Inoã, 22 de novembro de 2043
Como já vos contei, há alguns anos, uma amiga quis conhecer por dentro uma “utopia” que, em equipa, íamos ajudando a construir. Mais tarde, conhecedora da perturbação que eu semeava por tudo o que era colóquio ou congresso, lançou-me um desafio:
“Por que não vais desassossegar espíritos para uma instituição de formação inicial de professores?”
Acabei por aceder ao repto. Confesso tê-lo feito por curiosidade, apenas “à experiência” e desconfiado de que não iria manter-me por lá por muito tempo. Bem me tramei. Tomei-lhe o gosto e pude dar largas à minha irremediável tendência de (fraternalmente) provocar.
A primeira surpresa foi a de constatar o drama de jovens almas, naquele engano de alma ledo e cego que os primeiros dias de docência não deixam durar muito, aderindo, entusiasticamente, às ideias do Freinet, do Dewey, do Rogers, do Freire, para que não fossem apenas matéria a decorar para os exames, nem fizessem desses egrégios autores múmias dissecadas em dissertações.
Em sucessivas fornadas, concluído o curso, lá foram em busca do projeto do seu sonho. Foram muitos os chamados e escassos os escolhidos. Dos que se perderam em opções fáceis não rezará a história, nem eu. Só lamento o tempo perdido e desejo que, um qualquer dia, venham a encontrar-se.
Ontem, dei-vos a conhecer a mensagem recebida de um aluno que desistiu de ser professor, que optou pela “solução mais simples”. Confesso que essa desistência foi causa de grande perturbação. Ele era um jovem inteligente, generoso, idealista.
Quando a mediocridade se sobrepõe à generosidade, a indignação é coisa pouca. Sempre que me confronto com a amargura da desistência, do insucesso de um ex-aluno, sinto-me o mais miserável dos professores. O insucesso de um jovem e de um professor jovem é algo que me custa a digerir. Tanto mais que me assaltava algum sentimento de culpa. Contribuíra para a tragédia. Não fizera tudo o que devia. Falhara.
Apesar da injeção de paliativos, o sistema ia de mal a pior. E, dado que se continuava a confundir argumentos com especulações, todos ralhavam e ninguém tinha razão. Por esse e por outros bons motivos, vinha defendendo ser inadiável criar condições para que aqueles que buscavam fazer uma escola diferente, mais fraterna, mais digna, a pudessem concretizar. Alguma coisa teria de mudar nas escolas, para que ninguém, por ignorância, preguiça, ou acomodação, ousasse “não querer” e pudesse impedir os que quisessem.
Quantos mais verdadeiros professores teriam de desistir? Quantos mais verdadeiros projetos seriam liquidados com a chegada à escola de um “professor não sensibilizado para o trabalho cooperativo”?
Os professores envolvidos em projetos (que não fossem apenas de papel) não procuravam a obtenção de privilégios. Bem pelo contrário: para viabilizarem a formação de equipas de projeto, muitos que conheci fizeram opções de vida que acarretaram prejuízos para a sua vida pessoal e profissional. Poderei prová-lo.
Muitos outros, por via de uma legislação obsoleta, viram ser-lhes negado o direito a participar (como diria o saudoso Paulo Freire) nos projetos dos seus sonhos, e já se aposentaram. Viram a burocracia aliar-se aos que “não queriam” e que tinham o “direito de não querer”.
Ao longo de cinco décadas, vi o trabalho de equipas de professores ser destruído, em escassos dias, por outros professores, que, por não estarem atentos à necessidade de reelaboração da sua cultura pessoal e profissional, se mantinham cativos de uma cultura de funcionário público.
Mas, au bout du chagrin, une fenêtre ouvert…
Por: José Pacheco
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