Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXXV)

Lousã, 1 de abril de 2042

Vai para mais de setenta anos que isto aconteceu.

“A sala do senhor diretor é ali, ao fundo do corredor” – Segui a indicação da funcionária e pedi para entrar.

Silêncio de cemitério. Crianças encolhidas, cabeça baixa, copiando um texto de um livro. Régua de cinco olhos em cima da secretária e vara comprida encostada à parede. 

“Venha cá, colega! Já estava à sua espera. Vem se apresentar, não é? Ainda bem que chegou um homem! Já se me estava a esgotar a paciência de aturar estes ganapos. Do que eles precisam é de alguém com pedagogia musculada, que lhes arreie forte e feio, sempre que eles precisarem”. 

Fiz-lhe ver que não costumava recorrer a castigos e muito menos aos corporais.

“Não seja mole, colega, não seja mole! Você é novo, inocente. Vá por mim, que já cá ando há trinta anos. A letra com sangue entra! Com sangue, fique sabendo!”

A conversa descaiu para uma análise, pouco fundamentada, do insucesso:

“O colega não espere tirar grande coisa destes gandulos. Pancada é do que eles precisam!”

Tentei concluir a desagradável “apresentação”, argumentando com a possibilidade de fazer com que a maioria das crianças não reprovasse, que não ficasse pela segunda ou terceira classe. Altaneiro, sarcástico, aquele diretor macho se pronunciou, exatamente como vos digo e se a memória não me trai:

“Ó colega, não sabe por que é que a educação está como está? Caro senhor, está-se mesmo a ver! Na nossa profissão só se vê mulheres. É só mulheres! Está explicado!”

Eu não queria acreditar no que ouvia, mas ouvi, claramente ouvido. Efetivamente, sempre que abria um qualquer livro que reunisse biografias dos mais insignes pedagogos dos últimos séculos, inevitavelmente deparava com referências a dez ou vinte homens e… a uma ou duas mulheres. Confirmar-se-ia que dos fracos não rezava a história? Seria mesmo demérito das mulheres? 

Era evidente que não era! De Louise Michel a Ellen Key, de Irene Lisboa a Nise da Silveira, da Maria Nilde à Amanda Alberto (esta de nome semi-masculino, por vontade do pai), a lista de ilustres educadoras era extensa, mas não totalmente revelada. Por que tal ostracismo imposto à “metade do céu”? Se eu quisesse prestar-me a machismos, diria que, da Alma de Mahler à Elise Freinet e à anónima companheira de Einstein, “por detrás de um grande homem havia sempre uma grande mulher”. Ou seria o contrário? Ambas as afirmações estariam corretas e era arbitrária a ordenação das palavras. Restava redimir uma injustiça, repartindo méritos e deméritos por ambos os gêneros.  

Nesse tempo, atitudes “fundamentalistas” não me surpreendiam e eu reagia com benevolência. O “Pater Familias” era um dos culturais sustentáculos da Ditadura. E nunca me esqueci de o vosso pai (na idade dos quatro anos) ter ido ver quem estava a bater à porta da nossa casa e me perguntar:

“Pai, está ali um senhor a perguntar quem é o chefe da casa. O que é um chefe? Quem é o chefe?”

Respondi que éramos todos. Ele, também. Por isso, sempre que se fazia a apologia do regresso ao tempo do Viriato, eu reagia. Não me refiro ao suposto herói, que punia os invasores romanos sem dó nem piedade. Era outro Viriato, mas, pelo que me disseram, entre a pedrada certeira do patriota e a disciplina de caserna imposta pelo vetusto professor, era escassa a diferença. Não seria de admirar que, entre os personagens desta estória e da história distassem somente dois mil anos, uma distância temporal despicienda, se considerarmos serem as mudanças em educação tremendamente morosas. 

Amanhã, vos contarei um episódio, que é prova de que o insucesso escolar não era uma questão de gênero.

 

Por: José Pacheco

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