Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXIX)

Monchique, 28 de junho de 2042

Ontem, falei-vos de Lourenço Filho. Hoje, invoco Sampaio Dória, que também fazia parte da legião de ilustres desconhecidos. 

Nos idos de vinte, era difícil encontrar as suas obras nas bibliotecas das faculdades de educação. Depois de as estudarmos, não se poderia negar a importância do legado, mas a herança de Dória era, quase totalmente, ignorada. Havia explicação para o fato: os professores estavam assoberbados por reuniões e papelada, sem tempo para a leitura de livros das bibliotecas, que um bom ministro enviara para todas as escolas. Aliás, nem sequer tinham tempo para ler o projeto educativo da sua escola ou a lei de bases. 

Pouco se sabia sobre o seu trabalho realizado na Escola Normal da Praça, era difícil encontrar um livro seu nas melhores bibliotecas de São Paulo e nem em sebos ela aparecia. Apenas encontrei três livros e a sua leitura foi suficiente para poder concluir que Dória estivera muito à frente do seu tempo. Era grande a sua coragem. Quando viu suprimidas liberdades e garantias individuais recusou ler nas suas aulas o texto da Carta de 1937. Participou nas manifestações contra o regime, foi sumariamente demitido e exilado.

Talvez haja explicação para o ostracismo a que génios da pedagogia foram votados. No começo da República, a Educação era um apêndice do Ministério dos Correios e Telégrafos. Dória não hesitava na crítica de tal situação: 

“Os propagandistas da república se contentaram com bem pouco. Montaram uma esplêndida e faustosa máquina, mas esqueceram de cuidar do motor inicial, de onde lhe poderia vir a energia de vida. Hoje, temos uma fachada decorativa da democracia” [o “hoje” a que ele aludia era o de muitos anos atrás]. 

O Brasil, repleto de riquezas latentes, só será realmente uma nação poderosa e triunfante, se os seus governos primarem no propósito, decisivo e obstinado, de alfabetizar o seu povo, acabrunhado e murcho, numa indiferença que apavora. 

O monstro canceroso, que hoje desviriliza o Brasil, é a ignorância crassa do povo, o analfabetismo que reina do norte ao sul do país.” 

Esta citação data dos primórdios do século XX, mas poderia retratar o estado da educação dos idos de vinte do século XXI.

Os seus escritos sobre analfabetismo datam de 1918! E a sua visão de futuro viria a culminar na criação das “escolas de alfabetização”. Dória possuía perfeita consciência de que “governo democrático e ignorância do povo são duas coisas que se chocam, se repulsam, se destroem”. Em 1918, o insigne pedagogo pretendia erradicar o que considerava o mais grave problema educacional do país: o analfabetismo. Sabia que “o método” era mais do que uma questão de organização do ensino, sendo a expressão de mudanças culturais profundas. Criticava a alfabetização que começava pelas letras, depois pelas sílabas, em seguida pelas palavras, porque cometia “o crime de alhear a criança, desde cedo, das realidades que a encanta.” 

A escola, que ainda tínhamos, há vinte anos, alheia aos propósitos de Dória, alfabetizava turmas, ensinando a todos do mesmo modo, como se de um só ser humano se tratasse, produzindo milhões de analfabetos. 

No seu livro “O que o cidadão deve saber”, publicado em 1919, realçavas as qualidades e a visão de outros brasileiros, como Rui Barbosa, para sublinhar a necessidade de educar no exercício de uma cidadania responsável:

“Não há nada mais a fazer, além de educar civicamente o povo para o futuro”. 

Mas, como escreveu no livro “Educação”, não se educaria para a cidadania, mas na cidadania: 

“Quando alguém aprende a dançar, não adianta nada o mestre dançar por ele“.

 

Por: José Pacheco

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