Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXV)

Leiria, 2 de outubro de 2043

Esperançoso, mas prevenido, cuidei de colocar novos projetos ao abrigo de perigos que, em 2001, descrevera numas cartinhas: 

“As gaivotas inventaram outros modos de viver e de voar. Contrariavam os porquenãos, pássaros com tendência para beber silêncios no degredo dos ninhos.” 

E por aí seguia uma corrente de metáforas, fraternos avisos, em tempos de desfeita euforia. Tinham decorrido mais de duas décadas. A pequenina Alice, a quem enviei tantas cartinhas, já estava terminando um mestrado em Psicologia. Como o tem passa, tão rapidamente!

Quando o corpo já dava sinais de cansaço, quando já quase decidia suster a contínua viagem, eis que novos focos de mudança despontavam. No distante 2023, fiz três viagens a Portugal, os últimos périplos de prospecção de “não-lugares” (recordais-vos da definição de “utopia”?), onde uma nova educação surgia. 

Quando já pensava que, em Portugal, o torpor instrucionista se apossara definitivamente dos educadores, o entusiasmo de diretores de agrupamento, de vereadores da educação e de diretores de agrupamento de escolas me surpreendeu. Restabeleci o diálogo, reuni energias dispersas, num derradeiro fôlego. E me deixei atrair pelo ímpeto de novos e inusitados projetos. 

Outubro foi mês de criar círculos de aprendizagem (turmas-piloto e círculos de vizinhança), de reunir projetos dispersos em “Assembleias de Redes de Comunidades de Aprendizagem (ARCA)” e negociar com o Ministério da Educação a criação de um “Grupo de Trabalho”.

Em cinco “não-lugares” concentrei esforços. A norte, uma ARCA potente, formada por mães e uma diretora de agrupamento se juntava à de São João da Madeira e outras iniciativas, para formar a ARCA Norte. Em Leiria, um belo grupo de “formandos” criava a ARCA Centro. A lisboeta “Manuel da Maia” juntava-se a projetos de Palmela, dos Algarves, das Caldas e outros componentes do que seria a ARCA Litoral. Entre Montemor-o-Novo, Évora, Campo Maior e Foz Coa, surgia a ARCA Interior.

Entretanto, iam chegando notícias de novos e vis atentados à educação. Da potencial comunidade “Alice no País das Árvores” chegava um apelo:

“Somos um projeto de educação ao ar livre, denominado ALICE no País das Árvores. Enviamos email, hoje de manhã, com um pedido de ajuda num processo a decorrer, após uma denúncia e inspeção. 

Os inspetores exigiram documentação, não nos deixaram explicar o projeto e ameaçaram encerramento da comunidade. Disseram que o edifício (a nossa ágora) não ser e que “o terreno é irregular, o que pode motivar quedas de crianças”. Tentamos explicar que comunidade de aprendizagem não é um prédio, mas pessoas e que o terreno era parte do território da nossa comunidade. Nada adiantou. Nem sequer nos ouviram. 

Enviámos todos os detalhes no email e agradecemos qualquer ajuda possível.”

Mais uma “denuncia anónima”! Mais uma manifestação de prepotência. E até parecia que estávamos num Estado de Direito, após cinquenta anos de democracia… 

A Inspeção baseava a sua intervenção em regulamentos que não se adequavam à prática de comunidade de aprendizagem. Alegavam irregularidades numa creche, quando numa comunidade de aprendizagem não existe segmentação cartesiana – a aprendizagem acontece desde o pré-natal e vai até ao último sopro de vida. Certamente, os inspetores agiram por desconhecimento do teor do artigo 48º da Lei de Bases do Sistema Educativo:

“Na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa.”

 

Por: José Pacheco

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