Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXXXIV)

Nova Concórdia, 25 de março de 2043

Netos queridos, quando dizeis que este velho rabugento deveria deixar de apontar a podridão do “sistema” e falar-vos de algo mais agradável, tendes razão. É certo que deveria fazê-lo, e de bom grado o faria, não fora a tralha que habita no fundo do baú das velharias. Nesta manhã, quando tentava pôr a funcionar uma velha pen drive, deparei com mais um dos motivos de ser rabugento, incômodo. 

A “coisa” passou-se em São Paulo, mas havia réplicas em outros lugares. Havia escolas ditas “de elite” que não aceitavam “repetentes”. Muitos colégios ditos “de prestígio” negavam a entrada de repetentes e atribuíam a negativa à “falta de vagas”, ou ao “nível de exigência da escola”.

Nas escolas ditas de “elite” o “prestígio” e a “exigência” não passavam de propaganda enganosa de “elites”, que se atreviam a ferir a Constituição, que ousavam cometer ilegalidades, quase sempre impunes, por via da corrupção generalizada do “sistema”.

Quando uma mãe pretendeu matricular a sua filha num dos colégios mais tradicionais de São Paulo, descobriu que sua filha não poderia estudar lá, que esse colégio não matriculava alunos que tivessem reprovado em outros colégios, mesmo a família tendo condições de pagar os mais de 2.000 reais de mensalidade. 

“Eu achei aquilo inacreditável, uma discriminação”, disse a mãe da criança. Ela não sabia que a ilegalidade cometida pelo colégio poderia virar uma benção. Talvez em outra escola a filha ficasse ao abrigo de uma miserável “educação de elite”. Talvez se livrasse dos malefícios da educação castradora praticada em colégios de “alto nível de exigência”.

O modelo escolar imposto pelo Estado à Escola deteriorara tão profundamente o sistema de relações, que deparei com algo inimaginável. Encontrei uma escola com duas salas de professores Uma delas acolhia professores efetivos (os “concursados” brasileiros); na outra, os professores “agregados”, do “quadro de zona”, os “substitutos”. 

Queridos netos, sei que acreditareis no que escrevo, porque é o vosso avô que o escreve. Era inacreditável, inaceitável que discriminações acontecessem e que ministérios autistas legitimassem castas e privilégios. 

Como vedes, muitas razões havia para o vosso avô ser incômodo. 

Não estava sozinho. Mesmo tendo consciência da inutilidade da denúncia, denunciava. E recebia mensagens de solidariedade de amigos, que constituíam uma espécie de reserva moral. Eram uma minoria, mas existiam…

“Talvez para que seja assegurada a pretensa formação de uma elite pensante, uma casta de gentes que, mesmo quando alinhadas a discursos progressistas, humanistas reproduzem inadvertidamente a ideia de que a esfera superior do ensino não é para todos, ao menos as realmente superiores em qualidade, as melhores universidades públicas e seus cobiçados melhores cursos, acessados via uma peneira de tela muito fina chamada ENEM e sua necessária muito boa pontuação para um sujeito concorrer a uma vaga de elite.” 

O exemplo vinha de cima. Quem convivesse com altos funcionários dos ministérios compreenderia a manutenção de absurdos, assegurados por “doutores em educação” (nunca consegui saber de que “educação“ se tratava), que exibiam “socio construtivismos” na ponta da língua  e nas mãos a sujidade do “sistema”.  Até já se diziam apologistas do paradigma da comunicação e de inovadoras transições paradigmáticas, quando as suas práticas radicavam num paradigma nascido no século XVIII. 

Se, hoje, ainda restam vestígios de castas da velha escola, dizei-me se não tenho direito de ser um velho rabugento.

 

Por: José Pacheco

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