Sítio da Ana, 6 de fevereiro de 2042
Decorria o mês de janeiro de 2007. Cheguei ao local do congresso a tempo de escutar a palestra de uma amiga. Deixei-me ficar pelas últimas filas do auditório, para evitar que me vissem.
Contrariamente ao que me habituara a assistir em idênticas situações, a palestrante não usou power point. E começou por dizer:
“Há alguns anos, visitei a Escola da Ponte. Portão aberto, crianças brincando, fui entrando. Uma criança veio ao meu encontro.
“A senhora vem conhecer a nossa escola? A senhora quer que lhe mostre a nossa escola?”
Perguntei-lhe:
“Sabes dizer-me onde é o gabinete do diretor?”
“Diretor? – perguntou a menina – “Aqui, não tem nada disso.”
“Não tem? Não há diretor?”
A menina deu mostra de entender:
“A senhora procura o Professor Zé?”
“Sim. Onde está o Professor Pacheco, o diretor da vossa escola?”.
“Onde havia de estar, minha senhora? Está com as crianças.”
E lá se foi a menina.
Não tardei a encontrar o “Professor Zé”, junto de um grupo de crianças, tocando violão, ensaiando “reisadas”. Não quis interromper. Fui observando tudo à minha volta. Algumas crianças em trabalho de grupo, outras em pesquisa no computador, educadores circulando, música de fundo, serenidade…”
Ignorando a minha presença, a palestrante iniciou uma conversa amena com o auditório, explicando o que vivenciou na Ponte, sublinhando a surpresa de ter visto um diretor… com crianças.
Na Ponte, todos os educadores eram “diretores”, seres humanos autônomos em equipe, profissionais de trabalhar com crianças, gente longe de outros “papeis”. Nos transformáramos. A gestão era pedagógica, trabalho com alunos. E a “direção” dispensava “papelada”, coisa de ocupar burocrata.
Numa das minhas andanças brasileiras, mais uma escola visitei. Fui muito bem recebido pela diretora, no seu gabinete. Conversa amena, até que ela se queixou de ter recusado matrícula por “falta de professores”.
“Não temos mais vaga. As turmas estão completas. Temos mais de cinquenta crianças à espera. Eu acho que a secretaria vai arranjar transporte para elas irem para outra escola”.
Vim a saber, mais tarde, que a secretaria de educação, todos os meses, desperdiçava cerca de milhão e meio de reais, para assegurar o transporte de alunos desse bairro para escolas situadas a mais de dez quilômetros de distância. Questionei a diretora:
“Se a Lei estabelece que a educação é direito de todos e se o Anísio recomendava que as crianças fossem “caminhando para a escola, então, o que é uma “vaga”? Por que há “turmas”? Por que é preciso transportar alunos?”
“Que quer que lhe diga, colega? É o sistema!” – respondeu.
E mais não pode dizer. A conversa foi interrompida, quando uma coordenadora veio dizer que chegara a hora da “reunião de planejamento”. E lá se foi a diretora, com pedido de desculpa pelo caminho.
Antes de partir para outra escola, pude conversar alguns professores. E escutar uma confidência:
“A nossa diretora só raramente sai do gabinete. E só para ir às reuniões. A vice-diretora, também. As coordenadoras passam a maior parte do tempo na sala das coordenadoras. E há mais gente que não tem turma atribuída”.
Com a pressa, a senhora diretora não chegou a dar resposta às minhas perguntas, porque… “era o sistema”.
No Portugal de há mais de meio século, concebemos uma nova construção social de educação. Em avaliações externas, ficou provada a boa qualidade de um projeto, que não tinha “diretor”. O projeto assentava no valor solidariedade. Se, no Brasil, ainda vigorava o “sistema”, solidariamente, ajudei os educadores brasileiros a demolir o… “sistema”.
Por: José Pacheco