Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLVIII)

Capelas, 7 de junho de 2043

Nos idos de vinte e três, encontrei nos Açores um projeto onde todos os alunos eram “especiais”, quando a “inclusão” prometida em Salamanca ainda não passara de mero enfeite de tese. O conceito precisava de clarificação. Comprovei essa necessidade, inopinadamente.

Quando me perguntavam: “Então? Tudo bem?”

Eu respondia: “Não está tudo bem, mas há-de ficar”

Quando me perguntavam: “O senhor é o José Pacheco”

Respondia: “Tem dias! Tem dias em que creio ser, outros em que ando à minha procura”.

Havia dias em que não deveria sair de casa… E organizador daquele evento não sabia que eu estava num desses dias. Pela enésima vez, me dirigiu convite:

“O senhor doutor não vem ao palco? Venha! Suba!””

Não subi.

 “Tem power point?”

“Não. Só tenho power.”

Pareceu não entender a chalaça. E insistiu:

“Pode dar-me a sua “apresentação.”

“Não tenho “apresentação.”

“Então, o que é que o senhor doutor vai dizer na sua palestra?” 

“Não sei” – respondi – “Ainda ninguém perguntou.”

Eu não palestrava, transformava auditórios em escutatórios. Escutava, dialogava, convidava à ação refletida. Como sempre, perguntei:

“O que quereis saber?”

Milhares de vezes havia feito essa pergunta. A resposta era o silêncio. Porém, daquela vez, um braço se ergueu. 

“A senhora quer fazer uma pergunta?”

“Não é bem uma pergunta. É um comentário. Posso fazer?”

“Certamente! Faça o favor!”

“O senhor é a pessoa indicada para abrir um congresso de inclusão.”

“Muito obrigado, minha senhora”.

“Não acabei…” – disse a senhora, sustendo a vaidade que me invadia. Deveria ter lido os meus livros sobre inclusão e me parabenizava.

“Então, diga.”

E a senhora disse:

“O senhor é a pessoa indicada para abrir um congresso sobre inclusão, porque eu já vi que o senhor é deficiente.”

Gargalhada geral! 

Contei até vinte. Respirei fundo. Perguntei:

“A senhora acha que eu sou deficiente por quê?”

“Porque eu já vi que o senhor é estrábico.”

“A senhora pode chamar-me estrábico, vesgo até, mas a deficiência é de natureza conceptual ou de contexto. Expliquei que, quando tentei ensinar um surdo, não consegui. E que, se houvesse um deficiente ali, seria eu, que não sabia a linguagem gestual. Quando uma criança com paralisia cerebral chegou à Ponte, deficiente era o contexto, pois não havia rampa de acesso. 

A senhora não desarmou:

“O senhor é deficiente.”

“Por quê, minha senhora?”

“Porque o senhor vê menos do que eu!” 

Essa “deixa” me permitiu provar-lhe o contrário, questionando o velho conceito anglo-saxônico da “teoria dos dotes”. Contei-lhe um episódio por mim vivido, quando via um programa de televisão num espaço público. 

Um daqueles seres humanos, que andam sozinhos no mundo não me viu – eu seria paisagem, transparente – e se colocou entre mim e o aparelho de televisão.

Perguntei à senhora:

“Se estivesse no meu lugar, como reagiria?”

“Eu diria para o cavalheiro ter respeito e sair da minha frente.”

“A senhora iria criar uma situação de conflito.”

“Pois ia.”

“Eu não precisei de criar tal situação.”

“Como? O sujeito não se pôs entre si a televisão?”

“Pôs-se entre mim e a televisão. Mas, eu fechei o olho direito e passei a olhar a televisão com o olho esquerdo, continuei a ver a televisão. A senhora é capaz de fazer isso?”

“É claro que não!”

“Então quem é o deficiente? A senhora, que só consegue ver de uma maneira, ou eu, que vejo de três?”  

Perduravam muitos equívocos nas mentes e nas práticas. A chamada “educação inclusiva” não era missão exclusiva da Escola. Era um produto histórico de uma época e de realidades educacionais que requeriam o abandono de estereótipos e preconceitos.

 

Por: José Pacheco

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