Brumadinho, 6 de novembro de 2042
Eis-me atravessando o São Francisco, a caminho de Caetité. Que saudades que eu já tinha de voltar a tocar o berço do Anísio! Já cá não vinha desde os idos de vinte. É quase uma romagem a tempo idos, aos meus primeiros tempos de Brasil. Foi o Anísio, juntamente com Eurípedes, Nise, Lauro, Amanda, Darcy, Nilde, Freire, Cecília e uma plêiade de ilustres educadores brasileiros, quem me levou a repensar décadas de projetos, que ficaram pelo caminho.
As escolas do passado eram cemitérios de talentos, túmulos de inovação. Nos idos de vinte, a Ponte era uma das raras exceções à regra do precoce desaparecimento de iniciativas inovadoras. Mas, também ela havia parado no tempo. Vivíamos cercados de incerteza, precariedade, num sistema educativo padronizado, fragmentado e excludente.
Revisitei a casa onde Anísio viveu os últimos anos da sua vida. Visitei-a quando adentrei os cafundós da educação baiana, no início deste século. Passei longas e saborosas horas lendo livros da biblioteca que Anísio nos deixou. Num desses livros, Anísio falava-nos de um “divisor de águas entre duas “mentalidades, que se defrontavam no Brasil: de um lado, os que, explícita ou implicitamente, não acreditavam no Brasil, e de outro, os que achavam que a nação se poderia redimir pela educação.
Lamentavelmente, no tempo de potencial mudança dos idos de vinte e dois, ao invés de se retomar Anísio, apenas se disputava uma cadeira de ministro. Mais uma vez, se hipotecava o futuro da educação, a troco de negociatas de baixa política. Não se cuidava de preparar a atualização da mensagem do malogrado Mestre, que pugnava por uma nova escola, aquela substituísse a reprodução de “formas arcaicas de ensino pela exposição oral e reprodução verbal”.
Anísio estava consciente de que, para haver inovação pedagógica, se requereria inovação normativa. Não poderíamos continuar estrangulados numa camisa de força legal, graças à qual, como o Mestre dizia, “alterar a posição de uma disciplina no currículo ou diminuir-lhe ou aumentar-lhe uma aula fosse considerada uma ‘reforma de ensino’”.
Mas, status quo res erant. No Brasil da educação de há vinte anos, imperava o tráfico de influências e a “incompetência especializada”, reforçadas pela indiferença de uma sociedade civil apática. Mutatis mutandis, os regulamentos paridos pelas secretarias da educação e pelo ministério nada alteravam, eram concebidos como meros paliativos dos males do “sistema”.
Anísio postulava que o aluno deveria ser o centro do processo de aprendizagem, mas a administração educacional impunha às escolas práticas instrucionistas, nas quais o centro era o professor.
Uma secretaria citava Anísio no documento orientador da política educacional do estado (“Currículo em Movimento”). Mas o currículo imposto às escolas pela secretaria de educação impedia o “movimento”, estava parado no tempo.
Os funcionários dessa secretaria chamavam “escola classe” e “escola parque” – conceitos criados por Anísio – a alguns prédios que, nesse tempo, eram considerados “escolas”. Mas as práticas desenvolvidas dentro desses prédios eram em tudo contrárias à proposta do Anísio da “Escola Nova”.
Desde que me conheço e me reconheço como professor, o amigo Nóvoa pregava no deserto, dizendo ser necessário passar do pedocentrismo para a aprendizagem, da normalização para a diferenciação, da separação para a reunião. Enquanto isso, os seus colegas da academia e do ministério faziam-se desentendidos, irredutivelmente se mantendo… pedocentrados, normalizados, separados.
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