Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCVI)

Ipê, 5 de janeiro

No janeiro de há vinte anos, o velhinho Theo foi o primeiro a deixar a Terra do Brincar. Esperou que o Lucas nos visitasse, para se despedir do mundo dos cachorros e dos homens. As lágrimas do Lucas, da Malu e da Bruna se juntaram à terra que o abraçou, na despedida de um ser que eles tanto tinham amado e cuidado. É sobre o cuidar que, hoje, vos falarei. Porque, se vivíamos no seio de uma sociedade doente de individualismo, também havia quem soubesse cuidar.Na primeira vez que tentei juntar pessoas, fazê-las experimentar uma vida em comum, pôr em prática princípios que já eram caraterísticos do paradigma da comunicação, deparei com inesperadas dificuldades. As crianças traziam de casa hábitos em tudo opostos a uma ideia de corresponsabilização. Algumas nem sequer eram responsáveis por si mesmas. Refletimos sobre a bagunça. E os “grupos de responsabilidades” surgiram, quando materiais começaram a desaparecer, quando objetos eram deixados ao “deus dará”, quando o autoclismo não era acionado… Não perguntaríamos de quem eram os objetos que tínhamos apanhado e guardado. Nem daríamos um novo lápis a quem havia perdido o seu. Nem iríamos afixar cartazes dizendo “Por favor, dê a descarga”.

Em assembleia, decidimos criar “grupos de responsabilidades”: do Material Comum, das Arrumações, do Rádio e Máquina de Escrever, das Datas e Aniversários, do Terrário e Jardim, dos Jogos e Brincadeiras… E lançamos um projeto de geração de Responsabilidade (um dos três valores presentes na nossa matriz axiológica).

Cada criança ficou responsável por cuidar de um animal. Era esse o único “trabalho de casa”. No final do tempo de aprender na escola, as crianças levavam os seus protegidos para as suas casas, cuidando deles, até à manhã seguinte. Se precisassem de hospitalização, havia um grupo de responsabilidades do hospital, que acolhia os doentes. Os “médicos de serviço” pesquisavam para fazer um diagnóstico e, se não fosse necessária a intervenção de um veterinário, ali se fazia o tratamento.

Havia um animal que não se poderia levar para casa: o bicho-da-seda. O grupo das Experiências do Laboratório cuidava deles. Quando os bichinhos nasciam, as crianças se revezavam na recolha de folhas de amoreira com que os alimentavam. Entre a eclosão dos ovos e o aparecimento do casulo, o bichinho não poderia passar nem um dia sem comer.

Diligentes e cumpridoras das suas responsabilidades, de segunda a sexta-feira, as crianças serviram aos bichinhos duas refeições diárias. Até que chegou o fim de semana. Era evidente que não pediríamos a uma criança que fosse à escola no sábado ou no domingo, para alimentar os animais. Nem seria possível deslocar para uma casa o tanque onde os bichinhos viviam.

Uma professora se ofereceu para fazer esse serviço. Lembrei-lhe que nem um só dia poderia deixar de os alimentar. Pareceu ter ficado ofendida com o meu lembrete:

“Fique tranquilo, colega. Eu sei muito bem o que devo fazer!”

Na segunda-feira, quando entrei na escola, escutei choro de criança. Todos os bichos tinham morrido de fome. Quando a colega “responsável” chegou, as crianças perguntaram:

“Professora, por que fez isso? Isso é maldade.”

“Que quereis, meninos? Esqueci-me!”

Dali me retirei, para não fazer uma besteira.

Como todas as aprendizagens, a aprendizagem do cuidar requer exemplo, bons exemplos. A aprendizagem é antropofágica. Eu não aprendo o que o outro diz; eu aprendo o outro. Daí que eu insistisse em perguntar aos meus colegas formadores:

“Por que dizeis aos formandos que o centro é aluno, se dais aula centrada no professor?”

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