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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLIX)

Olhos de Água, 30 de dezembro de 2041

Pelos idos de oitenta, o amigo Miguel assim se expressava:

“A escola é o lugar onde deveríamos aprender a ser nós próprios e a respeitar todos os outros. Estar na escola, viver a escola deverá ser o caminho para chegar a conhecer, a amar e a desenvolver a nossa pessoa e, ao mesmo tempo, a ter em conta que há outras que merecem o nosso respeito, a nossa ajuda e o nosso afeto.

Quando falo de diversidade, não me refiro só aos alunos, há diferenças que devemos respeitar nos professores e em todos os que trabalham na escola. 

Diz Steiner que a relação professor-aluno é “uma alegoria do amor desinteressado” (…) A sentirmo-nos como somos, ou a encaixarmos numa engrenagem de rotinas despersonalizadoras? A obedecer de forma aborrecida àquele que prescreve, nas palavras de Helmutt Becker, a “escola administrada”, ou a recriar o conhecimento e a convivência?”

A escola tem uma importante função social. O desenvolvimento de competências sociais deveria andar a par do compromisso com a construção de relações solidárias. Consciente dessa premência, a Claudia tentava dar forma a uma comunidade, naquele que foi o projeto dos projetos: o Âncora. 

“Tivemos uma reunião muito boa, pois conseguimos dar um passo importante quanto a documentação da Associação. Tivemos vinte participantes bem unidos e dispostos a fazer acontecer. Um ex-aluno se propôs a ficar na portaria como voluntário. Palmas e agradecimentos com muita alegria!”
Aqueles que visitavam a Escola do Projeto Âncora inferiam que, ali, se gestava comunidade:

“Foi muito prazeroso estar esses dias no projeto Âncora. Foi maravilhoso ver, na prática, como funciona esse modelo de educação, modelo que por muitas vezes causou dúvidas, desconfiança e até pré-julgamentos. Nesta semana, vivenciei um sistema de educação formidável. Aprendi muito com os educadores. Quando digo educadores digo todos os tutores, o pessoal da cozinha, da limpeza, da manutenção, alunos e famílias pois todos são educadores. E, quando você vê uma criança ensinando outra, isso é sinal de comunidade”.

Conseguiram destruir um projeto a começar. Mas não se extinguiu o sentido de comunidade desse projeto. A Escola Aberta de São Paulo era a sua tradução plena. E 2022 viria ser o ano do ressurgir do Âncora, consolidado em dezenas de lugares. Nesse ano, eu tentara reunir uma equipe, num refazer comunitário, na casa do Jardim do Éden. Não consegui. Despedi-me desse lugar, voltei à andarilhagem, fui ajudar a fazer comunidade em outros lugares. 

Não havia fronteiras para as aves migradoras. As cegonhas percorriam milhares de quilómetros, para cumprir o seu destino de perpetuar a espécie. E “a gaivota, que pousou na pedra da idade da pedra, pensava nos bandos que peregrinavam na direção da Primavera”. Fui mundo afora, cumprir a sina de andarilho, calcorreando trilhas abertas por um Pássaro Encantado, que lera a “Poética do devaneio” e reencontrara poetas, que punham palavras nos sentimentos. 

A memória do Pássaro Encantado me fez atravessar o mar, mais uma vez. Conduziu-me a lugares onde o mundo retomava a forma prometida de um “novo mundo”. Foi lá que tudo recomeçou. No eco dos seus passos, encontrei um sabiá de canto suave, que corporizava o direito de aprender… brincando. Na sua companhia me refiz. Entre lusas montanhas e brasileiros mares, uma gaivota das estórias da Alice alçou novos voos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLVIII)

Fuzeta, 29 de dezembro de 2041

Os últimos dias do distante 2021 foram pródigos em boas notícias. E chegaram de onde eu não suspeitaria que viessem. Muitos empresários despertavam para a necessidade de substituir um marketing demagógico por uma boa qualidade da educação, e de juntar a intenção do lucro das empresas a uma efetiva melhoria da qualidade das aprendizagens. 

Eu, que já levava meio século de professor de escola pública, abominando a exploração que se fazia da ingenuidade pedagógica de famílias e professores, me rendi perante genuínas declarações de princípios. Reconhecia em alguns empresários senso crítico e abertura à mudança. Decidi escutá-los, com a atenção que mereciam.

O amigo Fernando – eu chamava amigo a quem era amigo das crianças – isto escreveu num site da antiga Internet:

“A pandemia trouxe à tona uma série de questões importantes dos estudantes da era digital em que vivemos. A primeira diz respeito ao enorme volume de conteúdos e aulas disponíveis on-line. 

Na minha época, as aulas eram longas e áridas, os alunos tinham que ficar quietos por cinquenta minutos, copiando o conteúdo da lousa ou anotando as falas da professora. E precisávamos aguentar isso por completa falta de opção. Se eu não aprendesse o conteúdo na sala de aula, não o aprenderia mais em lugar algum.

O mais incrível é que isso acontece ainda hoje: nossos filhos, algumas gerações depois, em plena Revolução Digital, ainda passam pela mesma experiência pedagógica dolorida todos os dias. No entanto, hoje, eles têm outras opções de aprendizagem. Basta entrar no YouTube e digitar “aula de qualquer coisa” e você encontrará instantaneamente inúmeras aulas, em diferentes formatos, tais como desenhos animados, músicas, aulas expositivas gravadas por professores e videodocumentários internacionais. São conteúdos muito engajadores, normalmente de curta duração, feitos, muitas vezes, por educadores e que retêm a nossa atenção, imediatamente. 

Para quê gastar tempo e dinheiro na escola, se você tem tudo isso em casa, de graça? A sala de aula tem de oferecer mais do que isso.

A segunda diferença tem que ver com a pandemia e o lockdown (…) cresceu de tal forma e por tanto tempo a profundidade do vínculo entre os jovens e os smartphones, iPads e computadores, que o padrão de interação deles com o mundo externo tornou-se essencialmente ‘figital’ (físico + digital).

Na volta às aulas presenciais, isso se refletirá no engajamento dos alunos dentro da sala de aula. Uma experiência pedagógica que seja exclusivamente analógica e em que os professores deem palestras áridas de conteúdo e não estimulem os alunos a criar, se comunicar, interagir ou criticar, será muito prejudicial ao aprendizado. Nessas circunstâncias, o corpo dos alunos estará presente, mas o cérebro, o coração e a alma estarão em outro lugar. 

O papel da escola na volta às aulas presenciais será esse: prover uma experiência de aprendizagem que vá além da repetição do conteúdo gratuito que está no YouTube e usar a tecnologia a serviço do engajamento e do aprendizado.”
O Fernando ainda falava de “aula”. Mas, o seu bom senso, o excelente trabalho realizado pela Letícia e alguns “papos” com o vosso avô o ajudou a ir além. Dando, aula, claro! 

Queridos netos, não vos esqueçais de que, quando o discípulo está pronto, o mestre aparece. Não jogávamos fora o velho instrucionismo com a água do banho… A “aula direta”, criada pela Ponte, na década de setenta (e reinventada pelo “ensino híbrido”, meio século depois) continuaria a existir. A mudança não aconteceria no vazio – assentaria na tradição.

 

Por: José Pacheco

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