Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLV)

Boquilobo, 25 de maio de 2043

A Lucrécia quis saber a minha opinião sobre “problemas de indisciplina”. Disse que havia “turmas difíceis” na sua escola.

Disse-lhe que não poderia opinar, mas perguntar: 

Por que há “turmas difíceis”? Se deixar de haver turmas, talvez a “dificuldade” desapareça. Por que há turmas, Lucrécia?

“Porque está na lei” – respondeu.

Duvido que esteja, minha amiga. Mas, se está na lei, por que está na lei? Diz-me.

Não respondeu. Lamentou-se:

“Nos intervalos, quase não conseguimos conversar. Mesmo com a porta da sala dos professores fechada, é grande o barulho lá fora. Quase gritamos, para nos fazermos ouvir. O que é que tu achas? Como poderemos resolver esse problema?”

Disse-lhe que estava proibido de “achar” Somente poderia responder fundamentando a resposta numa práxis de mais de cinquenta anos de chão de escola e nas ciências da educação. Respondi:

Há barulho, porque há intervalos, não é?

“Sim. É isso”.

Se deixar de haver intervalos, deixará de haver barulho, não é?

“Sim. É”.

Então, por que há intervalos? Por que razão os alunos têm de esperar pelo intervalo para fazer xixi? Não podem fazer xixi, quando sentem vontade?

Por que razão todas as escolas começam as aulas à mesma hora?

Por que há salas de aula?

Por que duram as aulas cinquenta minutos?

Por que há bimestres, trimestres, quadrimestres, semestres e ano letivo?

Muitas perguntas fazia à Lucrécia. Nenhuma obteve resposta.

Nos anos sessenta e setenta do século passado, visitei aldeias pulsantes de vida, crianças brincando na rua, vizinhos conversando, prédios de escola repletos de alunos.

Nas décadas de oitenta e noventa, a migração para o litoral e para o estrangeiro reduzira o número de alunos, e o ministério resolveu encerrar escolas com menos de dez alunos. Nas aldeias dos idos de vinte, ficariam apenas velhos e casas vazias. O ministério matara comunidades.

O processo de extinção de escolas – mais uma estulta iniciativa ministerial – culminou por vota de 2006. A medida inseria-se no “reordenamento da rede escolar do 1º ciclo”, que o governo pretendia concluir durante a legislatura Era doloroso ver como um Secretário de Estado, por quem eu nutria grande admiração, contribuia para esse grave atentado:

“A existência de escolas dispersas com um número reduzido de alunos tem todo o tipo de inconvenientes, desde prejuízos pedagógicos graves, problemas de socialização, de aproveitamento dos alunos”.

Inconvenientes? Prejuízos pedagógicos? Problemas de socialização? De aproveitamento? Que Deus nos valesse! Inconveniente era destruir culturas, matar comunidades. Prejuízos pedagógicos seriam os resultantes de um modelo educacional criminosamente imposto às escolas. E que socialização oferecia a nova prática? 

De burrice em burrice (sem ofensa para os burros, que eram bem mais inteligentes), os burocratas do ministério foram desertificando povoados. As crianças passaram a ser transportadas para os grandes centros populacionais e armazenadas nos chamados “centros educativos”. Na realidade, eram centros deseducativos, megalómanos prédios, servidos pelo “transporte escolar”.

Nos idos de vinte e três, muitos centros educativos contavam com menos de dez alunos por professor. Em alguns, havia dois ou três alunos por professor. Se assim era, segundo princípios da “pedagogia predial”, por que razão o ministério não mandava fechar os centros educativos? 

Por que “carga d’água” crianças da Brogueira eram obrigadas ao vaivém diário entre a sua aldeia e Torres Novas?

Os responsáveis teriam lido a Lei de Bases do Sistema Educativo?

 

Por: José Pacheco

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