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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXV)

Sítio da Ana, 6 de fevereiro de 2042

Decorria o mês de janeiro de 2007. Cheguei ao local do congresso a tempo de escutar a palestra de uma amiga. Deixei-me ficar pelas últimas filas do auditório, para evitar que me vissem. 

Contrariamente ao que me habituara a assistir em idênticas situações, a palestrante não usou power point. E começou por dizer:

“Há alguns anos, visitei a Escola da Ponte. Portão aberto, crianças brincando, fui entrando. Uma criança veio ao meu encontro.

“A senhora vem conhecer a nossa escola? A senhora quer que lhe mostre a nossa escola?”

Perguntei-lhe:

“Sabes dizer-me onde é o gabinete do diretor?”

“Diretor? – perguntou a menina – “Aqui, não tem nada disso.”

“Não tem? Não há diretor?”

A menina deu mostra de entender:

“A senhora procura o Professor Zé?” 

“Sim. Onde está o Professor Pacheco, o diretor da vossa escola?”.   

“Onde havia de estar, minha senhora? Está com as crianças.”

E lá se foi a menina.

Não tardei a encontrar o “Professor Zé”, junto de um grupo de crianças, tocando violão, ensaiando “reisadas”. Não quis interromper. Fui observando tudo à minha volta. Algumas crianças em trabalho de grupo, outras em pesquisa no computador, educadores circulando, música de fundo, serenidade…”

Ignorando a minha presença, a palestrante iniciou uma conversa amena com o auditório, explicando o que vivenciou na Ponte, sublinhando a surpresa de ter visto um diretor… com crianças.

Na Ponte, todos os educadores eram “diretores”, seres humanos autônomos em equipe, profissionais de trabalhar com crianças, gente longe de outros “papeis”. Nos transformáramos. A gestão era pedagógica, trabalho com alunos. E a “direção” dispensava “papelada”, coisa de ocupar burocrata.

Numa das minhas andanças brasileiras, mais uma escola visitei. Fui muito bem recebido pela diretora, no seu gabinete. Conversa amena, até que ela se queixou de ter recusado matrícula por “falta de professores”.

“Não temos mais vaga. As turmas estão completas. Temos mais de cinquenta crianças à espera. Eu acho que a secretaria vai arranjar transporte para elas irem para outra escola”.

Vim a saber, mais tarde, que a secretaria de educação, todos os meses, desperdiçava cerca de milhão e meio de reais, para assegurar o transporte de alunos desse bairro para escolas situadas a mais de dez quilômetros de distância. Questionei a diretora:

“Se a Lei estabelece que a educação é direito de todos e se o Anísio recomendava que as crianças fossem “caminhando para a escola, então, o que é uma “vaga”? Por que há “turmas”? Por que é preciso transportar alunos?”

“Que quer que lhe diga, colega? É o sistema!” – respondeu.

E mais não pode dizer. A conversa foi interrompida, quando uma coordenadora veio dizer que chegara a hora da “reunião de planejamento”. E lá se foi a diretora, com pedido de desculpa pelo caminho.

Antes de partir para outra escola, pude conversar alguns professores. E escutar uma confidência:

“A nossa diretora só raramente sai do gabinete. E só para ir às reuniões. A vice-diretora, também. As coordenadoras passam a maior parte do tempo na sala das coordenadoras. E há mais gente que não tem turma atribuída”.

Com a pressa, a senhora diretora não chegou a dar resposta às minhas perguntas, porque… “era o sistema”.

No Portugal de há mais de meio século, concebemos uma nova construção social de educação. Em avaliações externas, ficou provada a boa qualidade de um projeto, que não tinha “diretor”. O projeto assentava no valor solidariedade. Se, no Brasil, ainda vigorava o “sistema”, solidariamente, ajudei os educadores brasileiros a demolir o… “sistema”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXIV)

Mendes, 5 de fevereiro de 2042

Faz, hoje, vinte anos, partimos de Mendes para Mogi. Acompanhava e ajudava a incansável brasileira Cléo na busca de diálogo, entendimento e mudança. Fomos ajudar o André, amigo merecedor da nossa solidariedade, a braços com dificuldades causadas por um obsoleto modelo de administração educacional. 

Para trás deixávamos a promessa de voltar ao lugar do “Encontro de Mendes”. No fevereiro de vinte e dois, o sonho de Darcy começava a tomar forma. Começava a demolição do aparato instrucionista. E a Maria Paula preparou o melhor de encerrar o ciclo de visitas às escolas, que iriam participar do projeto: a inauguração de um “Observatório da Aprendizagem”. 

Sala cheia de cidadãos de Mendes, de educadores, de amigos. A prefeitura fez-se representar pelo subprefeito Jiló. Esteve presente o Presidente do Conselho Municipal de Educação, vereadores e convidados. O breve discurso do jovem nonagenário Célio foi comovente. Observei a reação da Aline, as lágrimas de emoção verdadeira, que lhe caíram pelo rosto. Senti a presença de Freire, estava na companhia de educadores sensíveis, amorosos, corajosos. Estava bem acompanhado. 

Ali, havia verdade. Senti que valera a pena ter ido até lá. E prometi voltar. A Maria Paula tinha reunido uma equipe capaz de colocar a educação de Mendes no século XXI. Ali, se construía comunidade. Ali, se tentava unir o que um sistema obsoleto de ensino havia desagregado. E veio à memória o que a minha amiga Tina me fez recordar, nas palavras de um jovem centenário de nome Edgar:

“Como nossa educação nos ensinou a separar, compartimentar, isolar e, não, a unir os conhecimentos, o conjunto deles constitui um quebra-cabeças ininteligível. As interações, as retroações, os contextos e as complexidades que se encontram na man’s land entre as disciplinas se tornam invisíveis. 

Os grandes problemas humanos desaparecem em benefício dos problemas técnicos particulares. A incapacidade de organizar o saber disperso e compartimentado conduz à atrofia da disposição mental natural de contextualizar e de globalizar.

A inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva e reducionista rompe o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa o que está unido, torna unidimensional o multidimensional. É uma inteligência míope que acaba por ser normalmente cega. Destrói no embrião as possibilidades de compreensão e de reflexão, reduz as possibilidades de julgamento corretivo ou da visão a longo prazo”

Na França dos “sete saberes necessários à educação do futuro”, o Mestre Morin apontava caminhos que um visionário de nome Darcy tentou percorrer. No novembro de 1983, Mendes o acolheu. Montes Claros o vira nascer. Em Brasília partiu para junto dos companheiros Florestan e Anísio, sem ter concretizado os seus desígnios – “Meus fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

Atormentado pelo torpor das metástases, Darcy ainda conseguiu traduzir “tudo o que o Brasil poderia ser e ainda não era”. A escrita de “O povo brasileiro” é reflexo do convívio com as comunidades do Xingu, uma mistura de experiências colhidas na espiritualidade africana, na sabedoria e tecnologias sociais de portugueses, italianos, alemães, japoneses, judeus, árabes e outros povos, que constituem um criativo caldo cultural. Esse enorme e sincrético potencial foi historicamente “entravado pela classe dominante medíocre que impede o desenvolvimento da civilização brasileira”.

Em Mendes, chegara o tempo de o “desentravar”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXIII)

Itakamozi, 4 de fevereiro de 2042

Netos queridos, para o vosso avô-coruja, o latino “ad-mirare” vai além do olhar com espanto, de contemplar com deleite, maravilhar-se. É sentir respeito, profunda admiração. Sois interlocutores do fim de um tempo anunciado pelos futurólogos do século XX. Vos admiro, por vos interessardes, em 2042, pelas deambulações da memória de um velho, que vos fala de assuntos considerados maçadores nos idos de vinte.

Já entrado nos setenta, a andarilhagem não tinha fim à vista. De Portugal para o Brasil, do Brasil para Portugal, enfrentando dolorosos PCR e correndo risco de contágio em aviões superlotados, ia ao encontro de novos e auspiciosos projetos. Ao cabo de dezenas de anos de dura militância, recebia pedidos de ajuda de autarquias, agrupamentos de escolas, secretarias de educação e educadores E eu não aprendera a dizer não.

De Portugal, chegava a notícia de que tínhamos um governo de maioria absoluta. Dessa vez, o ministério não teria desculpa alguma para não fazer a mudança necessária. 

Essa fora uma boa notícia. A má notícia foi a de que a Teresa desistira de cumprir o projeto do Casal do Sapo. O diretor “não autorizava” e a minha amiga se resignava. Respeitei a sua decisão, mas não deixei de lhe sugerir que procurasse outro professor, para reassumir o projeto. Ou que as mães dos seus alunos se organizassem, para que o projeto da escola fosse cumprido. Em aprendizagem à distância, eu poderia ser tutor dos seus filhos. Desistir? Nunca! Tinha chegado o tempo de “desnaturalizar” a desistência. 

Seria “natural” que se desistisse de sonhar, de amar e agir? Poder-se-ia considerar “natural” que um diretor não autorizasse um professor a ir até ao outro lado da rua com os seus alunos, para recolher um pássaro ferido? Ou que o senhor diretor exigisse de uma professora um pedido de “autorização superior”, se ela quisesse que os seus alunos convivessem com um pavão? 

Havia quem pensasse ser legítimo “naturalizar” atitudes autoritárias. Era “natural” que o governo de um estado condicionasse o pagamento da merenda escolar à subordinação dos municípios a um modelo educacional destruidor de vidas. Era “natural” que umas “antas” investidas na função de supervisoras ameaçassem a Fabi, só porque essa extraordinária educadora pretendia colocar a sua escola dentro da lei. era “natural” que o modelo educacional imposto à escola pela administração educacional a colocasse à margem da lei. 

Nesse tempo, era naturalizado o que era “contranatura”. E, para manter o status quo, ou para garantir mordomias, até se chegava ao cúmulo de achar “natural” que ilegalidades fossem cometidas. 

Na mitologia grega, Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, foi oferecida a Prometeu, que a recusou, temendo ser um ardil. Rejeitada, Pandora se casou com o irmão do titã. Zeus a presenteou com uma caixa, recomendando que jamais a abrisse. Curiosa, Pandora abriu a caixa. De dentro dela saltaram todos os flagelos da humanidade: guerras, mortes, múltiplas violências, pobreza, pandemias e… “naturalizações”. 

Quando se apercebeu do mal causado, Pandora fechou a caixa, sem reparar que dentro dela ficara a… esperança.

Triste fiquei, quando a minha amiga Teresa sucumbiu perante as “naturalizações” sofridas. Exultei, quando outros educadores reabririam a caixa onde agonizava a esperança. Como fênix renascida, enfrentaram adversidades, duras provas. 

O grande desafio da vida de educador era o “desnaturalizar”, suportar a dor da humana condição. Já dizia o poeta que, para passar além do Bojador, se teria de passar além da dor.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXII)

Vassouras, 3 de janeiro de 2042

Queridos netos,

No dealbar da “Idade da Educação”, o vosso avô desgastava-se em constantes viagens e reuniões. Despendi o mês de fevereiro de vinte e dois numa sucessão de encontros e desencontros. No dialogar com a Magda, a Paula, com outros secretários de educação, gestores e professores, tentava não-desesperançar. Ganhava novo alento, quando recebia mensagens como o amargo e, também, esperançoso e-mail da Bruna:

“Olá, caro amigo, como vai?

Começamos, hoje, mais um ano letivo. A expectativa, como sempre, é das melhores: novas possibilidades, novos alunos, novas relações, um novo tempo para aprender e para viver juntos. No entanto, logo na primeira reunião administrativa realizada com as gestoras da escola, somos surpreendidos com uma votação estranha. Confesso que momentos democráticos são muito apreciados por mim, ainda mais sendo tão raros como são na instituição em que trabalho. Mas, nesse caso e pelo objetivo da votação, fiquei muito triste e até mesmo surpresa com o resultado.

As gestoras colocaram em pauta a execução de planejamentos de aula idênticos para todas as turmas de mesmo ano. Ou seja, todos os primeiros, segundos, terceiros, quartos e quintos anos, como também a educação infantil, deverão aplicar atividades iguais para os tantos diferentes alunos. 

A justificativa para essa decisão é, segundo elas, que se trata da mesma escola, na qual os alunos devem receber as mesmas atividades, que os pais comparam planejamentos quando são diferentes e que, além disso, fica mais fácil para os professores, ficando menos atarefados, dividindo as atividades a serem planejadas, um planejando para a turma do outro (a qual nem conhece) sequências didáticas sem fim e sem sentido. 

O que mais me surpreende é que do grupo de mais de 40 professores, apenas eu e mais uma professora votamos contrárias a essa prática, defendendo a observação dos interesses das crianças, seus desejos e suas histórias de vida.

Parece uma história do século passado. Infelizmente é de 2022. O sentimento que me toma é a tristeza. Como podem educadores optarem por uma prática reprodutiva e sem nenhum sentido, que se distancia tanto da ciência da educação? Como podem educadores optarem por ações tão contraditórias aos documentos e à legislação educacional? Sinceramente, acho que morri mais um pouquinho, hoje. Mas logo ressuscito, novamente, assim que me encontrar com as crianças e ouvir tudo o que elas têm para me contar.

Outra coisa que me entristece é que o motivo dessa votação é evidente. Pretendem que, de uma vez por todas, eu deixe de insistir em aprender com os meus alunos, de planejar com eles e fazer pesquisa a partir do que eles se interessam. Impõem que passe a aplicar planejamentos iguais. Afinal, a maioria assim decidiu. 

É uma luta dolorida escapar da reprodução, reprodução e reprodução… Esses últimos anos têm sido um desgaste tão grande, que quase meus sonhos escorrem pelas mãos. O tempo gasto, batendo de frente com práticas arcaicas, demonstrações de autoritarismo, ouvindo ofensas contra as crianças e professores, poderia mudar vidas, se fosse utilizado para discussões pedagógicas, científicas coletivas. 

 Concretizar a Lei de Bases, como você bem citou na entrevista publicada no DN do dia 23/01/22, está cada vez mais distante da minha realidade. Enquanto isso, continuamos driblando o poder, sempre com esperança. 

Muito obrigada, por compartilhar seus pensamentos, suas ideias e inquietudes de forma tão corajosa. E, além disso, por nos dar o privilégio da escuta.

Um abraço!

Professora Bruna.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXI)

São Bento do Sul, 2 de fevereiro de 2042

Nos idos de vinte, António Nóvoa, insistia em falar “Da Pedagogia e dos Pedagogos:”:

O pedagogo existe na zona de encontro entre a prática e a teoria. A sua palavra não lhe vem apenas da experiência, mas é nela que encontra o seu sentido. O seu pensamento não é uma mera especulação teórica, mas antes um esforço para refletir sobre a ação educativa. A escrita pedagógica define-se neste entre-dois e alimenta-se da procura de um “terceiro lugar” para falar das coisas educativas.
Só há ensino, quando as crianças aprendem. Ser pedagogo é acreditar na possibilidade de educar todas as crianças, sem nunca esquecer que só há ensino, quando alguém aprende. Ser pedagogo é não se contentar com a obrigatoriedade da instrução e tudo fazer para que haja aprendizagem. Ser pedagogo é valorizar a cultura, uma cultura que se inscreve numa pessoa, contribuindo assim para a sua formação.

Contrariamente a uma opinião corrente, os pedagogos são os maiores defensores da cultura, porque são eles que a promovem diariamente junto das gerações mais novas. A missão essencial do educador é apresentar o mundo aos que chegam: é deles a primeira palavra. Mas o processo formativo tem como finalidade permitir a cada um “dizer-se pessoa”: a última palavra pertence aos educandos.

A pedagogia como exercício de intervenção cívica. Os percursos pedagógicos definem-se pela insatisfação face ao estado da escola e pela busca de novos caminhos. Quando os outros desistem, os pedagogos continuam teimosamente a querer formar todos os alunos, evitando a exclusão e o “apartheid”. Quando os outros se resignam, os pedagogos associam-se coletivamente para, na partilha de experiências, encontrarem as respostas úteis e necessárias.

Uma atenção permanente à formação de professores. Quando se estudam os textos pedagógicos, desde meados do século XIX, deparamo-nos com uma atenção permanente às questões da formação de professores. Não há pedagogo que, num ou noutro momento da sua vida, não tenha participado na organização ou na dinamização de programas de formação inicial ou contínua de professores. Eles sabem, melhor do que ninguém, que o esforço de educar, enquanto esforço de cultura e de relação humana, depende acima de tudo da competência e do talento dos mestres”.

Os discursos do amigo Nóvoa eram música para os ouvidos. Nóvoa era hábil no uso da palavra, da palavra-substância, coerente com o que de valioso o discurso das ciências da educação aportava. Repetiria esse discurso ao longo de décadas de congressos e formações. Muitos o ouviam. Raros eram os que o escutavam. 

Como explicar a falta de “pedagogos” e de “antropogogos”? Cadê o “esforço para refletir sobre a ação educativa”, se a “especulação teórica” permanecia apanágio de universitários ociosos?

Cadê as evidências de que se acreditava na possibilidade de educar todas as crianças? Nos idos de vinte, a ensinagem não gerava aprendizagem, mesmo que o índice de decoreba da educação chegasse a ser dez. E a pedagogia (praticada!) não era exercício de intervenção cívica – a última palavra não pertencia aos educandos. 

Mas, em algo o amigo Nóvoa tinha razão. Nesse tempo, havia quem manifestasse insatisfação face ao estado da escola, havia quem buscasse novos caminhos. Quando a maioria desistia de agir, educadores teimosos ajudavam a evitar a exclusão, não se resignavam, agiam.

Encontrei-os em São Bento do Sul, decorria o mês de fevereiro do já distante dois mil e vinte e dois. Com eles partilhei experiências. Com eles reaprendi a encontrar respostas úteis e necessárias.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXX)

Mendes, 1 de fevereiro de 2042

A clarividência do Darcy conduzira-o à conclusão de que a crise da escola era um projeto engendrado por pessoas, cujos ações iam na contramão da história. Esse malfadado projeto de escola e sociedade estava escancarado nas alocuções de palestrantes de um congresso realizado entre janeiro e fevereiro de há vinte anos. 

Inscrevi-me. Escutei. Entre salamaleques e mútuos elogios, supostamente, se debatia a “educação básica”. Mas, de que “educação básica” se trataria? Eu apenas ouvia falar de “regresso às aulas”, de velhos “novos normais”, de “híbridos” e de outros paliativos instrucionistas. Estoicamente, escutei o “mais do mesmo” à mistura com alguns disparates. Quando a paciência se esgotou, desliguei. Restou inquietação: o que estariam o Celso, o Pedro e o António a fazer naquele “festival de horrores”?

Dez anos antes desse infeliz evento, a minha amiga Jaqueline organizara as velhas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica. Ela nos dizia que a escola, face às exigências da Educação Básica, precisava ser reinventada. Deveriam ser priorizados “processos capazes de gerar sujeitos inventivos, participativos, cooperativos, preparados para diversificadas inserções sociais, políticas, culturais, laborais e, ao mesmo tempo, capazes de intervir e problematizar as formas de produção e de vida”. A escola tinha, diante de si, o desafio de sua própria recriação, pois os rituais escolares eram “invenções de um determinado contexto sociocultural em movimento”. 

Projetos são compostos de valores, decorrem da adoção de princípios, traduzem visões de mundo, de sociedade e de… escola. Com base nesse pressuposto, a Jaqueline coordenou um programa chamado “Mais Educação”. A proposta educacional da escola de tempo integral visava “promover a ampliação de tempos, espaços e oportunidades educativas e o compartilhamento da tarefa de educar e cuidar (…) alcançar a melhoria da qualidade da aprendizagem e da convivência social, e diminuir as diferenças de acesso ao conhecimento e aos bens culturais, em especial entre as populações socialmente mais vulneráveis”.

No tempo em que a palavra era fonte de mal-entendidos, se eu pronunciasse a palavra “escolas”, a maioria dos meus ouvintes, mentalmente, representava as “escolas” como prédios feitos de salas de aula e solidões. E eu pretendia que compreendessem que escolas eram pessoas jamais sozinhas. Se eu pronunciasse a palavra “projeto”, entenderiam que eu não estava a referir-me ao plantar uma horta, muito menos a uma “aula de meditação” de um “projeto para apaziguar hipercinéticos”? Face à dificuldade de me fazer entender, resolvi redigir um glossário. Eis como definia “escolas” e “projeto”.

“Escolas” são pessoas, que aprendem umas com as outras. que aprendem no contexto de uma organização social dotada de autonomia, em todo e qualquer lugar com potencial educativo. Pessoas aprendem na intersubjetividade, no vínculo estabelecido com um objeto de estudo e com mediadores. 

Implícita ou explicitamente, as pessoas são os seus valores. Estes, quando transmutados em princípios de ação, são geradores de projetos. E, em espaços de aprendizagem, dentro e fora de um edifício escolar, pessoas empreendem caminhos de reelaboração da sua cultura pessoal e profissional. 

No último dia de janeiro de vinte e dois, fui até ao lugar onde Darcy, quarenta anos antes, lançara o seu projeto de Educação Básica. Fui ajudar a Maria Paula e os professores de Mendes a retomar o rumo sugerido pela Jaqueline, e a celebrar o legado de Darcy. 

 

Por: José Pacheco

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