Caminhos de Darwin, 19 de março de 2043
Atrelado ao infernal Ensino Médio, surgia o espectro de uma prova de acesso ao
paraíso do dito Ensino Superior.
A PGA, o Vestibular, o ENEM, com esta ou outra designação, era mero instrumento de darwinismo social. Essa prova apenas “provava” a capacidade de retenção de informação inútil na memória de curto prazo, para vomitar num papel ou computador e, depois, esquecer.
O suplício começava por volta do final do cartesiano Fundamental. E se prolongava até ao infligir de suplícios aos novatos acadêmicos, no absurdo “trote” universitário.
Netos queridos, essa designação era mais do que justa, porque aqueles que o praticavam se comportavam como cavalgaduras (sem ofensa para os equídeos).
Para ilustrar a afirmação, recupero do fundo do meu baú das velharias um textinho escrito, muito tempo atrás. O ENEM era um exame nacional do ensino médio, um instrumento de avaliação falível, que, para além de não ser rigoroso, era, na sua essência, excludente. Para ilustrar o que afirmo, respigo um naco de texto do meu “Dicionário dos Absurdos da Educação:
A Adélia sabia a matéria na ponta da língua. Fizera a mnemónica das fórmulas e repetira ladainhas em voz rezada, na crença de que a memória a não traísse.
Saiu vitoriosa da contenda travada com uma pilha de livros: fez a decoreba de todos, um por um. Mas acabou derrotada por uma… ampulheta.
Abdicou da novela das sete e – supremo sacrifício! – o namorado foi-se, ao cabo da segunda semana de clausura.
Quem diria que se deixaria intimidar por um diabólico aparelho de medir o tempo? Ingloriamente, a presença de uma ampulheta na sala de exame deitou por terra todo o investimento.
Iniciada a prova e anunciado o tempo limite para a sua realização, a Adélia fixou um olhar de hipnotizada na areia que caía, caía, caía…. Bloqueou-se a mente, tolheram-se os movimentos. As folhas da prova ficaram em branco e humedecidas por lágrimas.
Decorridos alguns dias sobre o drama, sobreveio uma desmesurada sudação, crises de choro, incontinência urinária. Nada que a competência dos médicos e alguns sedativos não conseguisse dissipar.
Nesse tempo, já não era possível disfarçar a inutilidade dos exames, nem ocultar nefastos efeitos colaterais e perversões. Enquanto a Adélia me descrevia o seu drama, eu escutava-a atentamente, mas evocava outras situações absurdas em que as escolas de antigamente eram pródigas.
O ENEM não colocava apenas jovens psicologicamente mais frágeis à beira de um ataque de nervos. Conforme estava concebido, não era apenas responsável por crises de sudação, choro e incontinência urinária. Mais do que um potencial descontrolador de esfíncteres, um exame é, em si mesmo, uma porcaria (eu ia escrever “merda”, mas optei pelo eufemismo, para não ferir sensibilidades).
Até ao final da década de trinta, o farisaísmo pedagógico de acadêmicos ociosos e a apatia dos zelosos funcionários do “sistema” perenizariam absurdos como o “ENEM” e a “sala de aula”. Hoje, poucos se recordarão desses disparates, mas importa recordar trágicos efeitos.
Mais da metade dos brasileiros não chegavam ao ensino médio. Sete em cada grupo de dez alunos estavam em níveis considerados insuficientes de aprendizagem, mesmo nas “áreas nobres” (português e matemática). No 3º ano do Ensino Médio, por exemplo, a maior parte dos jovens do Ensino Médio não sabia identificar a informação principal de uma reportagem, nem fazer cálculos de porcentagem.
Eu insistia na pergunta: Por que existe Ensino Médio?
A resposta era o silêncio.
Era obsceno o silêncio dos “doutores em educação”.
Por: José Pacheco