Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXVII)

Canelas, 17 de julho de 2042

Ficastes surpreendidos – “chocados”, como disse o Marcos – com aquilo que escrevi na cartinha de ontem. Mas, crede que preencheria dezenas de cartas só com notícias de múltiplas violências. E ficai sabendo que, no julho de há vinte anos, paralelamente à desumana tragédia, brotavam e cresciam projetos de humanização. Esta cartinha versará musicais frutos do engenho humano, pretende ser como que um contraponto da fealdade exposta na missiva de ontem.

O congresso de Gaia começou com as canções interpretadas por um grupo de jovens com trissomia 21 e por um professor de música sensível e solidário. Escutei-os cantar versos de Pessoa, beleza pura reencontrada no Brasil, que foi mátria de uma segunda vida.

O Mestre Agostinho dizia ser o Brasil um grande laboratório do mundo. Até entre músicos encontrei fundamento dessa afirmação. Á maneira de Monsieur de La Palisse, diria que educador é aquele (ou aquela) que educa, que exerce uma práxis coerente e, enquanto fundamenta a prática com o quanto baste de teoria, contribui para a melhoria da educação. 

Aquele professor de música não recebia o devido reconhecimento pela beleza que produzia. À semelhança de um compositor de nome Heitor, que juntou centenas de pessoas num estádio, num pedagógico espetáculo musical. 

Heitor foi alvo de críticas por ter reinventado as fundações de uma comunidade musical brasileira.  Acrescentou o Canto Orfeônico, que integrava um projeto educacional mais vasto, a que juntou um “Guia Prático”, reunião de canções de várias influências musicais, para ser trabalhado nas escolas. 

Villa-Lobos traduziu os sons do Brasil. E, ao implantar o canto orfeônico nas escolas públicas, promoveu o encontro de vozes e culturas, divulgando o rico folclore do Brasil, do coco à ciranda e ao repente, cultivando manifestações populares, como o chorinho, porque sabia que a arte e a educação eram as bases da construção de uma sociedade. 

A data de nascimento de Heitor Vila-Lobos é, hoje, celebrada como o “Dia Nacional da Música Clássica”. Ele criou uma linguagem musical brasileira em obras que contemplam culturas regionais. Na sua obra se podia escutar o cantar dos pássaros e perceber a diversidade de influências e culturas. A ele se deve a fundação da Academia Brasileira de Música, pois acreditava que a música era um direito do povo e que “uma nação alfabetizada pode ter incorporada a sua personalidade princípios éticos a partir de um senso estético”.

Perdoai que acrescente algumas considerações mais ou menos didáticas a uma cartinha aberta, que acredito que alguns professores possam ler. Aproveito o ensejo para dizer aquilo que já sabeis, mas que, porventura, outros precisem saber. Considero que, pela via da música, da cultura musical o Heitor ajudava a fazer comunidade. 

Isso mesmo! A música tem um papel agregador. Moradores de um lugar geográfica e axiologicamente definido, conscientes de atuar em busca de um objetivo comum, promoviam coesão, cimento de comunidade. No compartilhamento de determinada visão de mundo, na visão de um mundo novo, uma nova humanidade renovava o conceito de laço familiar e revia a história (mal contada) dos vencedores.

Buber dizia que a tradição e as normas comunitárias não poderiam ser o único elo formador de uma comunidade. Existia uma constante renovação entre o real e a representação do real, que fazia com que o elo fundante de uma comunidade estivesse para além do campo dos dogmas e regras. Falava-nos de uma lei intrínseca da vida, de um processo criativo, que respeitava as tensões entre subjetividades. 

 

Por: José Pacheco

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