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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLII)

Cidade do Porto, 8 de dezembro de 2043

Entrados no mês de maio, as lojas se preparavam para o Dia das Mães. No Brasil, a data era a segunda em números de vendas, perdendo apenas para o Natal. O Dia das Mães fabricado nos Estados Unidos mobilizava todo o comércio.

A criadora desse “Dia”, Anna Jarvis, não esperava que ele fosse usado em campanhas publicitárias e transformado em uma data comercial. Anos depois da criação da data comemorativa, Anna passou a pedir o fim dela, segundo o livro “Em Memória da Maternidade”.

No Portugal de 1973, o “Dia do Pai” era 19 de março (Dia de São José) e o 8 de dezembro ainda era o “Dia da Mãe”. Na véspera do “Dia da Senhora da Conceição” de 2023, a Mariana anunciava à família que iria ser mãe. A Vovó Ludi iria ser avó pela segunda vez. A Analu iria ter um priminho para brincar. A vida se renovava. 

Essa notícia fez assomar ao mais recôndito recanto da memória de muito longo prazo eventos de cinquenta anos antes. No “Dia da Mãe” de 1973, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição se enfeitou de flores, para receber os devotos da Virgem Maria. E o Grupo Coral, mais uma vez, animou a cerimónia – nesse dia, de modo diferente do habitual. 

Era ainda o tempo da ditadura de Salazar. O padre – vim a saber, mais tarde, ser informador da polícia política – feito “vendilhão do templo”, tinha vendido lugares nos genuflexórios das primeiras filas. Os elementos do Grupo Coral estragaram o negócio, pediram aos escuteiros que se sentassem nas primeiras filas e assim fizeram. Instalou-se a confusão. E, naquele 8 de dezembro, se formou uma “célula” de desobediência civil. Nela criei amizades duradouras. 

A Revolução dos Cravos não tardaria a chegar. Com o seu advento o grupo se dispersou. Dele fazia parte uma extraordinária mãe e educadora, que, ao longo de três décadas, participaria do projeto Fazer a Ponte. E um jovem professor primário, que se fez psicólogo e acabou professor universitário. Um dia, vos falarei das metamorfoses por que passaram, ao longo de meio século.

Ao longo de todo esse tempo, boas surpresas e outras tantas deceções me mostraram quão volúvel poderia ser um ser humano. A inconstância era a regra. E dei por mim, também, a atravessar ciclos mutacionais. De modo que, quando me perguntavam: 

“O senhor é o Professor Pacheco?”

Eu respondia:

“Tem dias, meu amigo, tem dias!”

Face à perplexidade expressa no rosto do meu interlocutor, juntava uma “explicação”:

“Tem dias em que acredito que eu seja eu. Em outros dias, eu passo horas à minha procura, como qualquer outro ser humano. Ou não será assim?”

Um embaraçado silêncio era resposta. 

A cinquenta anos de distância, eu procurava identificar o que de mim o mundo tinha feito e o que eu fizera daquilo que o mundo de mim havia feito. 

Já o Camões o tinha sentido, não há meio século, mas há cinco séculos:

“Que dias há que na alma me tem posto / Um não sei quê, que nasce não sei onde / Vem não sei como, e dói não sei porquê.”

A quinhentos anos de distância, o soneto “Busque Amor novas artes, novo engenho” – uma obra-prima quinhentista – passava por tratos de polé, nas mãos de quem o dissecava, como se fora o poema um cadáver esquartejado a bisturi. Chamavam a isso “Interpretação do texto”:

“Segundo os versos do poema, o eu lírico: a) está à procura do Amor / b) está amando e cheio de esperanças / c) está seguro devido ao Amor / d) está sem esperança.”

Os testes de escolha múltipla não abriam espaço para a subjetividade. Não se contemplava a imprevisibilidade do agir humano. Dadores de aula sedimentavam o tédio e o desamor. Pobres criaturas, que estavam tão seguras do “seu método” como alheias à vida – não “tinham dias”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLI)

Rio Bonito, 7 de dezembro de 2043

A Ana, da Escola Júlia Cortines, nos pusera em contato com educadores sedentos de mudança, e lá fomos até Rio Bonito. Uma boa surpresa nos esperava nesse encontro, algo raramente visto: a secretaria da educação estava representada por três excelentes educadoras.

No dia seguinte, fomos até ao Campo de São Bento, à escola da Ana, para conversar sobre valores e adaptar uma “dinâmica de grupo” às necessidades daquele momento. 

A Escola Júlia Cortines estava aconchegada num terreno que, a partir de 1697, albergava o Mosteiro de São Bento. O parque, que fora urbanizado em 1908, segundo um projeto de um engenheiro paisagista, era o principal jardim público urbano de Niterói. Entre canteiros, um lago artificial, brinquedos para crianças e um pequeno parque de diversões, acontecia… Escola. 

O lugar era inspirador, com o seu coreto, marco do romantismo popular de fins do século XIX, tombado como Patrimônio Cultural, em 1985. Nos fins de semana, uma feira de artesanato lhe fazia companhia, reunindo pessoas ao seu redor. Ao longo do ano, o parque se animava com variadas atrações: exposições, lançamentos de livros, shows, cursos e apresentação de filmes e vídeos.

Dentro do Campo de São Bento funcionavam o Grupo Escolar Joaquim Távora, o Centro Cultural Paschoal Carlos Magno e o Jardim de Infância Júlia Cortines. 

A Escola Júlia Cortines dispunha de biblioteca, auditório, espaço de informática e espaços de aprendizagem sem fim, num imenso parque. Ali, entre o Campo de São Bento e o Morro do Estado, fraternalmente unindo escolas, professores, gestores, nascia uma rede de comunidades de aprendizagem.

Esse agradável final de tarde terminou com um rápido regresso a casa, onde nos esperava mais uma live, dessa vez, com o Rodrigo e outros amigos. Um tempo de deliciosa conversa, que seria o culminar de uma série de encontros, nos quais preparamos o que seria o ano experimental da criação de novas construções sociais de aprendizagem. E talvez a envolvência daquele coreto pudesse transformar-se numa… ágora.

E quem nos levara até à Anísio, à Darcy, à Júlia? Os nossos amigos Karina e Vinícius. Desde há 17 anos, faziam de sonhos realidades. Na Casa Reviver, uma equipe de jovens e de gente boa menos jovem “fazia a diferença”, acompanhando o dia a dia dos projetos de vida de muitas crianças e famílias. 

Um pouco por todo o Brasil, fomos encontrando focos de humanização. Também fomos colhendo, aqui e ali, relatos de desumanidade:

“As nossas crianças continuam a ser vítimas de “bala perdida”, diariamente, fuziladas por efeito de um sistema educacional falido. Estão mortas, com um celular na mão, que na vida adulta trocam por drogas e muitos filhos. Em meio ao bombardeio de tantas guerras e vulnerabilidade social: violências – abuso sexual, desemprego, racismo, feminicídio, corrupção – nos sentíamos numa ilha na cidade que exclui e nos tira a voz.

Mas, não desistimos. Vamos construindo pontes de esperança. Haverá dias melhores, certamente!”

Dias melhores chegariam. Educadores das duas margens do Atlântico lançaram um debate não reservado a “especialistas”, mas de todas as pessoas – as redes eram pessoas, não eram instituições – e essa iniciativa viria a ser origem da criação de assembleias (ARCAs), em que o diálogo aberto e transparente não se limitava a queixas e lamentações. O debate colocava os “especialistas”, os “doutores” e os “cientistas da educação” perante um dever de coerência

Dizia o amigo Nóvoa que não valeria a pena uma permanente indignação, caso ela não se traduzisse em ação decidida e constante. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXL)

Gávea, 6 de novembro de 2043

Freire dixit: “O fracasso é do sistema”. Por isso, na cartinha de hoje, retomaremos a leitura do extraordinário depoimento do amigo Nóvoa. Ele falava-nos – em 2006! – de “transbordamento curricular”, uma das “manobras de diversão” em que o sistema de ensinagem era fértil, no intuito de disfarçar as suas fragilidades.

Nóvoa enunciava o que, em poucos meses, aquilo que os senhores deputados da Assembleia da República tinham proposto integrar no currículo escolar:

“Preservação do património cultural, dos monumentos, das tradições e das culturas locais; educação para a saúde, nas suas múltiplas vertentes, desde a saúde oral até ao combate às epidemias e, em particular, à gripe das aves; prevenção da toxicodependência e do tabagismo, bem como na promoção de comportamentos saudáveis; educação alimentar e numa correta aprendizagem de hábitos de consumo, aos mais diversos níveis; educação sexual, combatendo assim um dos dramas maiores da sociedade portuguesa, sobretudo nos meios mais pobres; prevenção dos acidentes, através de uma cuidadosa educação rodoviária. 

Referiu-se ainda que a escola não pode alhear-se de um conjunto de “cuidados” a prestar às crianças e chamou-se a atenção para o seu papel no combate aos maus-tratos, aos abusos sexuais e à violência no seio da família. Falou-se na educação para a cidadania, na promoção dos valores, na prevenção da delinquência juvenil e na criação de ambientes sociais e familiares seguros. E na necessidade de assegurar o “pleno desenvolvimento físico, intelectual, cívico e moral dos alunos”. E, como não podia deixar de ser, aqui se referiu a importância das necessidades educativas especiais, aqui se insistiu na aprendizagem das novas tecnologias e na aquisição de “competências de empregabilidade”, etc. etc. etc.

Tudo isto apenas nos últimos meses de debates nesta Câmara. E tudo isto é justo e acertado. E tudo isto merece ponderação. E nenhum de nós se atreveria a excluir uma única destas tarefas da lista de tarefas da Escola. Mas será que ela pode fazer tudo isto, para além daquela que é a sua missão primordial? 

A minha resposta é não. A escola está esmagada, sufocada, por um excesso de missões. Importa, pois, recentrá-la nas atividades especificamente escolares, o que obriga, por outro lado, ao reforço de um espaço público de educação, no qual as famílias, em primeiro lugar, mas também as empresas, as igrejas, as associações, os centros de saúde ou as autarquias, entre tantas outras entidades, assumam as suas próprias responsabilidades. 

Há quanto tempo repetimos, em Portugal e no resto do mundo, que os currículos e os programas são demasiado extensos? Mas todos os dias lá colocamos uma nova disciplina, um novo conteúdo programático, uma nova competência. E depois… os professores que resolvam o problema como puderem. 

A escola é criticada (e bem) por causa dos maus resultados dos alunos, nomeadamente, em disciplinas nucleares. Mas é também criticada (e igualmente bem) por não preparar as novas gerações para a sociedade do conhecimento, para as novas tecnologias, para a inovação. 

No seu discurso de tomada de posse, o Presidente da República afirmou que a escola, mais do que ensinar, deve ensinar a aprender, acrescentando mesmo que mais decisivo ainda era “aprender a empreender”. Não é um dilema fácil de resolver, pois é preciso estabelecer prioridades e não basta dizer que tudo é importante. Estamos preparados para o enfrentar?” 

Clarividente, o amigo Nóvoa repetiria a mesma pergunta, anos a fio e de diferentes modos. 

Qual seria a resposta?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXIX)

São Conrado, 4 de dezembro de 2043

Freire dixit: “O fracasso é do sistema”. E, naquele livro de que vos falei em outras caras – “Evidentemente” –, o amigo Nóvoa questionava a ideia de um “único melhor sistema”. Vede:

“O último terço do século XIX é um período essencial para compreender a consolidação de formas de organização escolar que, apesar de sucessivas tentativas de mudança, resistiram até aos dias de hoje. 

Há um conjunto de evoluções que produzem a gramática da escola: alunos agrupados em classes graduadas, com uma composição homogénea e um número de efetivos pouco variável; professores atuando a título individual, com perfil de generalistas (ensino primário) ou de especialistas (ensino secundário); espaços estruturados de ação escolar, induzindo uma pedagogia construída essencialmente no interior da sala de aula; horários escolares rigidamente estabelecidos, que impõem um controlo social do tempo escolar; saberes organizados em disciplinas escolares, que são as referências estruturantes do ensino e da pedagogia. 

É neste momento, de grande densidade histórica, que se fabrica uma conceção de trabalho escolar, que está impregnada de uma pedagogia nova e de práticas de ensino que integram princípios de avaliação, de progressão e de organização dos estudos.”

A “impregnação” consolidou-se, ao longo do século XX, malgrado as críticas e os devaneios teóricos de académicos ociosos. Até mesmo as escolas montessorianas, waldorfianas, freinetianas e outras propostas escolanovistas não escaparam à “impregnação” e mantiveram o tipo de organização: “classes”, “sala de aula”, horários padronizados etc. Se o que é evidente… mente, voltemos ao livro, que o amigo Nóvoa publicou em 2005:

“No caso do ensino primário, as escolas centrais são a melhor ilustração deste processo. A ideia de dividir as aulas da instrução primária em “classes”, distribuindo os alunos “não pela idade ou pela altura, mas pelo seu estado de adiantamento”, constitui uma novidade. 

A regulamentação dos programas para cada classe configura um “ensino metódico e progressivo” e um modelo de ação do professor que estão na origem da “escola moderna” (…) No caso do ensino liceal, a reforma de 1894-1895 consagra a passagem de um sistema de disciplinas avulsas para um regime de classes. Os textos regulamentares sobre a prática do ensino fixavam, à partida, que nenhuma disciplina do plano de estudos era independente e que todas estavam ligadas “pelo princípio de uma intenção comum”. 

Como escreverá mais tarde o autor da reforma, Jaime Moniz, tratava-se de instituir uma “distribuição comum, consecutiva, paralela, por justaposição, gradual”, valorizando uma organização horizontal do currículo, baseada na ligação entre as disciplinas e na coordenação do trabalho dos professores. O modelo tinha como principal objetivo “reduzir à unidade, no espírito do aluno, a variedade forçosa das matérias de ensino”.

Estes apontamentos breves permitem compreender a “naturalização” de uma gramática, que define as fronteiras da modernidade escolar. O modelo impõe-se como o único melhor sistema – o “The one best system” de David Tyack. Não é apenas o melhor sistema, mas sim o único possível e, mesmo, imaginável. Reside aqui a sua força e a explicação para a sua permanência no tempo.”

Bem pregara Freire, dizendo que o fracasso era do sistema! 

Nos idos de vinte, a “naturalização” do “único melhor sistema” concebido na Prússia prosseguia. Até ao momento em que já não valia a pena aplicar-lhe paliativos. Até ao momento em que uma nova construção social surgiu.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXVIII)

Morro da Urca, 5 de dezembro de 2043

Freire dixit: “O fracasso é do sistema”. Mas, não lhe deram ouvidos.

Por volta de vinte e três, enquanto o teoricismo se presumia “superior” ao mundo dos “praticantes”, se acantonava no submundo das cátedras, ou desenvolvia “Estudos Avançados” (que, de tão avançados”, se mostravam inacessíveis, inúteis), cientistas da educação subiam ao chão da escola, para apoiar projetos de melhoria da vida de crianças e das comunidades. Entre eles, aquele que sempre se mostrou mais lúcido, próximo da realidade. Andava pelas escolas, inscrevendo num bloco de notas material com que elaborava preciosos textos. 

Se nunca fui puxa-saco de quem quer que fosse, à distância de duas décadas, confesso a minha admiração por esse e outros insignes mestres, cuja produção teórica se mostrou indispensável, quando chegou o momento de substituir um “sistema de ensino” obsoleto por uma nova construção social de aprendizagem.

No fundo do baú das velharias, recuperei um dos textos do amigo António, um discurso proferido na Assembleia da República, decorria o ano de 2006, e que, nos idos de vinte e três se mantinha atual:

“Este Debate pode ser, assim o desejo, o início de um processo de reconciliação da nossa cultura com a cultura escolar. É importante que ele se construa como um debate informado (não apenas de especialistas, mas de todas as pessoas e instituições). Um debate aberto e transparente, que não se limite a ser um recetáculo de queixas e lamentações, mas que procure dar um rumo, um sentido positivo, à nossa insatisfação. Um debate que nos coloque perante um dever de coerência, designadamente no que diz respeito a uma exigência de resultados por parte da escola. Não vale a pena uma permanente indignação, caso ela não se traduza em ação decidida e constante. 

(…) em educação é impossível colher aquilo que não se semeia. Quem está disposto a bater-se pela escola? Quem acredita na importância da cultura escolar (literária, artística, científica), de uma cultura que é feita de trabalho, de persistência, de continuidade, de justiça, de diálogo? 

(…) Não me ficaria bem, iniciar um debate apresentando soluções. Tentarei, sim, avançar questões que me parecem importantes. Organizei-as em quatro pontos – as missões, os alunos, as escolas, os professores – com os seguintes títulos:

  1. À escola o que é da escola, à sociedade o que é da sociedade. 
  2. Assegurar que todos os alunos tenham verdadeiramente sucesso. 
  3. A liberdade de organizar escolas diferentes. 
  4. Reforçar a formação dos professores e a sua profissionalidade. 

O meu primeiro ponto intitula-se “À escola o que é da escola, à sociedade o que é da sociedade”. 

Ao longo do século XX, fomos atribuindo cada vez mais missões à escola e esta deixou-se inebriar por solicitações que, aparentemente, a dignificavam na sua missão. Não tenho tempo para descrever este processo a que tenho chamado o “transbordamento” da escola. Mas deixo-vos um apontamento incompleto, escrito depois de uma leitura rápida dos últimos meses do Diário das Sessões desta Assembleia. 

Aqui se referiu o papel da Escola: – na educação ambiental e, em particular, no que diz respeito às questões do mar e da proteção das florestas; – na proteção civil e na segurança, ensinando as crianças a lidarem com o risco e com situações de emergência (…).

Efetivamente, pela primeira vez na história, enfrentávamos o risco de um colapso global. Mas como conseguiria um “sistema de ensinagem”, que presumia ser a escola um prédio isolado do seu contexto social, contribuir para encontrar soluções? Ele era parte do problema. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXVII)

São Cristóvão, 3 de dezembro de 2043

Quando olhei o anfiteatro da Conane de vinte e três, cadê os RC, que criaram a CONANE de dois mil e treze? 

No ENARC de vinte e três, das dezenas de educadores participantes no primeiro Encontro Nacional dos Românticos Conspiradores restava apenas o amigo Guga.

Passáramos mais de meio século, teorizando teorizações de teorias, sofisticando o discurso, colocando mantos diáfanos de fantasia sobre contraditórias e míseras práticas. Tínhamos sido neutralizados pelo autoritarismo de burocratas, explorados por abútricas empresas, iludidos por formadores e os palestrantes dos congressos feitos de saliva e power point.

Vimos serem destruídos centenas de projetos por via da aliança entre o voluntarismo e a ingenuidade pedagógica. Lidando com a falta de sustentabilidade financeira, ingloriamente, muitos pereceram. 

Ao mesmo tempo, provisórias “alternativas” eram, indevidamente, apontadas como “inovações”. E o teoricismo reinante legitimava o apoio “científico” a teóricos paliativos, generosamente financiados pelo Estado e por “filantrópicas” empresas.

Freire dixit: “O fracasso é do sistema”. Ou talvez não tivesse fracassado o “projeto”, que Darcy denunciou…

O fracasso não era apanágio do professor, muito menos do aluno – era o sistema que fracassava. Lentamente colapsando, com ele arrastava milhões de analfabetos e discentes bonsais, que a solidão do docente em sala de aula produzia. 

Há muito tempo, tínhamos compreendido que a o exercício da profissão de professor não era um ato solitário, que deveria ser um ato solidário. Desde o início da década de setenta, abandonáramos a solidão da sala de aula e passáramos a trabalhar em equipe. 

Já nesse tempo havia propostas teóricas nesse sentido, idênticas àquela que o amigo Nóvoa disponibilizava, nos idos de vinte:

As Equipas Educativas – Uma condição sine qua non da melhoria das aprendizagens (porque gere o currículo das aprendizagens, porque personaliza, porque eleva o potencial da inteligência coletiva…)

A ideia de equipa pedagógica, tal como é formulada por Philippe Perrenoud (em 1996), aponta justamente para a necessidade de erigir sistemas de ação coletiva no seio do professorado. 

Na perspetiva deste autor, o trabalho em equipa não deve ser visto como uma conquista individual da parte dos professores, mas como uma faceta essencial de uma nova cultura profissional, uma cultura de cooperação ou colaborativa. 

É útil mencionar a importância de uma análise coletiva das práticas pedagógicas, que pode sugerir momentos de partilha e de produção colegial da profissão. 

Num certo sentido, trata-se de inscrever a dimensão coletiva no “habitus” profissional dos professores.

Sim, mas não só. O ”habitus” organizacional, o modo como se concebe o trabalho docente, o modo como se organizam os alunos, os modos como se afetam os docentes a (grandes) grupos de alunos, o horário semanal com tempos próprios para o encontro e a produção coletiva são ingredientes fundamentais. 

Em 1996, Perrenoud “recomendava” um “sistema de ação coletiva”. uma nova cultura profissional, uma cultura de cooperação ou colaborativa. Esse teórico propunha que se fizesse aquilo que, na Ponte de vinte anos antes já se fazia.

Em 2015, em sucessivas reuniões do GT da Inovação, insisti na necessidade de assegurar aos projetos reconhecidos como inovadores pelo MEC “estabilidade do trabalho em equipe”. A regulamentação instrucionista continuou a “remanejar” os professores, provocando uma mobilidade letal para os projetos. Em 2023, poucos restavam.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXVI)

Humaitá, 2 de novembro de 2043

O prometido é devido e cá estou eu a falar-vos de tabus e interditos dos idos de vinte. Felizmente, já lá vai o tempo em que o desconhecimento de realidades de chão de escola pública dava origem a equívocos, como o de um reitor que, num jornal de grande tiragem, se queixava de dificuldades de ordem financeira.

“Não sei se, amanhã, teremos sequer dinheiro para comprar papel higiénico”.

Nesse tempo, não havia computadores, pelo que lhe enviei uma carta, de que transcrevo um excerto:

“Senhor Reitor, imagino que seja bem difícil controlar o consumo do ar condicionado. Sorte nossa, que não o temos e, por isso, não temos de gerir dinheiro que não recebemos para esse efeito. Nos dias de maior calor, levamos as crianças para debaixo das árvores, como recomendava o bispo Coménius. 

Certamente, fará imensos cálculos, terá muito trabalho na gestão da verba destinada ao funcionamento do refeitório da sua universidade. A nossa escola não tem cantina, pelo que somos uns privilegiados. Quem se encarrega de matar a fome dos nossos alunos é a Divina Providência e o queijo da Cáritas.

Soubemos, há pouco, que o Estado inaugurou uma cantina na sede do município. E que a criançada escreveu redações como esta, que aqui deixo: 

“Gostei tanto de ir hoje à escola, minha mãe! A senhora professora estava muito contente, porque inaugurou uma cantina, onde os meninos pobres podem almoçar de graça. 

As mesas muito asseadas, os pratos branquinhos, jarras floridas e tudo tão alegre! 

A sopa cheirava que era um regalo. Todos estávamos satisfeitos ao ver os pobrezinhos matar a fome”. 

O ministério talvez parta do princípio de que as nossas crianças não têm estômago. Mas, mesmo sem cantina, ajudaremos o Senhor Reitor, seremos solidários com quem as tem. 

Fique tranquilo. Não precisará de se preocupar com a compra de papel higiénico. Achamos uma solução. Habituaremos as crianças a não comer. De modo que, quando chegarem ao ensino “superior”, não precisarão de defecar”.

De então par cá, cantinas foram edificadas nas escolas do ensino “inferior” e até ar condicionado foi instalado nos caixotes de betão a que chamavam escolas. Porém, no quadro de um sistema hierárquico, outras desigualdades foram “naturalizadas” e ignoradas. Por exemplo (e porque estamos a falar de porcarias), havia hierarquia até no defecar e urinar. 

Por que razão, nas escolas, se mantinha banheiros de alunos separados de banheiros de professores – nos lares, haveria banheiro de pai separado de banheiro de filho? 

Quando visitava escolas, observava que o banheiro do aluno não tinha tampa no vaso, nem papel higiénico. O do professor já tinha tampa e papel e até espelho. O banheiro da direção tinha isso tudo e até ar-condicionado.

Encontrei a foto, que junto a esta cartinha, numa escola…bilingue. Desde a década de sessenta, encontrei idênticos e apelativos dísticos, em escolas, repartições públicas, universidades e até no ministério da educação. Na “Preparação para a Cidadania”, a escola da sala de aula nem sequer ensinava a usar uma sanita. 

Um decreto de 1984 transferiu para os municípios competências em matéria de ação social escolar, nomeadamente a gestão de refeitórios. Consequência: as raras cantinas existentes foram extintas e os seus bens, legados e doações passaram a património dos municípios. Uma gestão caduca retirava às escolas até a capacidade de gerir cantinas, mais um anátema de menoridade, que as escolas acataram “a bem da nação”

Em 2043, talvez seja difícil imaginar que tais situações pudessem ter ocorrido. Mas, outros absurdos vos contarei.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXV)

Botafogo, 1 de dezembro de 2043

Queridos netos, não sei se vos contaram a estória do “Primeiro de Dezembro de 1640”, nas aulas de História. Fora esse dia o da Restauração da Independência, um golpe de estado revolucionário chefiado por quarenta conjurados. 

Dizem os tratados que se seguiu um processo histórico de assunção de autonomia, após sessenta anos de União Ibérica. E que, após 28 anos de guerra com os castelhanos (e com franceses e holandeses, no Brasil), a independência se consolidou. 

Por que evoco a efeméride? Porque aquilo que é evidente, por vezes, mente. Nesse contexto, deveremos fala de autonomia, ou de independência?  

Não que eu fosse nacionalista, ou anti-iberista, mas porque prezava em demasia a ideia de gestão autonomia, fosse em que situação (pessoal, social, institucional) em que ela se manifestasse, talvez inspirado pela comemoração, nos idos de vinte e três, deu-me para convidar companheiros de longas jornadas para um último fôlego de mudança e inovação. Também lancei um fraterno repto a amigos amantes da teorização, para acompanhar aqueles que ainda não tivessem desistido de ousar. Isto é: agir por Amor sustentado e Coragem.

Acontece que, nessa mesma semana de dezembro, li uma mensagem do meu bom amigo Isaac, na qual manifestava legítimo regozijo pela consolidação da autonomia universitária. Efetivamente, era motivo para celebrar. Mas, por vezes, o que é evidente… mente – o Nóvoa escrevera um livro sobre isso.

Tenho muitos defeitos, mas nunca fui omisso. Mesmo correndo o risco de desagradar a um amigo, pelo qual nutria profundo respeito e admiração, ousei perguntar: 

Por que razão a autonomia é apanágio apenas da Universidade? 

Por que consentimos que os diretores de escola sejam escolhidos por políticos?

Por que ainda existe “dever de obediência hierárquica”? Quando um diretor recebe uma ordem “superior, mesmo que dela discorde, terá de a cumprir e fazer cumprir aos seus professores. Cadê a autonomia?

Por que permitimos que a autonomia seja negada ao “ensino não-superior”?

Essa eufemística expressão era usada em Portugal, nos idos de oitenta e de noventa. E no léxico do sistema hierárquico português de vinte e três, mantinham-se expressões como: “Ensino secundário e pós-secundário não-superior”. 

Frequentemente, a linguagem era fonte de mal-entendidos e não era a falar que a gente se entendia. Evidente… mente, a linguagem continuava a reproduzir uma cultura feita de hierarquia, autoritarismo, em tudo contrária a uma ideia de igualdade, equidade, democraticidade, participação, autonomia.

Muitas vezes, o que é evidente… mente. Esses termos constavam em abundância de teses e outros escritos teoricistas. Foram interpelados pelos meus amigos da Pluriprosa, uma Pluriversidade criada por educadores que, amorosamente, refletiam e agiam, corajosamente, reinventando Freire e praticando Darcy. Eram educadoras e educadores humanizadores libertos de uma cegueira de que Bauman nos falava, uma cegueira moral, uma cegueira ética, a cegueira daqueles que não veem que o que evidente… mente. 

Saramago também se referia, metaforicamente, a uma cegueira social, quando apelava ao dever moral dos que enxergam. No seu “Ensaio sobre a Cegueira”, usou a expressão “cegueira branca”, não se referindo à cegueira física, mas à cegueira moral, a uma peculiar “patologia” académica, que não permitia enxergar o gozo exclusivo de privilégios e mordomias.

Amanhã, falar-vos-ei de um quiproquó dos idos de oitenta, entre o vosso avô e um Magnífico Reitor, e do belo livro “Evidentemente”, do amigo Nóvoa. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXIV)

Tijuco Preto, 30 de novembro de 2043

E deste modo o amigo Nóvoa prosseguia aa sua conferência de 2006:

“Nos últimos vinte anos, a generalização de uma educação básica de nove anos pode ser contada como uma história de sucesso, como uma “herança” de que nos podemos orgulhar. Mas, recentemente, descobrimos a reduzida percentagem de jovens que termina o 12.º ano de escolaridade. Novos indicadores estatísticos, produzidos pela OCDE e pela União Europeia, deixam-nos inquietos e preocupados. 

Quero chamar a atenção para a profunda insatisfação que se instalou na sociedade portuguesa no que se refere aos índices de insucesso e de abandono escolar, ou à saída prematura do sistema educativo sem qualquer qualificação.

Esta insatisfação “quantitativa” desdobra-se numa outra, “qualitativa”, relacionada com os fracos resultados escolares dos alunos. Tanto os indicadores quantitativos, como os qualitativos explicavam-nos, com a força dos números, que continuávamos no mesmo lugar de sempre. 

Será que não houve melhorias? Claro que houve, mas a nossa “posição relativa” não se alterou desde o final do século XIX. Peço desculpa por falar com esta frontalidade. Talvez não seja a melhor maneira de iniciar um debate sobre o futuro da Educação. Eu sei que é duro, mas precisamos de nos olhar no “espelho do passado”, de um passado ainda tão presente.”

O amigo Nóvoa não era “duro”, nem deveria “pedir desculpa”. Alertava para o “evidente”, que, evidentemente… mente. Não foi escutado. A tendência para ocultar a delicada situação do “sistema” prevalecia sobre as vozes autorizadas como as do amigo Nóvoa. 

Dez anos decorridos, após nova conferência, o ministério anunciava “as bases para três frentes de trabalho: o projeto de autonomia e flexibilidade curricular, entretanto consubstanciado como instrumento de gestão curricular, o regime de educação inclusiva e a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania” (sic).

O “projeto de autonomia e flexibilidade curricular” saldou-se por uma ridícula “inovação”: a passagem do período escolar de trimestre para semestre. O “regime de educação inclusiva” desembocou num nado morto: o decreto 54/18. E a “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania” manteve-se ancorada em um ou dois tempos letivos de “educação para a cidadania”, na ignorância de que não se prepara para a cidadania – aprende-se cidadania no exercício de cidadania plena e responsável, algo inviável em sala de aula. 

Na busca de um “currículo mínimo”, o ministério acabou por publicar um “perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória”, mais do mesmo, um amontoado de “transbordamento curricular”, que o amigo Nóvoa criticara. Mas, quais seriam as ditas “aprendizagens essenciais”?

Nóvoa se interrogava: na imensidão de “saberes” e conhecimentos, como saber o que é ESSENCIAL ensinar (e que fosse aprendido, acrescentaria eu…)? Como saber o que é essencial?

“Há um pensamento notável de Olivier Reboul. Ele diz que deve ser ensinado na escola tudo o que une e tudo o que liberta. O que une é aquilo que integra cada indivíduo num espaço de cultura, em determinada comunidade: a Língua, as Artes Plásticas, a Música, a História etc. Já o que liberta é o que promove a aquisição do conhecimento, o despertar do espírito científico, a capacidade de julgamento próprio. Estão nessa categoria a Matemática, as Ciências, a Filosofia etc. Com base nesse princípio, podemos selecionar o que é mais importante e o que é acessório na Educação das crianças.”

Conclusão: quem ouvia o amigo Nóvoa não o escutava, ou o ministério não tinha lido Reboul.

 

Por: José Pacheco

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