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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLIII)

Trancoso, 13 de novembro de 2042

Sempre que visitava uma escola, passava por três espaços-radiografias: os banheiros, a Biblioteca e a Sala dos Professores. E foi na Sala dos Professores que conversei com o meu amigo F. 

A conversa chegou ao seu auge, quando lhe perguntei… onde era a “Sala dos Alunos”. Compreendi que não conseguia fazer-me entender. Ou talvez ele não me escutasse.

“Mas, então, cadê a Escola?” – replicou.

“É de Escola que eu tenho estado a falar.” – respondi.

“Mas, então, tem de haver Escola! Não é?”

“De que Escola estamos a falar, meu amigo?”

Era difícil comunicar com quem estava possuído pela ideia de que a Escola era aquela instituição degradada no início da Modernidade e que arrastou a sua degradação para além da Modernidade e da Pós-Modernidade (se isso existiu).

Apressei-me a dizer-lhe que voltasse a ler o Bordieu, que ele tanto admirava e que tinha sido a vedeta do seu doutoramento.

Abraçou-me e foi dar a sua aula, numa “Sala de Aula Normal” (era esse o dístico afixado sobre a porta da dita sala).  

Entrei em muitos banheiros (os quartos de banho portugueses). Em todas encontrei os mesmos dísticos, os mesmos avisos: “Por favor, urine dentro do vaso”) e recomendações (“Por favor, dê a descarga”). 

Por favor se solicitava os mais elementares comportamentos: “Por favor, não lave a cuia neste lavatório”, “por favor, não suba para cima do vaso”. 

Do chão da escola aos gabinetes dos ministérios, passando pelas universidades, o interior das portas dos sanitários exibiam sugestivos desenhos, predominando elementos fálicos. E ostentavam frases de alto gabarito intelectual e moral elevada.

Por que seria necessário pedir favores, lembrar o óbvio?

Era por demais evidente a deformação sócio-moral dos utentes. Encolhiam os ombros, quando lhes perguntava se professores e alunos partilhavam o mesmo banheiro. 

Não se conseguia entender por que estavam separados. Nos seus lares, também haveria banheiro de pai separado do banheiro do filho?

Indiferentes à estranha situação, moralistas de duvidosa moral questionaram a existência de um banheiro “unissexo”, idêntico àqueles de que qualquer habitação dispunha. Políticos fundamentalistas acusaram de “indecente” uma escola onde havia banheiros utilizados por crianças de tenra idade, sem discriminação de género. 

Perguntei-lhes se os banheiros dos aviões utilizados para irem à Disney, ou os ônibus das excursões escolares, dispunham de banheiros para homens separados de banheiros para mulheres.

Como era podre aquela moral! Nas escolas, havia banheiros de alunos que nem papel higiénico tinham e banheiros de diretores dotados de ar condicionado!

Cedo identificamos a degradação da “Escola” do meu amigo F. e nos apressamos a criar acordos de convivência. Era a partir de compromissos prévios que se legitimava e configurava o ato de educar, que a Escola da Ponte se definia como uma escola inclusiva, como uma escola sem muros, uma escola de todos, uma escola cidadã. Ali, no lugar de prescrições a cumprir, havia um processo de reflexão participada e de compromisso. 

Os visitantes da Ponte surpreendiam-se com a ausência de cartazes com pedidos de comportamentos óbvios. E concluíram:

“Não há pragmatismos tecnocráticos que permitam iludir a dimensão axiológica dos projetos educacionais que entendem a Escola como um espaço cultural aberto a todos e plural. Um espaço que se define em função dos pressupostos de uma sociedade democrática e que, a seu modo, pode contribuir para que esta sociedade também se construa como tal, a partir do conjunto de realizações que aí têm lugar.”

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLII)

Arraial d’Ajuda, 12 de novembro de 2042

Queridos netos, 

Quando me perguntais por que padeço deste vício epistolar, o que vos deverei responder? Se me imponho este diário exercício de escrita é porque ainda há quem padeça de uma estranha cegueira que, por mais de duzentos anos, afetou professores, administradores e outros funcionários de um “sistema de ensino”, cuja podridão engendrou fenômenos como aquele que vos passo a relatar. 

Num tempo anterior ao vosso nascimento, quando decorria a década de noventa do século passado, uma guerra eclodiu nos balcãs. A somar-se aos horrores que qualquer guerra engendrava, se juntaram atos de extrema crueldade. Instalou-se o comércio de “safaris humanos”. 

Pessoas ricas pagavam avultadas quantias para poder participar nesses “safaris”, que consistia em usar uma carabina, subir a arranha-céus e atirar contra civis, matando-os.

Uma longa-metragem dos anos vinte revelou esses hediondos crimes contra a Humanidade. Não se tratava de mercenários ao serviço de uma das partes do conflito armado. Eram atiradores furtivos – chamados “snipers”, ou franco-atiradores – civis estrangeiros, que pagavam elevadas quantias para disparar, indiscriminadamente, contra cidadãos de Serajevo, que passavam pelas ruas. 

Calcula-se que 225 pessoas, entre as quais 60 crianças, tivessem sido vítimas desses monstros assassinos. 

Quem os teria educado, deformado? Quem engendrara bonsais humanos? Foram as suas famílias, os seus exemplos, as suas “tradições”. Foi uma sociedade doente servida por uma escola que, até aos idos de vinte, reproduziu um modelo escolar e social obsoleto. 

Apesar da escola, famílias havia que cuidavam de proteger os seus filhos das pragas sociais e de um iníquo “sistema de ensino”. A Ponte acolhia “pedidos de matrícula” de pais preocupados e ansiosos, por serem essas matrículas proibidas, pois se tratava de “alunos fora da área de residência”. Nós os “matriculávamos”. E sobre tais “prevaricações” vos falarei em próxima cartinha. Retomemos testemunhos…

“Trata-se de uma opção que conduz para o centro da cena educativa a discussão acerca do que entendemos por educar, o que entendemos por saber, por aprender. Uma opção a que podemos aceder através do reconhecimento do património pedagógico que a Escola da Ponte construiu, uma escola que é pública e democrática, porque aí se desenvolve uma experiência de trabalho: 

onde as crianças não são seres exteriores e estranhos ao processo de interpelação que conduz à construção do saber; 

onde os professores apoiam os alunos a confrontarem-se com informações relevantes e a construirem outros significados acerca da realidade e da relação que estabelecem com a mesma, o que constitui uma condição incontornável para aceder ao património cultural disponível e aos instrumentos que este nos fornece; 

onde se entende o acto de aprender como um processo que se inicia a partir do confronto, quer entre a realidade objectivável e o conjunto de significados que cada um constrói acerca da mesma, quer entre as experiências pessoais e a estrutura das regras sociais pré-existentes e dos saberes já estabelecidos;

onde não se dissociam as aprendizagens ditas instrumentais do processo de formação pessoal e social das crianças que frequentam aquela escola.”

Uma pergunta de velho me ocorre: 

Se os autores dessas linhas – professores universitários – isso concluíam, que interesses obscuros os impediam de agir em coerência com as conclusões dos seus estudos? Porque consentiam que, do chão da escola à universidade, o “sistema” se perenizase?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLI)

Pompeia, 11 de novembro de 2042

Retomemos a narrativa do Rui e da Ariana:

“Naquela escola, e pese a visibilidade pública que assumem os dispositivos de gestão do quotidiano escolar (a Assembleia de Escola, a caixinha dos segredos ou, entre outros, o quadro dos direitos e dos deveres), é através da articulação entre tais dispositivos e o modo como se encontra organizado o espaço e o tempo da aprendizagem dos alunos que aqueles propósitos e aquelas práticas se revelam. 

Um espaço e um tempo de aprendizagem em cuja gestão os alunos participam, que visa assegurar que estes possam desenvolver uma relação singular e significativa com o saber que se valoriza no âmbito da educação escolar, condição para deliberadamente se promover as relações de cooperação e de partilha que permitem que, também por esta via, o ato de aprender possa constituir uma oportunidade de formação pessoal e social, contribuindo para transformar o contexto escolar num contexto de afirmação de uma cidadania de carácter democrático.”

Não é, contudo, sobre os dispositivos potenciadores da aprendizagem da Escola da Ponte que importa refletir, mas sobre o que esses dispositivos nos podem revelar acerca de algumas das dicotomias que bloqueiam a reflexão sobre os sentidos e as finalidades da educação escolar e, subsequentemente, sobre o modo de promover projetos de intervenção educativa neste âmbito. 

A oposição alunos-professores, a oposição entre o ato de ensinar e o ato de aprender, a oposição entre o saber do quotidiano e o património cultural ou a oposição entre a exigência académica e a inclusão escolar são algumas das clivagens em torno das quais se estabelece uma discussão que, apesar de estéril, tem vindo a configurar um número significativo de discursos sobre a Escola e a sua importância educativa. Para os que se situam no campo conservador, todos os problemas vividos no seio dos contextos escolares, na atualidade, decorreriam, assim, da subvalorização da ação dos professores e do ato de ensinar, opção que, na sua opinião, conduziu à crescente falta de qualidade educativa das escolas. Aqueles que perfilham de uma perspectiva voluntarista de recusa dos pressupostos e das práticas inerentes ao conservadorismo pedagógico tendem, por seu turno, a construir uma representação excessivamente vitalista do ato de aprender e da importância da experiência dos sujeitos neste âmbito. 

É perante este cenário que a Escola da Ponte pode constituir um ponto de referência de uma reflexão tão urgente quanto necessária acerca das condições pedagógicas a respeitar para que se possa definir uma escola como um contexto educativo democrático.” 

O Rui e a Ariana contribuíram para que a Ponte não se transformasse num mito. Eu os secundei, não permitindo que dela fizessem uma “fôrma”, um modelo a replicar. A Ponte foi um ícone, inspiração para milhares de educadores.

A Escola da Ponte era, verdadeiramente, uma escola pública e democrática. Mas não poderia ser utilizada como uma espécie de fôrma. Poderia ser sensível à mensagem do meu amigo Paulo César:

“Quando um dia tivermos uma escola dedicada a descobrir o que cada um faz melhor e com mais vontade, sem promover falsas hierarquias em relação ao que se estuda e como se estuda, estou certo de que os quadros de honra e os diplomas de mérito deixarão de existir.”

Sempre que me pediam para fazer uma “Escola da Ponte no Brasil”, eu respondia ser algo impossível. A Ponte nascera num tempo e lugar específico. Embora, como ireis ver mais adiante, tenha mudado de lugar em tempos sombrios. 

Ficai atentos às próximas cartinhas. 

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (ML)

Congonhas, 10 de novembro de 2042

Dissestes que talvez eu não fosse isento no historiar a Ponte, por ser o meu olhar um olhar por dentro. Então, ao invés de o fazer, abrirei a escola aos olhares de quem a conheceu por fora. Não sem antes reproduzir o conteúdo de uma reportagem de televisão transmitida no dia dez de novembro (de há vinte anos).

Era mais uma reportagem entre muitas, que davam conta de iniciativas consideradas “inovadoras”, mas que não passavam de paliativos dos males do “sistema”. 

Dessa vez, tratava-se da divulgação do “Projeto Escola vai ao Bairro”, um projeto “para adultos que abandonaram a escola” (sic). 

Consistia em “levar os professores para fora da escola, para os bairros sociais”. E uma “finalista” do curso elogiava-o porque, antes, o seu horário de trabalho não lhe dava oportunidade de fazer estudos, de ir à escola… ou de “ficar no bairro”.

Nas escolas de sala de aula, não se cuidava de saber por que razão aqueles jovens tinham abandonado a escola. Seria porque o horário não “dava oportunidade”? 

Para colmatar os graves efeitos do instrucionismo, não se alterava o modo de gerir o tempo, inventava-se “aulas de reforço”, aulas de “recuperação de aprendizagens”, aulas com pacotes “sócio emocionais”, de meditação e quejandos. Os “centros de explicações” floresciam. As escolas de “segunda oportunidade” tentavam minorar estragos. A “Escola Pública” era uma miragem.

A dita reportagem terminava com a notícia da “bênção das capas dos finalistas do secundário, celebrada com missa jantar a e festa, com fato e capa”.

“Alguns finalistas não têm possibilidade de as comprar” – comentava a repórter – “Mas a loja solidária da câmara encontrou a solução. Os fatos são emprestados. O importante é ir, até mesmo quando não parece verdade” (sic).

Sem comentários! Passo a palavra ao Rui e à Ariana que, no início deste século isto escreveram:

“Não se poderia prestar pior serviço à Escola da Ponte do que entendê-la como o arquétipo em função do qual se deveria definir o modelo de escola pública e democrática. O que não significa que não entendamos a Escola da Ponte como um contexto escolar que nos permite compreender o que pode ser uma escola pública e democrática e que não possamos discutir a configuração desta escola a partir do projeto “Fazer a Ponte”

Recusar a existência da fôrma que a Ponte poderia constituir não significa, no entanto, que não se aceite discutir um modelo conceptual que permita configurar uma escola pública e democrática, a partir da definição de um conjunto de variáveis e mesmo de propriedades invariantes que, quer do ponto de vista administrativo, quer do ponto de vista organizacional, quer do ponto de vista pedagógico, possibilitem aceder a esse modelo. 

Em todas estas vertentes, reconhecemos que a Escola da Ponte pode contribuir, de forma iniludível, para que essa reflexão aconteça, mas é sobre a dimensão pedagógica do projecto “Fazer a Ponte” que nos iremos debruçar, a partir da interpelação do património e da experiência que os professores daquela escola de Vila das Aves foram construindo e desenvolvendo ao longo dos últimos 25 anos. 

É esse património e essa experiência que poderão constituir um referente para refletirmos e discutirmos sobre as escolas como organizações que prestam um serviço público no âmbito de uma sociedade que se pauta por valores que a identificam com uma democracia. Do ponto de vista pedagógico, quais são as implicações de uma tal opção?”

Quais seriam? Provada que foi a excelente qualidade da “Escola Pública da Ponte”, por que não se cuidou de melhorar a dita “Escola Pública”?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXLIX)

Várzea Grande, 9 de novembro de 2042

Netos queridos, na Brasília do novembro de vinte anos atrás, decorriam reuniões da “equipe de transição” para um novo governo. Cada dia mais apreensivo, eu ia recebendo notícias do que à Educação dizia respeito. 

Numa revogação do “entulho” (sic), de “atos que impediam avanços que precisavam ser produzidos na Educação”, eu identificava a manutenção do “entulho”. E um pressentimento me assaltava, o de que, ali, não se gestavam novos caminhos para a educação, mas atalhos que a nada conduziriam. 

Mais quatro anos seriam perdidos? Vos contarei o que, entretanto, aconteceu. Por agora, apenas vos falarei de uma das iniciativas de política educacional em que me vi envolvido e que precederam esse tempo de potencial mudança. 

Sete anos antes, embora pensasse que não seria um português a dizer aos brasileiros qual a educação que lhes conviria, o vosso avô aceitou fazer parte do Grupo de Trabalho da Criatividade e Inovação criado pelo ministro Janine.

Em todas as reuniões chamei a atenção para medidas a tomar, antes de divulgar uma lista de escolas consideradas inovadoras. Entre elas, a celebração de termos de autonomia, que conferisse às escolas garantia de estabilidade e possibilidade de escolha. Outras prerrogativas deveriam ser incluídas no termo, mas duas delas se mostravam indispensáveis. 

A inovação matava a inovação. A grande mobilidade dos professores constituía fator de desgaste, pelo que os educadores das equipes de projeto deveriam manter-se juntos por um período nunca inferior a três anos. E as escolas com projeto deveriam poder escolher professores em concurso universal de critérios bem definidos.

178 projetos foram considerados inovadores. Meia dúzia de anos após a publicação da lista, restava meia dúzia. A falta de um termo inviabilizou ou desvirtuou a maioria dos projetos distinguidos pelo ministério. E, mais uma vez, uma nova prática educacional ficou pelo caminho.

Nas andanças pelos brasis das escolas, encontrei a prudência em forma gente, sempre solícita, aconselhando, prevenindo. Escutava esses educadores e refletia sobre os seus infundados receios. Mostravam preocupação com a minha proposta de publicação dos termos de autonomia – “talvez os secretários não permitissem”. 

“O que impede? O que está na lei que permita a um secretário “não permitir”? E a celebração de um termo de autonomia não é feita com um secretário, mas com uma secretaria” – respondia.

Depois de realizada uma avaliação externa à Escola da Ponte e provada que ficou a sua capacidade de agir responsavelmente num quadro de autonomia, foi consagrado o primeiro dos contratos. Com a sua assinatura, a ministra da educação validou um modelo organizacional de escola pública não convencional, reconheceu a possibilidade de a Escola da Ponte se organizar «fora» dos moldes tradicionais. 

Porém, com a alteração da lei da autonomia, banalizou-se o conceito e a prática, e o ministério produziu caricaturas de contratos e, ilegalmente, reduziu a autonomia da Ponte a um residual de direitos insignificantes. A esperança colocada no teor do “enquadramento jurídico (de 1989) se desvaneceu. Sucessivas alterações no decreto da autonomia anularam o seu potencial. O dever de obediência hierárquica se impôs. Os diretores acataram indignas determinações. Mais uma oportunidade de valorização da escola pública se perdeu.

Talvez o Brasil tivesse entendido que não poderia repetir os mesmos erros da velha Europa. E, entre 2023 a 2026, com algumas “correções de rota”, não se confirmaram os meus iniciais receios. 

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXLVIII)

Cuiabá, 8 de novembro de 2042

Querida Alice, querida Marcos, hoje, irei interromper a contação de estórias da história da Ponte, pois acordei com vontade de vos falar de um incidente ocorrido em meados dos anos oitenta.

Levaram-me até uma cidade a norte de Londres, onde decorria um grande congresso. Portugal mostrava a melhor educação que tinha (e que, internamente, o ministério tentava destruir). Estávamos em plena fase de adesão à Comunidade Económica Europeia, a CEE, que passaria a chamar-se União Europeia.

Os países ali representados mostravam aquilo que, já nesse tempo, diziam ser inovação. 

Essas “inovações” não passavam de vãs tentativas de melhorar um sistema falido. Por ali desfilavam arquitetos e as suas “escolas do futuro”, que não passavam de “elefantes brancos” prédios do passado reciclados. Escutei “especialistas” de tudo, lendo transparências de retroprojetor (ainda não havia computador e powerpoint). E tudo tão maçador, tão “deja vu”!

Quando chegou a minha vez, pouca vontade eu tive de falar da Ponte. Também porque os professores europeus não iriam acreditar que, na periferia do continente, uma escolinha que não constava dos livros de história da educação concretizara aquilo que eles apenas em teoria apresentavam.

Se, na Ponte, partíamos de perguntas para a construção de conhecimento, de igual modo eu agia em situações como aquela – começava por perguntar “O que quereis saber?”

Tive como resposta o habitual silêncio. Mas, nessa manhã, foi breve o hiato entre a minha pergunta e a reação de um palestrante. No dia anterior, passara por uma desagradável situação protagonizada por esse palestrante. Disse não acreditar no que eu dizia. Foi arrogante, sarcástico, até ousou comentar o meu modo de falar inglês. 

Tentei fazer-me desentendido e atirei mais uma pergunta. Por que seria a língua inglesa a língua oficial dos congressos? 

Não vos descreverei o despropósito que se seguiu, apenas o final. 

Afirmou que eu não deveria perguntar o que ele queria saber, mas que eu deveria expor a “mentira” contada no dia anterior… “Num inglês que ele entendesse”.

Contive-me perante aquela manifestação de arrogância. Mas o arrogante não ficou sem resposta. Perguntei:

“O colega sabe falar português?”

“É claro que não… of course!

“O colega já foi a Portugal? Convido-o a ir até lá e visitar a minha escola. Mas fique sabendo que a língua oficial por lá é o português.”

“Por que diz isso… why?”

“Porque passarei a falar inglês na Inglaterra, quando o colega falar português em Portugal”.

Quando o Chalita se interessou pelo trabalho desenvolvido na Escola da Ponte e na Escola do Projeto Âncora, a minha amiga Emília era vice-secretária. Reunimo-nos e preparamos um protocolo de colaboração, que os burocratas instalados na secretaria, de imediato, inviabilizaram. 

Alguns anos depois, escutei a Emília dizer ser necessário tomar uma decisão ética, que encurtasse a grande distância entre o discurso e a prática. Invocava Freinet, que destruíra e queimara um palco para ele preparado, um palco que distanciava. Os burocratas das secretarias, tal como o professor inglês, não sabiam que sofriam de “palco mental”.

Durante a “era dos extremos”, que foi o século XX, o mundo capitalista pautou-se por um ideal de homem autônomo, porém muito pouco solidário. No século XXI, um modelo educacional hierárquico, autoritário, ainda mantinha os professores instalados num “palco mental”, embora o artigo 30º da Constituição isto estipulasse: “construir uma sociedade livre, justa e solidária, reduzir desigualdades, promover o bem de todos”. 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXLVII)

Caetité, 7 de novembro de 2042

Voltando às estórias que fizeram a história de uma escola… Desta vez, dando lugar e voz a quem conheceu por dentro a Escola da Ponte, partindo de uma pergunta feita por um visitante, íamos em meados dos oitenta:

“Fui educada para comer, ouvir e calar. As pessoas não podem ser pessoas e passam as horas a treinar-se em algo que lhes dizem terem de ser. Gostaria de saber qual é o segredo da Escola da Ponte, que oportunidades de formação são dadas aos seus professores. O que os faz serem diferentes?”

Não havia segredo algum. 

A pesquisadora Emília enunciava um princípio de “resposta”:

“Ao longo de 25 anos, foi alterando a sua estrutura organizativa, desde o espaço (de “área aberta”, que as crianças percorrem como uma casa que verdadeiramente habitem), à gestão do tempo, ao modo (trabalho de pesquisa predominantemente), a uma muito maior participação dos alunos na planificação das aprendizagens e na vida social da escola, e a uma muito maior autonomia na sua realização. 

Inspira esta organização uma filosofia inclusiva e cooperativa que se traduz, por exempto, nas seguintes normas simples: todos precisamos de aprender e todos podemos aprender uns com os outros, quem sabe mais deve ajudar quem tem mais dificuldades. E quem aprende aprende a seu modo. O não estilhaçar da organização por classes implica um trabalho em equipa dos professores e a sua disponibilidade quase permanente.” 

A Mria Emília compreendeu que, se algum “segredo” houvesse, seria o trabalho em equipe, uma prática de formação transformadora. 

A Cláudia disso falava, quando citava depoimentos professores da Ponte por si entrevistados: 

“As universidades não nos preparam para educar as crianças para a responsabilidade, para a autonomia, para saber pesquisar. Quem vem para aqui começa a ver o ensino de outra forma. Não faz sentido pensarmos em hierarquia dentro da equipe do projeto e sim em autoria coletiva”.

A Ponte passou por situações de crise, enquanto não formalizou o seu contrato de autonomia. E, mesmo quando adquiriu o direito de selecionar os seus professores, a cultura profissional de alguns professores contratados deteriorou laços afetivos. 

Uma formação inicial instrucionista, individualista, se fazia sentir. Assumindo atitudes contrárias ao exercício da solidariedade e de responsabilidade social, alguns recém-chegados fragilizaram esteios da cultura da escola. Os mais “antigos” comentavam as sucessivas crises de crescimento pessoal e profissional:

“Há vários aspectos que dificultam um bocadinho a harmonia. A instabilidade do corpo docente desta escola tem sido imensa. Nem todas as pessoas que cá chegaram têm um embasamento no projeto igual aos outros, igual ao restante. Aquilo que um valoriza nem sempre é aquilo que todos gostariam que fosse.

Eu sempre vi a minha escola como uma grande equipa, que funciona em equipa, que se articula da melhor forma possível. Não é? Que une esforços e que, de certa forma, se unifica em determinados comportamentos. Não é?”

Na Ponte, o antídoto para o individualismo começava a ser fermentado através do investimento no trabalho colaborativo, frente ao primeiro desafio: o da partilha do mesmo espaço de trabalho entre dois ou mais professores. A queda do individualismo também se fazia pela queda da organização hierárquica, pois não fazia sentido que na equipe existisse a subordinação de uns a outros e sim o desempenho de diferentes papéis. 

“Ninguém deve pretender querer se sobressair aos outros porque, se isso acontecer, está tudo estragado. E se isso disseminar, ainda é pior”. 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXLVI)

Brumadinho, 6 de novembro de 2042

Eis-me atravessando o São Francisco, a caminho de Caetité. Que saudades que eu já tinha de voltar a tocar o berço do Anísio! Já cá não vinha desde os idos de vinte. É quase uma romagem a tempo idos, aos meus primeiros tempos de Brasil. Foi o Anísio, juntamente com Eurípedes, Nise, Lauro, Amanda, Darcy, Nilde, Freire, Cecília e uma plêiade de ilustres educadores brasileiros, quem me levou a repensar décadas de projetos, que ficaram pelo caminho.

As escolas do passado eram cemitérios de talentos, túmulos de inovação. Nos idos de vinte, a Ponte era uma das raras exceções à regra do precoce desaparecimento de iniciativas inovadoras. Mas, também ela havia parado no tempo. Vivíamos cercados de incerteza, precariedade, num sistema educativo padronizado, fragmentado e excludente. 

Revisitei a casa onde Anísio viveu os últimos anos da sua vida. Visitei-a quando adentrei os cafundós da educação baiana, no início deste século. Passei longas e saborosas horas lendo livros da biblioteca que Anísio nos deixou. Num desses livros, Anísio falava-nos de um “divisor de águas entre duas “mentalidades, que se defrontavam no Brasil: de um lado, os que, explícita ou implicitamente, não acreditavam no Brasil, e de outro, os que achavam que a nação se poderia redimir pela educação. 

Lamentavelmente, no tempo de potencial mudança dos idos de vinte e dois, ao invés de se retomar Anísio, apenas se disputava uma cadeira de ministro. Mais uma vez, se hipotecava o futuro da educação, a troco de negociatas de baixa política. Não se cuidava de preparar a atualização da mensagem do malogrado Mestre, que pugnava por uma nova escola, aquela substituísse a reprodução de “formas arcaicas de ensino pela exposição oral e reprodução verbal”. 

Anísio estava consciente de que, para haver inovação pedagógica, se requereria inovação normativa. Não poderíamos continuar estrangulados numa camisa de força legal, graças à qual, como o Mestre dizia, “alterar a posição de uma disciplina no currículo ou diminuir-lhe ou aumentar-lhe uma aula fosse considerada uma ‘reforma de ensino’”. 

Mas, status quo res erant. No Brasil da educação de há vinte anos, imperava o tráfico de influências e a “incompetência especializada”, reforçadas pela indiferença de uma sociedade civil apática. Mutatis mutandis, os regulamentos paridos pelas secretarias da educação e pelo ministério nada alteravam, eram concebidos como meros paliativos dos males do “sistema”.

Anísio postulava que o aluno deveria ser o centro do processo de aprendizagem, mas a administração educacional impunha às escolas práticas instrucionistas, nas quais o centro era o professor. 

Uma secretaria citava Anísio no documento orientador da política educacional do estado (“Currículo em Movimento”). Mas o currículo imposto às escolas pela secretaria de educação impedia o “movimento”, estava parado no tempo. 

Os funcionários dessa secretaria chamavam “escola classe” e “escola parque” – conceitos criados por Anísio – a alguns prédios que, nesse tempo, eram considerados “escolas”. Mas as práticas desenvolvidas dentro desses prédios eram em tudo contrárias à proposta do Anísio da “Escola Nova”. 

Desde que me conheço e me reconheço como professor, o amigo Nóvoa pregava no deserto, dizendo ser necessário passar do pedocentrismo para a aprendizagem, da normalização para a diferenciação, da separação para a reunião. Enquanto isso, os seus colegas da academia e do ministério faziam-se desentendidos, irredutivelmente se mantendo… pedocentrados, normalizados, separados.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXLV)

Iguá, 5 de novembro de 2042

Os primeiros visitantes da Ponte partiam levando consigo cópias de trabalhos feitos pelas crianças, exemplares do jornal da escola e outros “souvenirs”. Os mais interessados em compreender o funcionamento da escola demandavam documentos “do início do projeto”. Dávamos-lhes a ler o projeto “Fazer a Ponte”.

“Colega, é só isto?” – questionavam.

“Só isso. E isso é tudo. Tudo o que é necessário. Definimos valores comuns (autonomia, responsabilidade, solidariedade), fizemos um enunciado de princípios, estudamos juntos, sem fazer das crianças cobaias de laboratório”.

Partíamos das nossas dificuldades de ensinagem. Fazíamos aquilo que sentíamos ser nosso dever, com o quanto baste de intuição pedagógica, que nem o Piaget nos fora ainda apresentado. Até que o curso de ciências de educação me mostrou que aquilo que fizéramos com denodo e extremo cuidado era uma prática que tinha… teoria. 

Muito se escreveu sobre idiossincrasias pontistas, nem sempre a propósito. Foi publicado um sem número de dissertações e teses, fomos chamados à televisão, requisitados por congressos e faculdades. Até que chegaram os pesquisadores… muito úteis os olhares externos, para quem só via por dentro.

Identificamos erros. Fizemo-nos, talvez, mais humildes, pois tomámos consciência de que tudo o que até então pensávamos ser criação nossa já fora proposto há mais de meio século. Mas, confesso que foi uma desagradável surpresa a notícia de que na academia ainda havia salas de aula. 

No início deste século, o amigo Nóvoa escrevera:

“A Escola da Ponte é “uma escola extraordinária, justamente por não ter nada de extraordinário: é uma escola pública como as outras, num lugar como tantos outros, com alunos e professores iguais a muitos outros. E com esta matéria-prima se tem vindo a fazer, graças a um trabalho metódico, persistente e coletivo, uma escola notável.

Júlio Cortázar escreve que uma ponte só é verdadeiramente uma ponte quando alguém a atravessa. Os colegas da Escola da Ponte já fizeram muitas travessias. Pelo deserto ou pela floresta, eles sabem que não estão sozinhos nas travessias que têm pela frente.”

Já no início deste século, Nóvoa também afirmaria que, nas escolas do futuro, não haveria salas de aula. 

O mistério se adensava. Os académicos reafirmavam que “o centro era o aluno”, enquanto davam aulas centradas no professor – Pois!… A academia dava o exemplo, as escolas o seguiam – “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”. Porquê? Seria algum sintoma de esquizofrenia? Seria outra coisa, que eu não me atreverei a dizer?

Somente por volta do fim da primeira pandemia, o Mestre Pedro deslindou parte desse mistério, escrevendo a propósito da “pedagogia do amor”.

“Fica o gosto amargo de hipocrisia institucional, ao vermos que nosso sistema de ensino é tudo, menos pedagogia do amor. 

Vejo alguns educadores encantados com a ideia, pelos quais tenho o maior respeito, sei de sua integridade e competência acadêmica, mas fico pensando até que ponto é viável curtir esta ideia da pedagogia do amor, não só porque é estranha ao contexto eurocêntrico cartesiano, mas porque soa a cortina de fumaça para encobrir uma política educacional incrivelmente perversa. 

A série histórica do Ideb escancara um sistema inepto, para não dizer inútil, sem perspectiva de mudança. A miséria educacional atravessa os governos, independentemente da ideologia, porque o instrucionismo é a postura padrão, hoje globalizada: o sistema é tipicamente de “ensino”, instrução, baseada na aula copiada para ser copiada, conteudista.”

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXLIV)

Vitória da Conquista, 4 de novembro de 2042

Se ainda não vos enfadastes com a leitura destas cartinhas, contar-vos-ei mais algumas estórias. Desta vez, aquelas que fizeram a história da Ponte. 

É possível identificar três períodos distintos de evolução do projeto. O primeiro decorre entre 1976 e 1986, ano da publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo. Foi tempo de resistir, tempo de preparar outros tempos. 

Dizia-se que a ditadura acabara e que já vivíamos em democracia. Porém, as reações da administração educacional caracterizavam-se pelo autoritarismo. Nesse tempo e até meados da década de vinte, as palavras “autonomia”, “participação”, “democraticidade”, eram apenas palavras usurpadas por académicos ociosos e usadas para fins mercantis.

Creio já vos ter dito que, em meados da década de setenta, quase abandonei a profissão de professor. Atravessava uma segunda crise profissional, uma crise ética, solucionada pelo trabalho em equipe. A Ponte me salvou, porque me ajudou a abandonar… a sala de aula. 

Até meados dos anos oitenta, a equipe era constituída por mim e por alguns elementos da Associação de Pais. Se não havia professores disponíveis para o serem, valeram-me os pais dos alunos. Com eles, iniciei projetos: a despoluição dos rios, a erradicação das lixeiras, a colónia de férias…  e um novo prédio, para uma nova escola. 

O novo edifício, ocupado em 1984, permitia o desenvolvimento de uma pedagogia orientada para uma praxis social de integração do meio na escola e da escola na vida, aliando o saber ao saber fazer, em trabalho e a saberes populares. 

Nela não havia salas de aula. E qualquer espaço de aprendizagem poderia, no princípio de um dia, acolher o trabalho de um grupo; poderia servir de espaço de expressão dramática, a meio da manhã; poderia receber, no fim do dia, as crianças que desejassem participar numa roda de conversa. 

Num mesmo dia, o polivalente poderia transformar-se num refeitório, ser lugar de realização de uma assembleia, de expressão dramática, ou de educação físico-motora. A distribuição das crianças por espaços específicos apenas acontecia em situação de iniciação e de transição. Em breve, vos explicarei em pormenor. 

As crianças da “iniciação” dispunham de um espaço próprio, onde aprendiam a ler e a entender o que liam, onde criavam e a aprendiam a ser gente. Não permaneciam sempre nesse espaço, partilhavam-no colegas de outros núcleos.

Essas e outras transgressões “metodológicas” foram reprimidas pela administração, enquanto despertavam curiosidade em muitos educadores. 

A novidade correu mundo, fez-me viajar e confirmar que fôramos os primeiros a operar, radicalmente, a rutura com práticas do paradigma da instrução. 

Nos tempos que correm, raramente encontramos nas escolas o velho hábito de trabalhar com uma turma, dentro de quatro paredes. Mas, ainda hoje, há escolas de rutura parcial, como as montessorianas e os seus materiais, ou as waldorfianas e a sua euritmia, mas onde ainda se trabalha em sala de aula. 

O exotismo do projeto transformara a Ponte num objeto de turismo educacional. Gente dos quatro cantos do mundo ali chegava para ver, claramente visto, o aluno no centro do processo de aprendizagem. Quando uma visitante entrou num dos espaços de aprendizagem, comentou:

“A sua escola é diferente das outras. Não é uma escola normal.”

“E o que é normal?”

“Esta escola não tem salas de aula, por exemplo. Na minha escola, cada professor trabalha na sua sala de aula. Por que não tendes salas de aula?”

“Por que deveríamos ter? 

“Não sei… acho normal.”

Por que as tendes?” – perguntei.

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