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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXIV)

Tanguá, 14 de outubro de 2042

Os cientistas do nosso tempo lidam com dificuldades de interpretação de lamentáveis ocorrências dos idos de vinte. Os sociólogos não acham quadro de análise capaz de dar resposta a incompreensíveis fenômenos, como aquele que leva historiadores a passar horas a fio debruçados sobre restos de notícias de jornal, que dão conta de tragédias como a do assassinato de vinte crianças e seis adultos, numa escola de Sandy Hook. Tentam encontrar explicação para o fato de um animador de rádio da extrema-direita norte-americana ter afirmado que o massacre não acontecera, que fora montada uma farsa.

Uma ação fora movida pelos familiares de cinco crianças e três educadores mortos no massacre, além de um agente do FBI, que fora acudi-las. Segundo os pais, a mentira tinha aumentado as audiências do programa, o que permitiu ao radialista embolsar muitos milhões de dólares, enquanto eles se tornaram alvo de campanhas de perseguição.

Esse radialista alegava estar a ser vítima de uma conspiração dos democratas. E os politicólogos não encontraram indícios de realidade que permitisse ao negacionista classificar o caso como uma afronta aos direitos de liberdade de expressão.

Os psicólogos desse tenebroso tempo se desesperavam, por não conseguirem encontrar explicação plausível para que, no Dia da Criança, em espaços públicos, crianças brincassem com armas. Que meninos e meninas pegassem em granadas, enquanto miravam armamento pesado e lhes era explicado o funcionamento de fuzis e de bombas de gás lacrimogêneo. Que um militar explicasse a crianças de tenra idade que uma determinada arma “pegava umas dez a quinze pessoas”.

Nos dias de hoje, consideramos essa situação como inacreditável, inaceitável. Nem “a brincar” se admite tamanha atrocidade. Mas, nos idos de vinte, um fenómeno de alienação generalizada, uma doença social afetava parte significativa da população, e que se caraterizava pelo recurso à mentira como válvula de escape de frustrações.

Os politicólogos se desesperavam para encontrar resposta para a incompreensível atitude de um povo que elegia e se sentia representado por políticos corruptos. Mais tarde, pesquisas realizadas por arqueólogos da educação em cooperação com anatomistas permitiram encontrar um princípio de esclarecimento. Conseguiram autorização para exumar o cadáver de um deputado federal que, na década anterior, fez a sua estreia na Câmara abrindo mão dos salários extras que os parlamentares recebiam, reduzindo a sua verba de gabinete e o número de assessores a que teria direito, tudo com caráter irrevogável.

Esse político também reduziu em mais de oitenta por cento a cota interna do gabinete, prescindiu de toda verba indemnizatória e de toda cota de passagens aéreas e do auxílio-moradia. Com essa (solitária) atitude, o deputado economizaria milhões de reais, durante o seu mandato. E o deputado José assim justificou a sua decisão:

“Um mandato parlamentar pode ser de qualidade custando bem menos para o contribuinte do que custa hoje. Esses gastos excessivos são um desrespeito ao contribuinte. Estou fazendo a minha parte e honrando o compromisso que assumi com meus eleitores”.

Em meados da década de vinte, cientistas da educação fizeram uma descoberta, que permitiu deslindar insondáveis mistérios. Esses estudiosos encontraram um princípio de explicação para a nobre atitude desse deputado, quando identificaram uma exótica espécie de educadores, conhecida pela sigla RC (os chamados “Românticos Conspiradores”).

Deles vos falarei em próximas cartinhas.

 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXIII)

Rio Vermelho, 13 de outubro de 2042

Educadores lamentavam a vergonhosa campanha eleitoral de vinte e dois. O Brasil era um país de povo bom e justo, que teria de medir o tamanho da corrupção, para escolher os seus governantes.

Quem produzira esses bonsais humanos? Quem os teria feito assim?

Os pais e os educadores assim os fizeram.

Só uma diminuta reserva moral de políticos não contaminados pelo vírus da corrupção confirmava que a democracia continuava sendo o pior de todos os sistemas com exceção de todos os outros.

Estrangeiro impotente face ao tamanho da mentira, quando a Internet me trouxe imagens de uma professora a fazer a saudação nazi em sala de aula, encontrei refúgio nas metáforas  que, nesse tempo, vos ofereci. Catei algumas no baú das velharias e vo-las envio. Perderam atualidade, por ação de uma nova geração de educadores, que nos devolveram um Brasil fraterno e inauguraram tempos de bem-estar.

Talvez vos faça bem reler palavras de acalento. São parte da minha herança, se alguma herança vos deixo.

Quando, depois de extintos os ecos do tempo da história, os homens acederem à era do espírito, hão-de entender a fragilidade dos paradigmas que sustentavam as suas ciências. Hão-de reconhecer como aparentes as suas imutáveis realidades. Hão-de reconhecer a falsa moral das suas histórias, se comparada com a doce amoralidade dos pássaros.

Quero que saibais que, quando os homens acreditavam ser o seu mundo plano e limitar-se aos mediterrânicos limites, já os pássaros sabiam ter o planeta forma arredondada, por o terem sobrevoado de lés a lés.

No tempo em que os homens criam ser o centro do mundo e viam abismos e monstros na linha do horizonte, os pássaros redefiniam zénites e provavam que o espaço é ilimitado como a música e os sonhos.

Onde, antigamente, os homens idealizaram um céu de vida eterna para os seus eleitos, havia pássaros. No lugar onde imaginaram situar-se o trono dos seus deuses, não havia uma “pomba estúpida” à medida dos seus medos, mas o espírito dos pássaros.

Quando os desvendadores dos segredos dos mares atingiram novos mundos, encontraram pássaros. Quando os homens voaram até à Lua e dela contemplaram o planeta azul, compreenderam que o azul que os separava do imenso e negro espaço não tinha segredos para os pássaros que, há séculos, o habitavam.

Quando os astrónomos, espreitaram através de potentes telescópios,penetrando distantes galáxias e confirmando a antiga predição de que o que está por baixo é igual ao que está no alto, viram pássaros invisíveis pousados no asteróide B 612.

Parece que sempre assim foi. Mas, para que pudésseis amar o ir à escola, muitos foram os pássaros que sofreram a dor de um tempo em que as gaivotas se condoíam de ver jovens pássaros amontoados em celas de betão, vigiados nos mínimos gestos.

Por mais inverosímil que possa parecer, era mesmo assim, queridos netos. A infantil curiosidade acabava desfeita em submissões. Mas, como disse, as estórias acabam como nós quisermos que acabem.

Quando o vosso avô descobriu como ensinar a ler emancipandoos, os meus jovens alunos desvendavam mistérios e ousavam pôr asas na imaginação, inevitavelmente, se confrontaram com a perfídia de tempos sombrios, a mesma perfídia com que as gaivotas se confrontaram, no tempo em que nascestes.

Mas não deixeis de acreditar. Acreditai sempre. Ainda que vos acusem de loucura, vos apelidem de utópicos, não vos quedeis na amargura de ninhos desfeitos, nem espereis a compreensão dos homens. Buscai a sabedoria dos pássaros. Deixai fluir a torrente dos dias invulgares, que virão de muito dentro do que sois.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXII)

Serra do Camburi, 12 de outubro de 2042

No Brasil dos idos de vinte, o “Dia da Criança” era comemorado no 12 de outubro. Essa era, também, o dia de aniversário de uma criança grande chamada Cléo.

Essa palhaça de coração grande inventou uma Terra do Brincar e se condoía da sorte das crianças de tenra idade a quem roubavam a infância.

“Por favor, meu senhor! Compre-me uma balinha. Compre. Por favor! Moço, eu tenho fome!”

Via a Cléo chorar, quando me contava ter encontrado crianças vendendo bala, no centro da cidade. Ela me fez recordar o dia em que a Assembleia das crianças da Ponte tomou algumas decisões definitivas.

A primeira, a de ajudar a matar a fome de crianças de uma família vizinha do Eduardo:

“Professor Zé, você tem de ir lá. Eles moram num barracão e os meninos vêm à nossa casa pedir esmola.”

A segunda decisão foi a de não mais celebrar o Dia da Criança no primeiro dia de junho (era esse o Dia da Criança em Portugal) pois, como disseram, fundamentando a decisão, “todos os dias deveriam ser “Dia da Criança”.

O “Dia da Criança” era uma mentira. A Democracia brasileira era uma mentira. E a Escola Pública era, também, uma grande mentira. Mas, havia quem remasse contra a maré e protegesse as crianças de uma Escola de mentirinha.

Vinte anos atrás, a Cléo celebrava o seu aniversário, dando início ao projeto da sua vida. Havia nele verdade, havia amor pela infância, sensibilidade, brincação.

A Cléo convidava a família, a sociedade e a escola, para re-ligare educação com saúde pública e cultura. A teoria produzida na universidade casava com a vontade de uma secretarias de educação e fazia sentido numa nova práxis de chão da escola.

Com os escassos recursos de que dispunha, a Cléo tinha adquirido um espaço à medida do seu sonho de comunidade. Nele investia tudo aquilo que tinha e até aquilo que não tinha, nesse projeto investia tudo o que era.

Na Terra do Brincar, o professor se libertava do gueto da sala de aula e do prédio-escola, no reconhecimento de que o ethos organizacional de uma escola dependia da sua inserção social, de relações de proximidade com outros atores sociais. A intuição pedagógica da Cléo permitia-lhe praticar Darcy, atualizando a admirável proposta desse Mestre, numa síntese perfeita com a recomendação de Lauro de que seria inútil continuar a construir “pedagogia predial”, se não se construísse comunidade.

Com uma Marcela e duas Brunas, a Cléo (ou Doutora Borboleta, como as crianças a chamavam) agia em espaços públicos, criando nodos de redes comunitárias, devolvendo a escola à comunidade, na partilha da responsabilidade de educar, contribuindo para a coesão social e erradicando a separação entre educação familiar, escolar e social.

Uma nova educação acontecia em espaços de cultura, saúde pública, ciência e arte, na consideração de que todo o conhecimento (erudito, ou popular) era válido e de que os saberes não eram propriedade ou de exclusiva produção numa escola-edifício.

A essas educadoras se juntariam excelentes educadores de Maricá, no desenvolvimento de estratégias que estimulavam o diálogo entre segmentos da comunidade, visando o bem-estar de todos, a valorização da diversidade e das diferenças, visando a promoção de equidade.

O exemplo da Cléo frutificou. Nos anos que se seguiram ao do seu quinquagésimo segundo aniversário, milhares de projetos de comunidade de aprendizagem surgiram e se consolidaram. Uma nova construção social emergia de tempos sombrios. Ficava provada a possibilidade de uma Escola Pública efetivamente pública, depurada de mentiras, uma escola de todas e para todas as crianças.

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