Cidade do Porto, 8 de dezembro de 2043
Entrados no mês de maio, as lojas se preparavam para o Dia das Mães. No Brasil, a data era a segunda em números de vendas, perdendo apenas para o Natal. O Dia das Mães fabricado nos Estados Unidos mobilizava todo o comércio.
A criadora desse “Dia”, Anna Jarvis, não esperava que ele fosse usado em campanhas publicitárias e transformado em uma data comercial. Anos depois da criação da data comemorativa, Anna passou a pedir o fim dela, segundo o livro “Em Memória da Maternidade”.
No Portugal de 1973, o “Dia do Pai” era 19 de março (Dia de São José) e o 8 de dezembro ainda era o “Dia da Mãe”. Na véspera do “Dia da Senhora da Conceição” de 2023, a Mariana anunciava à família que iria ser mãe. A Vovó Ludi iria ser avó pela segunda vez. A Analu iria ter um priminho para brincar. A vida se renovava.
Essa notícia fez assomar ao mais recôndito recanto da memória de muito longo prazo eventos de cinquenta anos antes. No “Dia da Mãe” de 1973, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição se enfeitou de flores, para receber os devotos da Virgem Maria. E o Grupo Coral, mais uma vez, animou a cerimónia – nesse dia, de modo diferente do habitual.
Era ainda o tempo da ditadura de Salazar. O padre – vim a saber, mais tarde, ser informador da polícia política – feito “vendilhão do templo”, tinha vendido lugares nos genuflexórios das primeiras filas. Os elementos do Grupo Coral estragaram o negócio, pediram aos escuteiros que se sentassem nas primeiras filas e assim fizeram. Instalou-se a confusão. E, naquele 8 de dezembro, se formou uma “célula” de desobediência civil. Nela criei amizades duradouras.
A Revolução dos Cravos não tardaria a chegar. Com o seu advento o grupo se dispersou. Dele fazia parte uma extraordinária mãe e educadora, que, ao longo de três décadas, participaria do projeto Fazer a Ponte. E um jovem professor primário, que se fez psicólogo e acabou professor universitário. Um dia, vos falarei das metamorfoses por que passaram, ao longo de meio século.
Ao longo de todo esse tempo, boas surpresas e outras tantas deceções me mostraram quão volúvel poderia ser um ser humano. A inconstância era a regra. E dei por mim, também, a atravessar ciclos mutacionais. De modo que, quando me perguntavam:
“O senhor é o Professor Pacheco?”
Eu respondia:
“Tem dias, meu amigo, tem dias!”
Face à perplexidade expressa no rosto do meu interlocutor, juntava uma “explicação”:
“Tem dias em que acredito que eu seja eu. Em outros dias, eu passo horas à minha procura, como qualquer outro ser humano. Ou não será assim?”
Um embaraçado silêncio era resposta.
A cinquenta anos de distância, eu procurava identificar o que de mim o mundo tinha feito e o que eu fizera daquilo que o mundo de mim havia feito.
Já o Camões o tinha sentido, não há meio século, mas há cinco séculos:
“Que dias há que na alma me tem posto / Um não sei quê, que nasce não sei onde / Vem não sei como, e dói não sei porquê.”
A quinhentos anos de distância, o soneto “Busque Amor novas artes, novo engenho” – uma obra-prima quinhentista – passava por tratos de polé, nas mãos de quem o dissecava, como se fora o poema um cadáver esquartejado a bisturi. Chamavam a isso “Interpretação do texto”:
“Segundo os versos do poema, o eu lírico: a) está à procura do Amor / b) está amando e cheio de esperanças / c) está seguro devido ao Amor / d) está sem esperança.”
Os testes de escolha múltipla não abriam espaço para a subjetividade. Não se contemplava a imprevisibilidade do agir humano. Dadores de aula sedimentavam o tédio e o desamor. Pobres criaturas, que estavam tão seguras do “seu método” como alheias à vida – não “tinham dias”.
Por: José Pacheco