Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXCVI)

Butantã, 14 de setembro de 2042

O setembro de há vinte anos foi mês de morte e de ressurreição. Em dois tristes dias chegaram notícias da partida da Therezita e do Kevin.

Foi pelo início do século que descobri o Te-Arte. Foi após a minha primeira visita à Escola Amorim Lima. No lado oposto da Praça Elis Regina, aconteceu um deslumbramento dos sentidos. Ali, tudo tinha a medida da infância. E, por assim ser, a presença dos adultos que ali educavam fazia sentido. 

Acompanhei a Therezita na terceira CONANE (Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação), a de 2013, em congressos como o de Guarulhos, onde fizemos a foto que encima esta cartinha. Combinamos encontro no Projeto Âncora, mas a Therezita sofreu um pequeno acidente, e a reunião com a discípula Renata e o sobrinho Pedro não se realizou. Encontramo-nos em tantos lugares, que nem sei dizer. O que sei é que muito aprendi com o exemplo dessa Mestra.

Restou o travo amargo de algumas confidências dela escutadas. Muitos anos antes, a Therezita solicitara alvará para o seu jardim de infância. Um ministério burro recusou-lhe esse estatuto, porque o chão do Te-Arte não era plano, o que constitui, na opinião dos burocratas, um perigo para as crianças. Havia árvores, às quais as crianças poderiam subir e… cair. Mas, nunca uma criança do Te-Arte necessitou de tratamento hospitalar.

A lista de absurdas exigências era longa: as paredes teriam de estar pintadas de branco asséptico, o número de crianças por metro quadrado superiormente estabelecido não poderia ser ultrapassado, as crianças deveriam usar uniforme e serem divididas por turmas e por idades. Dignamente, a Therezita recusou cumprir as ministeriais exigências. E os idiotas ministeriais apenas reconheceram o Te-Arte como “centro de recreação”. 

Felizmente, ficaram registos. A Dulcília escreveu um belo livro sobre um lugar onde a sensibilidade se reinventava a cada instante e o impulso criativo ganhava raízes. A Fernanda, que fora criança feliz no Te- Arte, realizou um documentário, o “Para o amanhã nascer feliz”. Assisti à sua projeção na tela de um cinema de São Paulo e pude confirmar que uma vida dedicada ao cuidar da infância não se extinguiu no doze de setembro de há vinte anos – o seu espírito permanece vivo, até hoje e pela eternidade. Imagino-a no seu lugar etéreo, conversando com o Darcy, a Nise, o Agostinho, a Nilde… 

Um ano antes do desenlace, no dia do nonagésimo aniversário da Therezita, a Fernanda fazia o “retrato” de uma educadora ímpar:

“Professora capixaba, avó universal, mentora, musa inspiradora, mulher porreta, criou em plena ditadura militar a escola quintal Te-Arte, um trabalho disruptivo, que segue sendo uma referência, um refúgio e um oásis para as nossas almas. 

Com seu rigor fundamental, amorosidade e muito estudo e trabalho, a Tê vem distribuindo sementes de afeto e coragem para centenas de crianças, famílias e educadores que tiveram a sorte de, neste espaço atemporal, sem separação por idade, de natureza abundante, muita música, arte e cultura popular brasileira, vivenciar no corpo brincadeiras, tempo para fazer nada, para se descobrir e se conhecer, para brincar com o barro, com areia, para subir em árvore, colher e comer fruta do pé, tempo para construir brinquedos com martelo e serrote de verdade, para romper pinhatas e atravessar ritos de passagem, para conhecer nossas raízes culturais, para ouvir histórias de saci, de bruxa e lobisomem, comer vaca atolada, bolo de fubá, paçoca, pé de moleque e pipoca, e para aprender a respeitar os limites, a si e ao outro.”

Bem hajas, Therezita!

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