Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXVI)

Mendes, 26 de novembro de 2042

No decurso de uma roda de conversa, o Mauro me interpelou querendo saber que virtudes eu teria encontrado no Miguel. Respondi: verdade, coerência, amorosidade. 

No Encontro de Mendes, primorosamente organizado por uma secretaria de educação ajudada pelos meus amigos Tina, Mauro e Valéria, senti que começavam a ser dissipados tempos de mentira, egoísmo e ódio. Naquele dia de novembro de vinte e dois, a pergunta do Mauro me transportou para outro novembro da década de setenta, quando me veio à mente um episódio vivido na escola dos tempos de ódio da ditadura.

Perguntei ao João por que tinha sido expulso de outra escola. Baixou a cabeça, não respondeu. Perguntei-lhe: 

“O que queres fazer?”

“Nada! Você não é meu pai, não me pode obrigar!”

Repeti a pergunta:

“O que queres fazer?” – e estava decidido a fazê-la as vezes que fossem precisas, até que o João dissesse o que desejava fazer.

“Quer mesmo saber o que eu quero?” – ripostou.

“Quero”.

“O que eu quero é matar os professores!” – gritou.

Essa resposta deu origem a um dos projetos que mais gostei de acompanhar. Terminou no quarto dia, quando o João me abraçou, dizendo:

“Professor Zé, eu acho que já não quero matar.”

“Porquê?” – quis saber.

“Porque eu vi que os professores daqui até nem são más pessoas.”

Feita a cartarse, procedemos à reparação dos danos causados no João. Ele não era violento, ele fora violentado. Depois de alguns “acabamentos” psíquicos e amorosos, o João que queria matar professor foi pela vida de aluno, até acabar… um amoroso professor..

O Encontro de Mendes foi para mim um divisor de águas. Encontrei alguém a quem devo discretas lições de amorosidade. Alguém que, para além de excelente educadora, encarnava o espírito de Darcy e o concretizava em práticas pautadas nas virtudes que eu identificara, na viagem dos idos de vinte e dois. Alguém que soltou um choro acumulado e decidiu refazer-se, viver a vida que sonhara.. 

Também Darcy era um fazedor de utopias em tempos distópicos. Não temia revelar as suas humanas fragilidades, desnudando fragilidades alheias. Era irreverente, incômodo, tudo o que um político “tradicional” não conseguia ser. Companheiro de Anísio, numa relação  nem sempre pacífica, mas respeitosa, Darcy se deixou influenciar pelo mestre escolanovista e se embrenhou em leituras de Freire a Florestan. Juntou à antropologia o quanto baste de intuição e compreendeu ser necessário questionar a Escola do seu tempo. 

Em alguns passos, a  LDB por si esboçada traduz essa intenção. Mas, quer antes, quer depois da publicação da lei, e até à década  de trinta, apenas assistimos a tímidas aproximações a práticas escolanovistas. Quanto muito, a projetos escritos, que falavam de protagonismo juvenil, de autonomia do aluno, mas que a prática desmentia – o aluno continuava sendo adestrado, numa sala de aula, em que o centro era o professor. 

Na construção do Sambódromo, espaço de desfiles carnavalescos, já essa mistificação surgia, anulando a intenção de Darcy. Ali, o Mestre pretendia instalar uma escola de formação de professores, um centro de artes, quadras de esportes e bibliotecas. Logo a velha escola infetou o projeto de Darcy, o conservantismo obrigou a prever utilizar as instalações do Sambódromo para abrigar 160 salas de aula e 43 salas administrativas. 

Passaria muito tempo, até ao dissipar dos tempos de ódio. Décadas se perderam na inoculação de paliativos no “sistema”. Até que chegou o tempo de Freire reafirmar que a educação é um ato de amor. O tempo de Darcy, finalmente, entrar na velha escola, para nos ajudar a fazer Escola Pública.

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