para SP, passar o dia na Desembargador Amorim Lima. Estudo sobre a Ponte e estas duas escolas, desde o ano passado. Tenho tentado preparar meus professores para a mudança de nossa proposta pedagógica e vocês devem imaginar a minha dificuldade (resistências de toda a sorte). Pergunto: vocês acreditam que seria possível uma mudança gradativa? Ou, como disse a Ana Elisa: “Pensei que poderia, mas de repente, me vi derrubando as paredes!”

Já estou implementando algumas mudanças, mas, às vezes, me sinto impotente diante de tantas dificuldades que o corpo docente apresenta (fiquei aliviada em saber que também a Ponte ainda passa por estes momentos).”

Resposta:

“A Assembleia já faz parte da cultura da escola. Existe toda uma vivência política para a efetivação das assembleias. No início do ano, os alunos passam por uma espécie de eleição, onde devem escolher algumas listas (chapas) formadas por alunos de diferentes idades. Essas listas pensam em propostas, para melhorar a escola. A partir dessa eleição, é formada a mesa da assembleia com o devido presidente. A organização fica a cargo do “Grupo de Responsabilidades”, acompanhado por dois professores. Esse grupo define a pauta, quem será responsável pela ata e refletem sobre as posturas necessárias para o bom andamento das reuniões.

O que podemos aprender com a experiência é a necessidade de espaços democráticos, para que se possa pensar coletivamente. Algumas escolas no Brasil já fazem assembleias de classe, o que é um ótimo caminho. Do que precisamos é de ter a coragem de mudar. Enxergar os desafios enfrentados pela Ponte talvez vos ajude a compreender que ela tem a prática democrática como impulsionadora de mudanças.”

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXV)

Cabanas de Tavira, 15 de dezembro de 2041

Neste mesmo dia, mas no distante 2021, acontecia o último dos encontros das “turmas-piloto”. Dali em diante e até meados de 2023, o vosso avô iria acompanhar projetos saídos de uma longa conversa virtual dos idos de vinte. Prestes a entrar no último dos quatro anos de um tempo-pesadelo, nada poderia continuar como antes.

De tempos pandêmicos, três subsistemas sociais deveriam sair alterados: o subsistema político, que demonstrara total inépcia na gestão de crises humanitárias; o econômico, que não mais poderia manter-se predatório; e o educacional, que estava na base de ambos – durante a pandemia, muita gente morrera, porque as escolas da ensinagem nem sequer tinham ensinado a lavar as mãos.

No início do distante 2022, as sequelas das crises política, econômica, educacional e, sobretudo, sanitária estavam à vista. Conscientes da gravidade da situação social e escolar, centenas de educadores delineavam novos rumos para a educação, adotando a proposta de Darcy de integrar três dimensões de projeto: a educação, a saúde e a cultura.

No distante 2021, a saúde pública passara de precária para trágica. A fome assolava milhares de famílias brasileiras abaixo do limiar da miséria. As mais vulneráveis sobreviviam garimpando restos em caminhões de lixo, procurando ossos descartados.

Uma pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional concluía que 19 milhões de brasileiros passavam fome e mais de metade da população apresentava algum nível de insegurança alimentar. O custo da “cesta básica” era o dobro, ou o triplo da parcela média do Auxílio Brasil, que fora anunciada pelo governo. Era deplorável a situação vivida num Brasil, que aprendi a amar e que me atraía para memórias, que eu recusava. Explico.

Nos idos de oitenta, um sociólogo amigo facultava-me o acesso às teses de doutoramento, que ele havia orientado. Passei longas horas no seu gabinete da faculdade, lendo e relendo, tirando notas, aprendendo. Até que, certo dia, deparei com uma tese sobre a fome, que assolara a minha cidade, durante a ditadura de Salazar.

Enquanto lia a tese, não conseguia conter a indignação e o riso, ao ponto de o Steve me interpelar:

“Por que ris?”

“Porque o que aqui está escrito não corresponde à realidade. E as conclusões estão erradas.”

Desagradado, o meu amigo reagiu, afirmando a boa qualidade da tese. E eu acrescentei:

“Este doutor nunca entrou na comunidade que estudou.”

“Como sabes?” – replicou.

“Porque eu nasci e morei na “Ilha dos Tigres”. Lá, não entrava polícia, nem ambulância, quanto mais alguém que não sabe o que é ter fome!”

Foi grande a surpresa do meu amigo. E perguntou:

“Zé, para saber o que é fome, é preciso passar fome?”

“Não é preciso. Mas… ajuda.”

Nos difíceis idos de vinte, eu sabia o que sentia quem passava um dia sem comida e sem saber se, no dia seguinte, alcançaria alimento.

Recordemos palavras de Saramago:

Ninguém assume suas responsabilidades, muito menos os governos, porque não sabem, porque não podem, porque não querem, ou porque isso não lhes é permitido por aqueles que realmente governam o mundo: as grandes empresas multinacionais, que detêm todo o poder. Não podemos esperar que os governos façam o que não fizeram. Que nós mesmos façamos com que nossa voz seja ouvida, com a mesma ênfase com que, até o momento, temos exigido: o respeito aos direitos humanos.

Tornemo-nos responsáveis por nossas obrigações como cidadãos, sejamos cidadãos, e o mundo talvez possa ficar um pouquinho melhor. Assumamos as responsabilidades que nos cabem.”

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXIV)

Santa Luzia, 14 de dezembro de 2041

A minha amiga Tina era implacável na crítica à desumanização da escola. No tempo da máscara obrigatória, tinha coragem suficiente para denunciar a má utilização, que, então, se fazia das tecnologias digitais.

“Você ainda acredita que a inovação na educação virá da tecnologia? Gamificação para ajudar na decoreba de conteúdos fragmentados é inovação? Lousa digital para o professor, o detentor do saber, expor sua sapiência é inovação? Aplicativo de apostila digitalizada é inovação? Plataforma digital conteudista é inovação? Tablet para o aluno (subserviente) seguir o roteiro elaborado pelo professor (protagonista) é inovação?

Mesmo depois de importantes avanços tecnológicos na educação, continuamos com a mesma base pedagógica, pautada no Paradigma do Instrucionismo, com processos sequenciados por apostilas, que padronizam o que as crianças aprendem, o método e o ritmo que todos devem seguir, com volumes enormes de conteúdos fragmentados, para serem decorados e reproduzidos em provas que testam a memória do estudante.

O que vemos é a digitalização das velhas práticas pedagógicas. Uma aula com quadro verde e giz foi transportada para uma lousa digital. A apostila foi digitalizada e animada, mas continua sendo um instrumento padronizador. Uma sequência de exercícios foi gamificada, mas mantém a função de estimular a decoreba de conteúdos.

A maior revolução na educação não será tecnológica, mas pedagógica. Precisamos libertar a educação das amarras do Instrucionismo e atuar no Paradigma da Aprendizagem e da Comunicação. A tecnologia precisa ser uma aliada desta revolução pedagógica e parar de ser uma maquiadora das velhas práticas.

Como disse meu amigo Ricardo, “não podemos cair na digitalização do tradicional”.

Na outra margem do Atlântico, o Zé Morgado comentava o difícil processo de “transição digital”. Demonstrava surpresa perante a relutância de muitas famílias relativamente à entrada nos seus lares das famigeradas “aulas online”.

“Em diferentes agrupamentos e escolas, muitas famílias de alunos identificados como necessitando de equipamento para acesso ao ensino presencial e integrando, naturalmente, os escalões mais carenciados no âmbito da Ação Social Escolar, não procederam ao seu levantamento, nas escolas.

Estes equipamentos foram colocados à disposição das escolas pelas autarquias e por entidades particulares. Numa situação completamente atípica, que não terá um fim próximo, e numa perspectiva de proteger a equidade claramente ameaçada, a situação deveria ser repensada, de forma a que as famílias pudessem ultrapassar eventuais razões para o seu não levantamento.

Temos pela frente uma gigantesca tarefa de recuperação de aprendizagens não realizadas, de recuperação de alunos que perderam na distância a que ficaram da escola, de recuperação do impacto negativo e significativo que estes meses de confinamento sem escola terão causado.

O deslumbramento com o novo mantra, transição digital, ainda terá que gerir situações como estas.”

O amigo Zé atribuía a “recusa de muitas famílias de usar os equipamentos” ao fato de elas virem a ser obrigadas à sua devolução, após a conclusão do ano letivo, e de serem responsabilizadas pelo estado dos equipamentos.

Hoje, sabemos que o Zé estava equivocado. No tempo em que se andava mascarado, já havia robôs exportando conteúdos a granel. E a rejeição talvez constituísse um ato de amor. Intuitivamente, talvez as famílias estivessem a proteger os seus filhos de uma “digitalização do tradicional”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXIII)

Tavira, 13 de dezembro de 2041

Mais uma vez… em Tavira. Quando o vosso avô aqui esteve, nos idos de setenta, a cidade era palco de um drama, que ameaçava a minha geração. O espectro da morte na guerra colonial pairava sobre a cidade. Mas, Tavira também foi lugar de bem-estar, dado que o vosso pai a escolheu como lugar de viver e ser professor. São gratas as recordações que guardo dessa cidade. Vezes sem conta, deambulei pelo bairro árabe. Na ponte românica, contemplei belos entardeceres. E, sempre que pude, fui até Cacela Velha. Dela vos falarei, em breve.

A estas velhas boas recordações se juntaram, hoje, outras recordações, contidas em mensagens quase esquecidas numa velha pen drive.

Em finais da segunda década deste século, a Cecilia compartilhava lembranças. Seria pecado não as transcrever, não vos dar a conhecer sensíveis palavras. O farei, como singela homenagem a uma extraordinária educadora.

“Quando iniciamos nossa reconfiguração, em meados de 2017, um aspecto que chamou a minha atenção foi o desinteresse das crianças pelos livros. Eu sou uma apaixonada pela literatura, autora de livros infantis e não via motivação nos pequenos em ouvir, ou ler histórias.

Partimos para a organização da biblioteca, que se tornou o lugar mais colorido e acolhedor da escola. Colocamos em prática um grandioso projeto de Leitura. E, vendo o encantamento das crianças, lhe demos continuidade, em 2018, com novas ações e propostas.

Certo dia, estávamos todos no pátio da escola, nos preparando para irmos embora, e uma pequena com seus oito anos veio até mim e disse:

“Tia, estava te procurando”.

Eu respondi:

“Oi, minha linda. Está precisando de alguma coisa?”

“Não, tia! Só queria te contar uma coisa. Sabia que lá em casa eu e as meninas estamos fazendo uma biblioteca?”

Não consegui conter um sorriso de satisfação e curiosidade.

“Sério? Que incrível! Como vocês estão fazendo?”

“Ah, Tia! A gente juntou aqueles livros que a gente tem da Catarina e mais uns papeis e cadernos, e colocamos numa mesinha. E, lá, a gente brinca de biblioteca e de escola.”

Eu respondi, ainda mais entusiasmada:

“Que legal! Os livros que vocês ganharam! Vou ver se tenho mais alguns para vocês!”

“Oba!!! – ela respondeu.

Eu e a pequena grande menina nos abraçamos e despedimos:

“Tchau Tia!”

“Tchau, querida! Vai com Deus! Boa leitura, hoje!

Ela olhou para trás, sorriu com olhos e disse:

“Vou falar para a Tia Jéssica mandar uma foto da biblioteca para você!”

“Ah! Vou adorar!”

Saímos da escola mais esperançosas, nesse dia, por se comprovar como nossas ações, bem planejadas, faziam, de fato, a diferença na vida das nossas crianças. Os livros que a incentivaram a fazer a sua biblioteca pessoal foram entregues a estas crianças em março desse ano, na Campanha dos Padrinhos Literários e causava transformações como essa.

A tia Jéssica tinha na sua casa dez crianças entregues aos seus cuidados. Então, foram dez livros recebidos na Campanha, cada criança recebeu o seu. A menina alimentava a esperança de receber mais livros e ampliar sua brincadeira em casa: a brincadeira de ler. Quer coisa mais linda?

Em casa, já bem à noitinha, recebi a foto que a Tia Jéssica me enviou, com a seguinte legenda:

“A biblioteca das meninas está desarrumada, pois elas arrumam todo dia na lavanderia, mas, quando chove, molha e aí eu tiro de lá.”

Eu nem sei o que senti, tamanha esperança em um mundo melhor! Cheio de livros, cheio de práticas educacionais significativas, cheio de afeto!

“Obrigada, pequena Kemilen, por esta dose de vida em minha vida!”

As mensagens da minha amiga Cecília eram educação em estado puro.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXII)

Engenho do Mato, 12 de dezembro de 2041

Nunca será demais falar da Ponte, do que ela representou e quantos educadores inspirou.

No início deste século, a minha amiga Cláudia nela fizera a sua pesquisa de doutorado. Nos idos de vinte, dava à estampa um belo livro, em que sintetizava a sua tese. Partilho alguns excertos dessa obra. Sem os comentar.

“A solidariedade, no projeto de escola de todos, não é peça de retórica e tampouco a incorporação de um jargão esvaziado da vivência na prática. Integra um quadro de valores convergente à ética universal do ser humano defendida por Freire, que enfatiza:

“Mas, é preciso deixar claro que a ética de que falo não é a ética menor, restrita, do mercado, que se curva obediente aos interesses do lucro.”

A solidariedade, vivenciada na escola, no sentido que estamos a falar, expressa a comunhão de atitudes de cada um com o outro e com todos, formando uma unidade que favorece às aprendizagens, às situações de formação, de gestão coletiva, de diálogo e resistência às pressões externas.

Ao delegarem a palavra às crianças, enquanto instrumento para a participação, os educadores abdicam de uma posição histórica, que lhes conferia total soberania no ato educativo, mas a confiança que depositam nas crianças parece ser proporcional à responsabilidade com que assumem a formação cidadã das mesmas.

Há de se reconhecer um paradigma de racionalidade coerente com a teoria viygotskyana, que defende a figura do mediador social, alguém mais experiente que age, por meio da linguagem, colocando-se como facilitador da relação sujeito-objeto de estudo.

Um estudo de Macedo, pesquisador brasileiro, contribui de maneira significativa para a discussão em torno dos “fundamentos para uma educação inclusiva”, considerando que, para defendermos uma escola de todos, se requer pensar na lógica da inclusão, que transcende as semelhanças, para acolher as diferenças que singularizam cada ser humano. Partindo deste prisma, o conceito de inclusão toma uma abrangência para além do que se costuma verificar no léxico dos estudos sobre a educação de crianças com algum tipo de limitação, seja física ou orgânica.    

A escola que inclui, ou a escola de todos, é aquela instituição organizada, pedagogicamente, para a promoção da educação da maioria excluída, cerca de setenta por cento da população, formada, não somente pelos “portadores de alguma deficiência, mas também os pobres, analfabetos, famintos, os que não têm onde morar, os doentes sem atendimento (…) no acesso às boas condições de aprendizagem (…) e que podem receber uma educação em sua versão comum, não especial ou excepcional”

É observado um reforço por parte dos educadores, desde o trabalho com o grupo da faixa etária entre seis e sete anos, estimulando e encorajando as crianças a relatarem situações do cotidiano, a perguntar quando não entendem, a querer saber o significado de vocábulos ouvidos e não compreendidos, a colocarem-se sobre os assuntos tratados. Igualmente, o exercício à generosidade e ao respeito de ouvir o que o outro tem a dizer, é vital na cultura da Ponte.

O papel do educador não é minimizado, porém, assume uma outra configuração: ele é complementar, visto que, no contexto da relação educativa, os estudantes tanto apreendem, quanto ensinam. Aliás, nos seus estudos psicopedagógicos, Fernández reforça a importância da interação, para que ocorra aprendizagem, o que não acontece em meio à passividade, mas num ato dinâmico, que requer daquele que apreende assumir, por vezes, o lugar de ensinante para que se consolidem as aprendizagens.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXI)

Várzea das Moças, 11 de dezembro de 2041

Mais uma vez… a avaliação.

Quem visitava a Ponte surpreendia-se com o fato de as crianças-cicerones saberem explicar o funcionamento de cada dispositivo e a sua fundamentação. E, quando alguém perguntava se na Ponte não havia avaliação, as crianças respondiam que avaliação havia, o que não havia era a prova, pois quase nada provava.

Nos encontros com a comunidade, nas tardes de sábado, a agenda contemplava assuntos propostos pelos pais dos alunos. E os professores aproveitavam todos os pretextos para explicar em linguagem de gente, despida de jargão científico, o porquê das suas práticas. Alguns pais manifestaram interesse em aprofundar a compreensão do modo como avaliávamos e me pediram “explicações suplementares”.

Quando uma visitante da Ponte nos questionou acerca do modo como acontecia a avaliação, foi um pai-professor quem respondeu. Aqui, vos deixo duas das perguntas e as respetivas respostas.

“A questão da avaliação sempre me deixou intrigada. Como aplicar um mesmo tipo de avaliação a cabeças pensantes diferentes, que aprendem, entendem de formas e em tempos diferentes. Como mudar a cultura arraigada nos gestores das escolas, nos professores, nos alunos, nas famílias?”

“A cultura é aquela que está arraigada nos gestores das escolas, nos professores, nos alunos, nas famílias. Por isso, a mudança tem que ser bem pensada, estruturada. Pensarmos que tudo se muda de um dia para o outro é uma forma de não mudar.

Para mudar a avaliação, é necessário mudar todo o trabalho escolar (e vice-versa). O que nós tentamos na Ponte é que cada aluno veja reconhecido o seu ritmo e que, paralelamente, a avaliação também seja para cada aluno uma oportunidade de aprendizagem.

A segunda pergunta:

“Percebo que o objetivo da Ponte é proporcionar aos alunos um clima adequado, onde se constitui um marco de relações admiráveis. Eu poderia supor que as avaliações sejam feitas conforme as possibilidades reais de cada um, para que a aceitação das competências pessoais não ocorra em detrimento de uma autoimagem positiva?

“Os laços que unem alunos e professores, alunos e seus pares têm de ser laços de aceitação, confiança, respeito e sinceridade. A aprendizagem efetiva apenas se concretizará num ambiente de reconhecimento e aceitação de diferentes individualidades.

A avaliação regula, reorienta todas as aprendizagens: a aquisição de novos conteúdos, mas também as atitudes e comportamentos. É errôneo pensar que aprender na escola é aprender somente Língua Portuguesa e Matemática.

Um aluno com uma baixa autoestima tem grandes dificuldades em conviver com a frustração, necessita da solidariedade dos seus orientadores educativos, assim como dos seus pares. Neste ano letivo, um aluno precisava ouvir “És capaz de…”, “Tu consegues…”, antes de iniciar qualquer trabalho que julgasse ser mais difícil. Precisará ainda que muitos outros lhe digam o mesmo, para que possa caminhar com mais autonomia.

Há alunos que se revoltam perante o desrespeito pelas suas dificuldades e ritmos de aprendizagem. É curioso verificar que alguns professores encaram a avaliação como um meio de amedrontar os “indisciplinados” da sua sala de aula. Lembro-me de uma professora que carregava consigo testes, que ameaçava aplicar, se as coisas não corressem como havia planeado.

É obvio que só faz sentido que as avaliações sejam feitas conforme as possibilidades reais de cada um dos nossos alunos. Pedir o mesmo a todos poderá significar pedir demasiado a alguns.

Na Escola da Ponte, se fazia avaliação… dialogando.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXX)

Cordeirinho, 10 de dezembro de 2041

Estávamos já em plena quarta revolução industrial. Entrando na geração 5.0. já dispúnhamos de impressoras 3d, com as quais podíamos fabricar objetos, sem sair de casa. A exploração espacial conduziria à criação de fábricas no espaço, produzindo objetos mais baratos, sob o efeito da gravidade zero.

A energia solar descentralizada e outras energias renováveis e limpas já iam substituindo o uso de combustíveis fósseis. A Internet das coisas e os sensores de controle facilitavam tarefas domésticas e a vida em comum. O wi-fi planetário transformava o mundo uma pequena aldeia. O carro autônomo, a robótica e o desenvolvimento exponencial da inteligência artificial iriam substituir o ser humano em múltiplas situações.

Nesse início dos anos vinte, se anunciava que oitenta por cento das profissões existentes desapareceriam em menos de dez anos. E as escolas continuavam a preparar os seus alunos para profissões do século XX.

Neste tempo de incertezas e transições, carecíamos de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver. Urgia transformar a educação, transformando os contextos em que ela acontecia. Urgia, também, estabelecer interação humana entre a escola e a cidade, capaz de dar sentido ao quotidiano das pessoas e influenciar positivamente as suas trajetórias de vida, contribuindo para a criação de verdadeiros laboratórios de laços sociais, onde a vinculação ética ao outro tivesse a marca da solicitude mútua.

Novos questionamentos davam origem a projetos de produção de vida e de sentido para a vida, na relação com um território biológico e psicológico de partilha em redes de aprendizagem. Quem aprendia apropriava-se, não apenas do conhecimento, mas também do processo pelo qual adquiria conhecimento.

Mas as escolas mantinham-se ancoradas em velhos e inúteis modos de transmissão de informação.

Dizia a Clarisse que, em matéria de viver, nunca se pode chegar. E que a trajetória éramos nós mesmos. Alguém dissera, também, que o educador era mais aquilo que fazia do que aquilo que sabia, sendo mais aquilo que era do que aquilo que dizia.

Era possível obter mudanças efetivas no comportamento e na cultura humana, questionando a estrutura das formas de educação que praticávamos. O desenvolvimento de atitudes de respeito, solidariedade e preservação da vida ajudava a superar visões fragmentadas e a, aprender a ver as relações entre as coisas. Mas a atividade docente perenizava uma visão de mundo retrógrada e as escolas mantinham-se na contramão da mudança. Haveria muitos modos de concretizar utopias. Mas a distopia escolar obstava a que tal acontecesse.

Não passava de um grave equívoco a ideia de que se poderia construir uma sociedade de indivíduos participantes, democráticos, enquanto a escolaridade fosse concebida como mero adestramento cognitivo. Para exercer solidariedade, seria necessário compreendê-la, vivê-la em todo e qualquer momento. Projetos eram atos coletivos, consubstanciados numa lógica comunitária, que pressupunha profunda transformação cultural.

Urgia reformular terminologias: desenvolver trabalho COM e não trabalho PARA; substituir o OU pelo E; trocar o EU pelo NÓS. Urgia considerar o aluno como participante ativo de transformações sociais, reconfigurar as práticas escolares.

Bastaria que os professores se interrogassem. Da interpelação das práticas, talvez emergissem dispositivos de mudança nas escolas e em outros espaços sociais onde ocorresse aprendizagem.

Mas, as escolas…

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXIX)

Itaupuaçu, 9 de dezembro de 2041

O meu amigo Miguel Guerra possuía um dom extraordinário. Era capaz de escrever sobre melindrosos assuntos de um modo entre o divertido e o didático. Ofereço-vos um belo naco de prosa extraído de um dos seus livros: “No coração da escola”. Aconselho a leitura dessa obra e de tudo o que publicou. A ele devo muito do que de bom possa ter feito na minha vida de professor.

Eis como descreveu “vinte formas de enterrar uma ideia”:

“Ignorá-la. Opor um silêncio de morte a todas as propostas desanimará o seu autor, mesmo que seja dos mais resistentes.

Iludi-la. A chegada de uma ideia pressente-se à vista do apuro e da ansiedade do que se prepara para a expor. Mudar de tema, acabar a sessão, fazer-se de tonto, são modos de evitar que prospere.

Desprezá-la. É muito eficaz franzir o sobrolho e dizer com voz doce e tom de assombro: “Não estás a falar a sério”.

Ridicularizá-la. Dizer a rir: “Oh, está muito bem, tiveste que estar acordado a noite inteira para ter essa ideia”. Se, por acaso, isto é verdade ainda tem mais graça.

Elogiá-la. Uma avalancha de elogios fará com que todos se aborreçam com a ideia, inclusive o autor.

Espalhar que não é nova. Se se consegue dar a ideia de um certo parentesco com outra já conhecida, o facto de esta poder ser melhor passará despercebido.

Fazer ver que não está de acordo com a política da instituição
Como ninguém sabe qual é essa política, não se corre nenhum perigo de ser desmentido.

Falar do que vai custar. Como os proveitos são imaginários e o custo imediato e real, a ideia será interditada. Se pôr em marcha a ideia for gratuito, não será difícil avisar que o que não custa nada não vale grande coisa.

Dizer que já foi tentado. Esta ofensiva é particularmente eficaz quando a ideia vem de um novato, já que sentirá que não está ao corrente.

Levantar a dúvida sobre ela. Comentários do tipo: não é um pouco extravagante? Será que nos convém tanta sofisticação? Não parece pretensiosa?… São muito eficazes.

Fazer uma contraproposta que a bloqueie. Se a contraproposta contar com o apoio maioritário, não será difícil dissuadir o inventor.

Modificá-la sucessivamente. Este método é muito elegante. Os retoques criam a ilusão no autor de que a sua ideia é tida em conta, já que parece que se pretende dar corpo à iniciativa.

Pôr em dúvida a paternidade da ideia. “O Xavier não tinha já feito uma proposta parecida com a que o Henrique apresentou agora?” Enquanto toda a gente averigua quem foi o primeiro a pensar nela, a ideia pode expirar por falta de oxigénio.

Condená-la por associação de ideias. Se se consegue associá-la, ainda que seja ao de leve, com a ovelha negra do grupo ganhou-se a partida.

Desmontá-la para a pôr em pedaços. Se se manipular uma ideia durante o tempo suficiente, não restará dela nada mais que os despojos.

Atacar pessoalmente o autor. Enquanto o inventor se refaz da desqualificação pessoal, a sua ideia terá ido ao ar.

Sustentar que vai contra um qualquer obscuro regulamento. Mesmo que a legislação não afete diretamente a ideia em questão, ficará a suspeita de não concretizável por ser ilegal.

Adiar a ideia no tempo. Dizer que será estudada numa próxima reunião ou que se voltará a colocá-la na mesa no próximo exercício revela-se muito eficaz.

Encarregar uma comissão de a examinar. Se essa comissão nunca for constituída, se é o presidente que se opõe à ideia, se for composta por muitos membros e se têm prazos de tempo muito flexíveis, a ideia estará enterrada antes de nascer.

Incentivar o autor a melhorá-la. Se a primeira era boa, a próxima será ainda muito melhor, numa sequência sucessiva de melhoria.”

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXIX)

Itapeba, 8 de dezembro de 2041

No começo deste século, após trinta anos de ultrapassagem de obstáculos à mudança educacional, eu ainda insistia em que seria preciso incomodar os acomodados. Mas, mais do que isso, ajudar os incomodados e identificar obstáculos, para que aprendessem com os erros e soubessem resistir.

Vinte anos depois, a Bárbara enviou-me um e-mail, que terminava assim:

“Olá, José! Admiro seu trabalho. Foi por meio dele que resolvi me tornar uma “professora diferente”. Obrigada por usar sua voz para transformar a vida de educadores, que não se conformam com os atuais sistemas hegemônicos de educação.”

Sempre que deparava com mensagens deste teor, a preocupação com o futuro dos seus autores me assaltava. A decisão ética fora tomada, mas isso era apenas o primeiro impulso de mudança. Pela frente, dificuldades surgiriam. E eu me empenhava em os avisar, precaver.

Precavido, o meu amigo Miguel publicou um artigo em que descrevia o que chamava de “fagocitose do educador”:

“Fagocitose é a propriedade que algumas células têm de capturar e ingerir outras células. Simplesmente comem-nas. Destroem-nas.

No sistema social, no sistema educativo, na escola, também há mecanismos de fagocitose. São as acusações e desqualificações pessoais contra aqueles que não desistem de trabalhar para uma melhor educação. Eis alguns juízos desqualificativos:

“Tem problemas afetivos (e é por isso que se dedica, que trabalha).

É um trapaceiro. Faz bom trabalho por interesse de ascender, para ter Muito Bom, para adular os chefes, para receber uma recompensa.

Tem poucas luzes”. Atribuir a uma pessoa escassos dotes críticos ou criativos, considerá-la imbecil é uma forma de se manter na trincheira dos espertos. Ser inteligente e não “fazer nenhum”, ganhar muito com o mínimo de esforço.

“É militante do partido X”. Pôr etiquetas com intenção desqualificadora protegerá o acusador da evidente falta de rigor profissional.

Tem problemas com a mulher (ou com o homem).

Obstáculos surgiam, geravam mal-estar. Qual seria a sua origem? Michel Crozier ensaiou uma explicação:

“Identifico três problemas fundamentais. O primeiro releva da psicologia. O segundo tem a ver como relacional. O terceiro inscreve-se no campo dos saberes, onde a escola privilegia mais os conhecimentos do que o saber-fazer.

No plano psicológico, num mundo caracterizado pela liberdade infinita das escolhas possíveis, choca-me a incapacidade de as crianças escolherem. Os pequenos permanecem marcados por uma educação “dominação/revolta”. O mestre fala, o aluno escuta, não podendo tomar a palavra a não ser nos modos eruptivo ou revoltado.

A escola é o reino da submissão e da não-escolha. Para além disso, é terrivelmente ansiogénea, uma vez que toda a marcha atrás é difícil.

Que se entende por problema “relacional”? A necessidade de uma abertura, de uma disposição de espírito que não existe. Os trabalhos de amanhã lhe atribuirão uma grande importância. Um esforço considerável deve ser empreendido para dar às crianças o gosto de se dirigirem aos outros e estabelecerem o laço social.

E chegamos à terceira dificuldade: a questão dos conteúdos e dos saberes.
Há alguns anos fui convidado por Luc Ferry para refletir sobre os programas escolares. Devíamos aligeirá-los e acabamos por sobrecarregá-los. Que fazer, então?

É preciso dar aos professores instrumentos de reflexão e deixá-los trabalhar sobre os problemas e os constrangimentos que se lhes colocam. Querem fazer-nos acreditar que na educação nacional apenas o ministro pensa. As mudanças não se decretam.”

 Por: José Pacheco

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