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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXXVIII)

Vidigal, 19 de maio de 2043

A esperança não é última a morrer, como se diz por aí. A esperança nunca morre. Pude comprová-lo na passagem pelas Sementes de Lys. A minha amiga Ana me concedeu o privilégio de conhecer pais e professores decididos a reivindicar direitos. Nesse encontro, conheci a Vanda, escritora de belos livros para a infância, como aquele que dá pelo título de “A que sabe o Amor?” e onde escreveu “vamos experimentar a vida com um novo olhar, com um novo sabor”.

Na Primavera de vinte e três, experimentávamos a vida com um novo olhar, víamos surgir projetos concebidos por educadores, que não se consideravam funcionários de um ministério e se assumiam cocriadores de comunidades. 

Não contribuíam para a dissolução de relações familiares e sociais, pois o seu múnus profissional não incluía a guarda de crianças em guetos.. Consideravam a escola como espaço público aberto, vinculado à cultura, à vida, espaço de convivência, onde os jovens aprendiam a reinvenção da fraternidade. Uma escola que ajudasse os jovens a ver a sua comunidade como coisa sua, se sentissem pertença, adquirissem identidade local, pois, como diria o Nietzsche, a primeira tarefa da educação era ensinar a ver. 

Consideravam a educação como pré-condição de desenvolvimento, de justiça social, de distribuição de renda, da reconstrução de um país. E o ato de educar como processo em que o conviver com o outro transformava, em todo o tempo e de maneira recíproca, como diria o Maturana.

A escola não deveria visitar a comunidade, porque ninguém visita a sua casa; mora nela. Nem precisaria de levar a escola para a comunidade, dado que se constituíra num nodo de uma rede chamada “comunidade”. As associações de moradores (e as associações de pais), os líderes locais, os representantes do poder público deveriam ser considerados, não como objetos de intervenção, ou apenas convidados a ir à escola, mas como sujeitos, autores de mudança.

Viria a acontecer uma efetiva aprendizagem e transformação social, traduzida na melhoria das condições da qualidade de vida dos membros da comunidade, quando a comunidade participasse, quer da elaboração de projetos, quer na execução das ações a desenvolver, contribuindo para a reformulação das medidas de política educativa, para uma política pública séria. E, se a escola fazia parte integrante da comunidade, faria sentido haver um espaço e tempo escolar separado de um espaço e tempo comunitário? 

Havia quem considerasse uma escola ensimesmada pudesse ser uma comunidade. mas a escola de sala de aula inibia a relação comunicativa, impedia a convivencialidade. 

Um jovem professor enviou-me a seguinte mensagem: 

Professor José, desde o início deste ano, sou vítima de assédio moral e abuso de poder por parte da coordenadora de estabelecimento onde fui colocado. Hoje, estavam os alunos a apresentar os projetos que fizeram, e convidei os pais para participarem no processo. A coordenadora entrou pela sala dentro e perguntou várias vezes às mães o que estavam ali a fazer… Peço ajuda. Há alguma lei que proíbe os pais de entrar na escola e fazerem parte do processo das aprendizagens dos alunos?”

Participei de um encontro de pais e professores, na escola do Vidigal, iniciativa de um diretor de nova geração e contraponto do autoritarismo de uma coordenadora. Nos anos seguintes, essa escola viria a transformar-se num polo de inovação, objeto de estudo e lugar de imersões formativas. Surpreendia a maturidade dos educadores presentes nesse encontro, a consciência de que educar era ato político, exercício de direitos humanos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXXVII)

Marinha Grande, 17 de maio de 2043

E quando voltava de andanças várias, cansado, feliz por ver que ainda havia professores dispostos a recomeçar, a Margarida e a Eduarda juntavam-se à Andreia no saber cuidar, no desvelo com que terminava e começava um novo dia da viagem a Portugal dos idos de vinte e três.

Dediquei particular atenção a dinâmicas sociais e educacionais, que ocorriam na região de Leiria. A minha amiga Andreia havia conseguido organizar um périplo de uma semana pela região. Alguns dedicados diretores articulavam a gestão dos seus agrupamentos com as famílias dos alunos e com o cuidadoso trabalho desenvolvido por uma dedicada vereadora da educação.  

Entre a Batalha, a Marinha Grande, Fátima e Leiria refletimos, como diria a Andreia, “sobre uma escola diferente”. Falamos de “novas construções sociais de aprendizagem e educação”, “aprender em comunidade”, de transformar a educação e reconfigurar a escola”, com associações de pais e comunidades. 

Na Academia Criativa 81, na Batalha, famílias expressaram preocupações e assumiram compromissos. No Teatro Stephens, na Marinha Grande, nos reunimos para criar consensos, estabelecer pactos. 

No final do encontro, a Ana mostrou-me recados dos seus alunos. Antes que a maioria os adultos pudessem antever benefícios, já as crianças os intuíam. Falavam de um visitante de breves momentos como se o conhecem há séculos. A vida e o exemplo de um educador é eterna, e as crianças facilmente se apercebiam disso. Eram crianças ditosas e, talvez por sentir a impossibilidade de abarcar no mesmo amor todos os seres carentes de proteção e compreensão, emocionada, a Ana pediu desculpa por lágrimas derramadas.

A criança grande da Ana sabia que o amor que dedicava aos seus alunos deveria ser contextualizado em estruturas relacionais que capacitavam os seres humanos a definir-se pela contribuição à aprendizagem dos outros. A aprendizagem deveria ser encarada como atividade social, requeria o desenvolvimento de uma comunidade, como diria o Illich.

Diz-nos o dicionário que comunidade é estado do que é comum, paridade, comunhão. Sociologicamente, é um agregado de pessoas, que se caracteriza por acentuada coesão baseada no consenso espontâneo dos indivíduos que o constituem. Etimologicamente, tem origem no latim “communĭtas”, qualidade daquilo que é comum. 

Uma comunidade é feita de seres humanos, que partilham algo comum: idioma, costumes, localização geográfica, visão de mundo, valores… Poderá ser um grupo de pessoas, que residam em uma área geográfica determinada, que compartilhem uma cultura ou modo de vida, conscientes do fato de que compartilham e que podem atuar em busca de um objetivo comum. 

A sua coesão poderá ser reforçada, se assentar em laços familiares, compartilhar antecedentes, ou participar de uma mesma tradição histórica.

Poderíamos, pois, concluir que escolas de professores solitários em sala de aula não eram comunidades, eram instituições, tal como um hospital ou uma igreja.

A modernidade nos havia confirmado numa ética individualista. Na gênese da escola da modernidade, o individualismo prevalecera sobre o gregarismo, pelo que profissão de professor se caracterizava pela solidão. 

Nas escolas herdeiras da revolução industrial, quase não existia uma história compartilhada, ou objetivos comuns. Não se contemplava a aprendizagem do mundo e da vida.

Netos queridos, esta carta talvez seja aberta, acredito que alguns professores a possam ler. Aproveito o ensejo para dizer aquilo que já sabeis, mas que, porventura, outros precisem saber. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXXVI)

Jardim da Estrela, 16 de maio de 2043

Era uma vez… um empresário de nome Walter, austríaco de nascimento, brasileiro por adoção, que queria “salvar vidas de jovens”. Dizia ele que sala de aula os matava, e que fazer contraturno de escola era como tentar “enxugar gelo”. 

Pediu-me para “fazer uma escola semelhante à Escola da Ponte”. Com a Edilene, a Claudia e uma extraordinária equipe de educadores, ajudei uma comunidade a libertar-se do assistencialismo e a fundar a Escola do Projeto Âncora. 

Durante alguns anos, o Âncora acolheu muitos educadores em busca de aperfeiçoamento das suas práticas. Porque, se em teoria, tudo é fácil, na prática nem sempre o é. Nada melhor do que realizar uma imersão num projeto que a todos garantia o direito à educação. 

Muitos foram os professores que residiram numa casinha dentro da Escola Âncora e ali colheram ensinamento, convivendo com alunos e professores, Nos fins de tarde, os professores eram recebidos pela Edilene e pela Claudia, que esclareciam dúvidas e os ajudavam a planejar o dia seguinte. Dessas “imersões”, os formandos levavam para as suas escolas ensinamentos, que lhes permitiram melhorar-se.

O Projeto Âncora foi considerado por curadorias internacionais como uma das melhores escolas do século XXI e, efetivamente, conseguiu salvar muitas vidas. 

Muitas mais salvaria, não fora o seu triste fim. Com o fecho do Âncora, a equipe de projeto foi acolhida pelo amigo Arturo, que patrocinou a criação da Escola Aberta de São Paulo, uma ilha de boa qualidade educacional num “país do futuro” que se submetia a uma modernização tardia, numa sociedade da informação caraterizada pela solidão e pelo individualismo. 

As escolas enfeitavam-se de novas tecnologias, sem que fosse afetado o obsoleto modelo de ensinagem, As propostas pedagógicas elaboradas no decurso do século XX e recicladas no início deste século jamais foram vertidas em práticas efetivas. De pouca serventia servia a preocupação com a exclusão social e a crença nas virtudes da psicologização da educação. 

Requintadas propostas pedagógicas continuavam no limbo das teses e legitimavam práticas incoerentes. Os jovens educados nas velhas práticas, ainda que cognominadas de novos rótulos, atormentavam os nossos ouvidos com elevados decibéis de sertanojo, vegetavam entre o bar e a boca de fumo, entre o funk carioca e imbecilidades afins. 

Era-lhes alheia a catástrofe anunciada pelo aumento de quatro graus na temperatura da Terra… E não era somente a velha escola que continuava em crise, era a vida que estava por um fio, com a emergência da chamada “cultura do ódio”. Professores e crianças eram assassinados a sangue frio. E não havia quem acertasse com a origem do mal.

Por essa altura, professores brasileiros ainda rumavam a Portugal, para visitar a Escola da Ponte, desconhecendo que já havia “pontes” para uma nova educação no Brasil. Senti-me no dever de divulgar o excelente projeto da Escola Aberta. e aconselhar que lhe fizessem mais do que uma visita, que nela fizessem uma “imersão” formativa.

Em Mogi das Cruzes, em Maricá, e Caçapava do Sul e em outros lugares onde havia professores éticos, o exemplo frutificou e profundas mudanças foram operadas. Já não seria necessário atravessar o Atlântico, para conhecer o que de melhor por lá se fazia. 

Chegara o tempo de os professores brasileiros deixarem de viajar para a Catalunha e passarem a ir a São Paulo. Era chegado o tempo de os educadores portugueses deixarem de perder tempo e de gastar dinheiro indo à Finlândia, tempo de atravessar o mar, para conhecer a Escola Aberta de São Paulo.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXXV)

Olival Basto, 15 de maio de 2043

Neste Ano da Graça de quarenta e três, escrevo para relembrar esquecidas viagens a Portugal. Sobretudo aquela que fiz há vinte anos. Nessa altura, quase perdera a esperança de encontrar quem atendesse à necessidade de se melhorar melhorando a vida das crianças. Mas, por toda a parte, boas surpresas me esperavam.

Chegado às sedes de agrupamentos de escolas, era frequente que o diretor me perguntasse:

“Professor, lembra-se de mim?”

Eu não me lembrava… 

“Fui seu aluno na faculdade.”

Eram professores à volta dos cinquenta anos, em cargos de direção, dispostos a cumprir sonhos de juventude. E eu os ajudava.

Outros diretores e professores, que fiquei a conhecer no decurso dessa viagem, faziam parte de uma nova geração, igualmente decidida a mudar o rumo da educação do seu país.

Quando visitava uma escola, procurava um professor “que ainda não tivesse morrido”, um que fosse já valeria a pena o cansaço de muitas procuras. Na Escola Manuel da Maia, muitos vivos encontrei. E me emocionei com um quase inesperado reencontro com a parte saudável do sistema. 

Na Manuel da Maia, voltava a acreditar nos professores. Ao cabo de meio século, sentia que valera a pena não desistir de procurar. Volvidas sete décadas sinto-me devedor, pois nunca paguei uma dívida de gratidão. 

Sinto-me orgulhoso da amizade e grato pelo acolhimento fraterno entre as casas da Maria e do Vasco, do António e da Elisa, do Luís e da Filipa, da Andreia e do Paulo, e de centenas de amigos e companheiros, que ajudaram a preparar uma vida futura auspiciosa para a Francisca, o Rodrigo, o Vasco e os netos do António.

Aquele não eram mais um momento de reflexão sobre a escola, mas sobre a vida. De rever conceitos, de determinar a origem de chagas sociais, de acabar com as “turmas difíceis” e o “ruído do intervalo”. Já não estava ali para escutar queixas e reclamações do aluno que se comportava mal, ou que tinha faltado o gás…

A Ana, a Magda e os seus alunos prepararam um delicioso bacalhau regado a vinho tinto. Partilhamos o alimento e conspiramos. Da funcionária anónima ao presidente da associação de pais, da empregada da pastelaria ao guarda do portão da escola, já não se tentava sensibilizar ou convencer. Tinha passado mais de meio século e “explicar” a Escola da Ponte a milhares de professores. Dessa vez, ia ao encontro de professores, pais e vizinhos, para FAZER ACONTECER.

Numa manhã de sábado, antes da partida para Leiria, o Auditório Camões acolheu educadores esperançosos e decididos a empreender mudanças, em harmonia com os versos do poeta:

“Todo o mundo é composto de mudança

Tomando sempre novas qualidades

E, afora este mudar-se cada dia

Outra mudança faz de mor espanto:

Que não se muda já como soía.”

Seres incompletos que somos, estaremos, inevitável e permanentemente, mudando. Se o professor não se regenerasse, se não se interrogasse, se não encontrasse motivo para um projeto de transformação pessoal, se não pesquisasse, o aluno não aprenderia a construir projetos mediados pelo professor, não aprenderia a planejar-se, não aprenderia a elaborar roteiros de pesquisa, nem a produzir e a partilhar conhecimento. Manter-se-ia cativo de um inútil decorar matéria, para colocar em teste, obter uma nota e esquecer. Não aconteceria… uma nova construção social de aprendizagem.

De nada valeria acreditar que se sabia algo, se o saber não fosse partilhado, se não houvesse atribuição de sentido. Se não existisse diálogo, vínculo amoroso entre aprendizes, a aprendizagem dificilmente aconteceria. Uma escola não era um prédio, era relação humana. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXXIV)

Pontinha, 14 de maio de 2043

Houve uma idade áurea da educação brasileira. Aquela que, tendo começado no tempo de Lourenço Filho e do desencarne de Eurípedes, se prolongou até meados da década de sessenta. Nesse período, o nome de Anísio esteve sempre ligado a iniciativas que, se uma ditadura as não detivesse, talvez a educação de um país nesse tempo chamado de “terceiro mundo” se alçasse a níveis de qualidade muito superiores aos do “primeiro”.

Estávamos em 1971. E, nesses tenebrosos tempos, a luz que Anísio lançou sobre a Educação do Brasil quase se extinguiu com o seu sepultamento. 

Assumindo as contradições da época em que viveu, defendeu a aplicação do conhecimento científico na educação. Contudo, o discípulo de Dewey considerava ser a educação uma arte, algo mais complexo do que uma ciência, estava crente de que a educação poderia atingir o nível das belas-artes, criticando a “aplicação precipitada ao processo educativo de experiências científicas que poderiam ter sido psicológicas, ou sociológicas, mas não eram educacionais, nem haviam sido devidamente transformadas ou elaboradas para a aplicação educacional.”

Anísio não imaginaria como o Brasil viria a sofrer com a invasão de modismos e o transplante de produtos de ciência de laboratório no chão da escola, mantendo-se intocável o essencial do velho modelo de escola: “o tratamento do aluno como algo abstrato a ser manipulado por critérios de classificação em grupos supostamente homogêneos, dando ao professor a falsa esperança de poder ensinar por meio de receitas, muitas das quais de científicas só tinham a etiqueta.” 

Como seria útil aos educadores dos ido a leitura das suas obras! Teriam concluído ser necessário suster reformismos e experimentalismos e enveredar pela via da concepção de uma nova construção social de aprendizagem.

Mas, o novo ministério havia optado pelo back to basics, por uma sobralização de origem anglo-saxônica, confundindo desenvolvimento educacional com a construção de prédios escolares, confundindo educação integral com a ampliação do tempo passado dentro desses prédios. E os professores estavam demasiado ocupados na luta pela sobrevivência, não lhes sobrava tempo para o estudo.  

Anísio não cabia no deserto de ideias dos idos de vinte e três. Quase nada mudara, desde a década de quarenta, quando o Mestre dizia ser aquele o “momento brasileiro”, o real divisor de águas entre as duas mentalidades que se defrontavam no Brasil: de um lado, os que, explícita ou implicitamente, não acreditam no Brasil, e de outro, os que acham que a nação se pode redimir pela educação.” 

Nada de novo se anunciava. A reelaboração da cultura de escola e da cultura pessoal e profissional dos professores não acontecia. Se no Portugal desse tempo, a formação de professores era uma mentira assente no desperdício de milhões de euros, a do sul tropical se esgotava em si mesma, era um repositório de receitas avulsas debitadas sobre auditórios passivos. Os formadores faziam apelo teórico à prática de “metodologias ativas”, mas a metodologia efetivamente utilizada na formação era a completa negação da teoria. 

A dimensão técnica nem era a mais importante, embora não devesse ser alienada. Num país onde a praga do analfabetismo ainda não fora erradicada, era inconcebível que houvesse quem não tivesse alguma vez trabalhado no chão de escola e orientasse formação em domínios tão sensíveis como o da alfabetização. Mas era o que acontecia, comprometendo esforços de mudança.

Felizmente, paralelamente ao “desnorte” instituído, algumas “suliações” aconteciam.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXXIII)

Póvoa de Santo Adrião, 13 de maio de 2043

Concluirei nesta cartinha as referências ao Mestre Eurípedes.

Em 1904, o jornal “A Gazeta” comentava as “recentes reformas” na educação: 

A habilitação do professor vale mais que os pomposos programas oficiais, que atualmente fazem o orgulho dos docentes e a ignorância dos meninos.”

E questionava: 

Que remédios sociais podem ser apresentados como mais eficazes e prontos para dar-se um enérgico combate ao analfabetismo no Brasil?” 

Cento e vinte anos depois, o sistema de ensinagem continuava em demanda da “quadratura do círculo” da educação. 

Eurípedes ansiava por uma escola gratuita, acessível a toda a comunidade, rompendo com a ideia de um aluno passivo diante do conhecimento e submisso a uma disciplina rígida. Substituiu o ensino verbalista pela arte de observar e apreender o mundo e foi audaz, quando tentou coeducar. 

Onde já se vira moços e moças juntos?” – questionavam clérigos e barões. 

A imprensa da época, controlada pelos poderosos, não deu tréguas ao seu intento, que somente viria a concretizar-se, três décadas decorridas, na gestão do Capanema. 

Aboliu castigos e instituiu relacionamentos baseados no diálogo, contrariando “moldes pedagógicos” autoritários vigentes na época. Os alunos de Eurípedes praticavam observação e pesquisa na cidade e na natureza. Não recorria a provas, exames, para avaliar. Muito menos a classificações, a comparar pessoas. Providenciou a derrubada de paredes e daquelas que são internas, promovendo debates semanais abertos à comunidade. 

A sua proposta educacional só poderia ter por sina a contestação daqueles a quem interessa manter um sistema de ensinagem iníquo, que iria prolongar a sua agonia até à década de trinta do século XXI. 

Alcunharam de elitista o seu labor pedagógico, só porque recorria a “métodos dinâmicos de aprendizagem”. E a sua proposta teve a mesma sorte de outras tentativas de humanização, foi banida da história oficial da educação. O dogmatismo ideológico não consentia veleidades e a história da educação sempre foi feita de martírios silenciados. 

No Colégio Allan Kardec, os alunos praticavam Astronomia, o estudo da (e na) Natureza, em aulas-passeios, muito antes de Freinet. No ano em que desencarnou, escrevia o seu aluno Germano: 

“Conversávamos, estudávamos bons livros e admirávamos a natureza, admirávamos o voo dos insetos, o cantar dos pássaros e de preferência de um sabiá de laranjeira, que vinha pousar nos galhos baixos das árvores e encher o ar com sua melodia, esse era o predileto do professor.”

Aqueles jovens aprendiam a pensar e a questionar, como nos disse a Corina: “Eurípedes não queria alunos que obedecessem cegamente, mas que aprendessem a criticar, a questionar e a pensar.” 

Desencarnou no fatídico 1918, ano em que a febre amarela ceifou milhares de vidas no triângulo mineiro. Restaram os depoimentos dos seus discípulos. O seu aluno Tomás viria a ser professor do Roberto Crema, reitor da Universidade Internacional da Paz, estudioso da Normose, a patologia da normalidade.

Foi terreno fértil aquele que Eurípedes desbravou em Sacramento. O “Pestalozzi do Brasil” acreditava que escola poderia ser agente transformador da sociedade. Nos depoimentos dos seus alunos, apercebemo-nos de que transformou a escola, a partir de um novo conceito de criança e de aprendizagem, da modificação do papel do professor, da reconfiguração dos tempos e espaços pedagógicos, da reorganização escolar, da reelaboração cultural, que antecedeu, em mais de cem anos, o aparecimento de… comunidades de aprendizagem. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXXII)

Chapim de Odivelas, 12 de maio de 2043

Conheci muitos professores que, sem abdicar do trabalho em sala de aula, operaram pedagógicos “milagres”. Porém, nada deixaram escrito e se foram para a aposentação. Um imenso patrimônio jaz no limbo das ciências da educação e apenas alguns estudos de caso conduzidos por teoricistas de ocasião logram revelá-lo. 

Outros, como a minha amiga Manuela, ergueram freinetianas ilhas de excelência acadêmica cercadas de instrucionismo por todos os lados menos por um: o MEM. Após dezenas de anos de intenso e profícuo labor, lá se foi, aposentada, e a sua sala de aula se afunda nas águas turvas do instrucionismo. 

Ainda havia aqueles que, como o meu amigo António, a duras penas, conseguiram “levar a água ao moinho”, arrastando professáurios para práticas inovadoras fundadas numa legalidade comedida, aquela que, prudentemente, consideravam ser possível. Chegada a hora da aposentadoria, os seus antigos colegas logo fizeram regressar a sua escola à modorra habitual, deitando por terra todo e qualquer vestígio de inovação.

Década após década, as escolas onde generosos e voluntariosos educadores aportaram e, de algum modo, inovaram viraram cemitérios de generosas intenções. Até ao dia em que nos cansamos de derrotas morais. 

Em breve, vos contarei estórias de educadores de malogrados intentos. Hoje, é chegada a vez de vos falar de um pioneiro de Educação Nova, que, à semelhança de muitos outros insignes mestres, foi ostracizado. Não fora a Dora e o Alessandro, e a memória de Eurípedes Barsanulfo se perderia 

Em 1907, um decreto determinava uma ampla reforma na educação mineira visando a efetiva concretização uma educação integral numa escola ativa (onde foi que eu já ouvi isto?). Já na segunda metade do século XIX, havia debates em torno da importância da mudança na educação. O Rui Barbosa, por exemplo, mostrou-se empenhado num projeto de modernização do país, propôs um sistema nacional de educação, desde o jardim da infância até a universidade, e defendia uma reestruturação completa do ensino, desde métodos até a construção de prédios. 

No tempo de Eurípedes, as tendências humanistas, a realista-científica, a positivista, as marginalizadas propostas anarco-sindicalistas e anarco-socialistas, e a génese do escolanovismo dominavam os debates.  E a sua influência se fazia sentir, mantinha atualidade nos idos de vinte, ainda que revestida de digitalidade e modismos neoliberais.

Cada qual, a seu modo, perspectivava uma educação integral, o desenvolvimento simultâneo de aspectos morais, intelectuais, físicos, espirituais, o respeito pelo pleno desenvolvimento da pessoa, a abolição de castigos e recompensas, a valorização da infância, e uma outra formação de professores. 

Eurípedes mobilizava a comunidade, para que ajudasse as famílias das crianças mais carentes. Havia muitas crianças negras matriculadas e vários professores negros compunham o quadro de professores da sua escola, num tempo em que os discursos racistas, com influências eugenistas, eram comuns e os negros eram marginalizados. 

Os dias de apresentações de teatro eram dias de festa. O amigo Bigheto me contou que os alunos do Colégio Allan Kardec confeccionavam belos cenários e toda a comunidade participava: 

Eurípedes incentivava a participação dos alunos em ações sociais e os jovens aprendiam a moral na prática comunitária. Em 1907, quando uma Maria instalava a Scola dei Bambini em comunidades carentes da Itália, um Eurípedes esboçava, em Sacramento o arcaboiço de uma nova construção social de aprendizagem. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXX)

Campo de Ourique 11 de maio de 2043

No discurso sobre educação, a palavra utopia é, geralmente, sinônima de impossibilidade. Porém, utópico será algo que indica uma direção, que requer intencionalidade e ação. Como diria Quintana, “se as coisas são inatingíveis… ora! / Não é motivo para não querê-las”. 

Concretizar utopias – recriar vínculos, rever e re-olhar, reelaborar as práticas – reconfigura a metáfora do Mito de Sísifo, o “inédito viável” freiriano. A nova educação, que emergia do sonho de todos nós, deveria formar o cidadão democrático e participativo, sensível e solidário, fraterno e amoroso, o ser humano dotado de educação integral.

Nos idos de vinte, todas as teorias estavam escritas. Todas as experimentações, reformas e modas tinham sido ensaiadas. Importava renovar a denúncia da guetização da juventude, a par com o anúncio da possibilidade de uma aprendizagem participativa e transformadora. 

Não seria demasiado insistir na possibilidade de uma escola na qual os aprendizes aprendessem a lidar com um conhecimento mutante, na busca da integração das diversas dimensões do humano “para garantir condições de se atribuir novos sentidos à existência e atender a necessidade do engajamento do sujeito na construção do futuro”

O que se aprendia dentro de um edifício escolar, que não pudesse ser aprendido fora dos seus muros? 

O espaço de aprender era todo o espaço, tanto o universo físico como o virtual, era a vizinhança fraterna, caraterística das comunidades, que começavam a ganahar espaço na produção teórica, escasseando a prática. Dispúnhamos de protótipos de comunidades de aprendizagem, práticas de eco-sustentabilidade, de estímulo ao espírito inventivo. Adotávamos soluções novas, baseadas no princípio ético que nos diz que tudo o que for inovado o deva ser para benefício coletivo. 

O modelo escolar não era o único modelo de educação. A educação deveria do ser pensada mais a partir de uma rede de comunidades, de pessoas, do que a partir de instituições, de modo a que os processos de aprendizagem tivessem um papel social transformador. 

A escola era o equipamento social mais abundante. Feito um mapeamento do lugar, numa área de escassos quilômetros quadrados, encontrávamos meia dúzia de escolas. Mas as comunidades de aprendizagem não careciam da existência de um prédio escolar (a “pedagogia predial”, como o Lauro ironizava) e sim da utilização de prédios e espaços da comunidade, nos quais, os estudantes pudessem aprender e exercer cidadania, desfrutando dos seus direitos ou realizando seus deveres, para o bem de todos. 

Urgia que a escola não fosse uma interface com a realidade social, mas espaço onde ocorressem atos contributivos do desfazer do abismo entre a realidade escolar e outras realidades. Tampouco a aprendizagem dependeria apenas do professor, pois era necessária “uma tribo inteira para educar uma criança”. 

Urgia rever os conceitos de espaço e tempo de aprendizagem, para que os “paidagogos” não mais conduzissem crianças da comunidade para a escola, mas as libertassem da reclusão num gueto escolar e as devolvessemm à comunidade, na qual a escola se constituiria num nodo de uma rede de aprendizagem colaborativa.

As escolas poderiam constituir-se em espaços de cultura, lugares onde os saberes eruditos se casariam com saberes populares e tecnologias sociais dolugar, onde a transformação aconteceria na partilha de conhecimento produzido. Os prédios das escolas, seriam utilizados sem necessidade de entrada no horário-padrão de aula, ou de “ter falta”… por chegar atrasado.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXIX)

Lisboa, 9 de maio de 2043 

Hoje, a bisavó Fátima completa oitenta e sete primaveras. Continua jovem e apaixonada pelas coisas da educação. Não vos esqueçais de lhe dar uns beijinhos de parabéns!

Por estes dias de maio, mas os da viagem a Portugal do maio de vinte e três, encontrei uma nova geração de educadores dispostos a reaprender a aprender e disponíveis para agir. Nesse tempo, era exponencial o crescimento dos chamados “centros de explicações” e “centros de estudo”. Também aumentava o número de greves, o “bournout”, o suicídio juvenil e o “ensino doméstico”. Até se permitia o ensino individual e havia empresas estrangeiras a ensinar, à distância, alunos portugueses.

As famílias dissidentes e que possuíam elevado poder de compra protegiam os seus filhos, pagando aquilo que a Constituição dizia ser direito de todos e, por essa razão, logicamente gratuito. A escola (dita) pública, criada para garantir equidade, reproduzia um modelo escolar (e de sociedade) excludente.

Surgiriam saudáveis reações à insustentável situação, que confirmaram o teor da epígrafe, que junto a esta cartinha. A amiga Magda havia dito que o diretor Luís era pessoa sensível à necessidade de transformar a construção social prussiana numa nova construção social. Pude confirmar que se tratava de um educador de raiz e de um ditoso diretor, pois havia no quadro da escola professores a quem se podia chamar professor. Gente inquieta, curiosa e que, apesar dos pesares, se disponibilizava para se reelaborar culturalmente. 

Naquela manhã de maio, feito o convite à mudança, foram muitas as perguntas dos professores: “Como se poderá concretizar essa utopia? Como se tornará permanente e sustentável? Qual a formação necessária? Será feita alguma sensibilização?”

Disse-lhes que não pretendia sensibilizar, ou convencer. Que acreditava terem tomado uma decisão ética e que, a partir daquele momento, eu era mais um elemento de uma equipe de projeto.

Comedido, cuidadoso, pois era experimentado nas andanças da direção, o Luís me ajudou a identificar zonas de autonomia relativa. Concebeu um plano de caraterísticas intermédias entre aquilo que a burocracia ministerial permitia e o que seria do domínio da utopia. E, enquanto o prudente Luís ia contornando burocráticas armadilhas, para criar círculos de aprendizagem na sua escola, eu tinha os meus estrábicos olhos pousados no Bairro do Loureiro e no antigo Cinema Europa. 

Nos anos que se seguiram ao encontro de Lisboa, a “Manuel da Maia” foi uma das cinco escolas de referência, que impulsionaram o aparecimento de novos e inovadores projetos. A saga pedagógica lusa acompanhou a evolução de projetos da outra margem do Atlântico, contrapondo ao “home schooling” anglo saxônico o “community schooling” latino. 

A educação passou a ser, efetivamente, da responsabilidade da tríade escola-família-sociedade. A Escola, o Poder Público e a Universidade convergiram num projeto de humanização. Os projetos das escolas se articularam com áreas como a Saúde Púbica e Ambiente e a Arte e Cultura. 

No maio de há vinte anos, foi dado o primeiro passo para a criação de protótipos de comunidade, a partir de uma organização social em círculos. Estes poderiam tomar a forma de círculo de aprendizagem de proximidade, a forma de “turma-piloto”; ou de círculo de vizinhança, iniciativa de famílias, contando com a adesão de professores e escolas. Prova provada de que ainda havia professores dispostos a tomar uma decisão ética, de boa gente que projetava “versão sua no futuro” e não desistia, quando encontrava “coisa difícil”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXVIII)

Odivelas, 8 de maio de 2043

Ainda faltam dois dias para o meu nonagésimo segundo aniversário, mas recebi um presente antecipado. Vos reencaminho uma cartinha recebida da Isabel, para que compreendais que, contra ventos e marés, o vosso avô sempre manteve uma inabalável “fé pedagógica” e sempre acreditou nos professores. 

“Morada das Águias, maio de 2043,

Nada acontecia por acaso, somente por sincronicidade. Não foi por acaso, vinte anos atrás, quatro tutoras (Janaína, Isabel, Helke e Karoline) e a diretora Mariângela serem escolhidas para a “empreitada” de fazer acontecer, de fato, a Comunidade de Aprendizagem da Morada das Águias, o lugar de “voar mais alto”, como o avô professor escreveu em sua carta datada no dia 05 de abril de 2043. 

Naquele momento, fez revelações do que viria pela frente, o que iríamos ter que enfrentar. Será que ele possuía uma bola de cristal? Ou, simplesmente, a voz da experiência nos avisando e nos preparando para o que iríamos enfrentar?

Em sua carta, dizia: “A escola deixara de fazer sentido e eu me perguntava se faria sentido ficar parado, a ver passar tempos de mudança”. Como educadora, confesso que nem eu mesma ainda tinha dado conta, antes daquele tempo, de que muito precisava ser feito, para que a sala de aula tivesse realmente sentido, ou seja, fazer com que os alunos fossem sujeitos ativos no processo de ensino aprendizagem, assim como os educadores, compartilhando, aprendendo, ensinando e fazendo com que uma aprendizagem significativa acontecesse em comunidade, onde todos, inclusive pais e outros sujeitos participantes da comunidade ao redor também pudessem contribuir com conhecimentos adquiridos pela vida. 

Muitos educadores sentiam medo dessas inovações. Não estavam dispostos a escutar, a se desconstruir e reconstruir para que, enfim, o ensino fizesse sentido para o educando e a transformação acontecesse na vida de todos. 

Modificar dói, é um processo nada fácil. Para nós, não foi diferente, foi extremamente doloroso, mas, que depois foi ficando mais fácil. Tudo passou a fazer sentido, como se uma venda nos tivesse sido tirada dos olhos, enxergando uma evolução como autoras de um projeto e como seres humanos. Foi algo tão fantástico, que nos transformou.

Primeiramente, uma transformação interna, deixar de acreditar sermos as únicas detentoras do saber, de transferir o conhecimento para as gerações futuras, pelo simples fato de possuirmos a formação “correta”, “necessária” para tal.  

Mas, ensinar conteúdos “importantes” bastaria? O que eram conteúdos importantes? Seriam esses conteúdos para os educadores, ou para os educandos? Ensinar e não dar voz ao educando, limitarmo-nos aos livros didáticos bastaria? Foram essas e outras questões que nos permearam e fizeram parte da nossa prática, desde então.

Em segundo lugar, a transformação da prática de um modo que realmente funciona. Não continuar na mesmice, num processo de ensino para compor tabelas e gráficos que “mascaravam” a realidade. 

Passamos por essas transformações, para oferecer a todos as oportunidades que qualquer ser humano merece: ser respeitado e ser ouvido, como sujeito aprendente em sua essência, possuidor de um desejo incansável de aprender, de buscar sabedoria, de descobrir, criar, recriar.

Sentimos orgulho um profundo sentimento de gratidão por termos feito parte de uma inovação. É maravilhoso olhar para trás e ver o quanto esse processo educacional modificou o nosso ser e nos ajudou a transformar a vida das gerações futuras.”

Dizei, queridos netos, se não valeu apena acreditar nos professores!

 

Por: José Pacheco

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