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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDLIII)

São Paulo, 19 de dezembro de 2043

Pois é! Melhor dizendo: melhor era! Ciclópica tarefa estava nos reservada. Para não continuar a tolerar o intolerável, como diria o dito popular, deveríamos “mudar a roda com o carro em andamento”. 

Para refundar um sedimentado e nefasto sistema, urgia mudar regras. Para que, efetiva e finalmente, acontecesse mudança, inovação, os novos rumos seriam definidos segundo uma matriz axiológica humanizadora. 

Foi isso que as ARCAs fizeram. Atualizaram uma “Carta de Princípios de Acção”, na esteira da geração dos Românticos Conspiradores da primeira década deste século. Na sua origem estava um textinho que o vosso avô publicara no jornal Folha de São Paulo, em novembro de dois mil e cinco: “As Escolas Invisíveis”. Começava assim:

“É preciso afirmar que há, no Brasil, muitos professores que dão sentido às suas vidas, dando sentido à vida das crianças e das escolas. Sinto-me um privilegiado por, após três décadas de trabalho numa escola que ousou provar que a utopia é realizável, encontrar no Brasil tanta generosidade e responsável ousadia.”

Aqui vos deixo a “resposta dos RC de 2009:

“O movimento Românticos Conspiradores constitui-se de uma rede colaborativa formada por pessoas que militam pela transformação da Educação Pública. E a educação pública é por nós entendida como aquela voltada para a população em geral e que a todos dê garantias de acesso, sucesso e realização pessoal e social, seja ela de caráter estatal ou privado.

Nossa finalidade inicial é a de promover a comunicação e o apoio mútuo entre pessoas, organizações e projetos que tenham por objetivo contribuir para a superação dos arcaicos paradigmas educacionais vigentes.

Somos pessoas conscientes de que os modelos educacionais e as práticas educativas possuem decisivas condicionantes socioculturais. Este fato exige que, para a transformação da Educação, tenhamos de ultrapassar seu âmbito restrito, englobando as dimensões sociais, políticas e culturais.

Temos a convicção de que a Educação atualmente praticada não contribui para que as gerações futuras tenham condição de superar os cruciais desafios postos para e pela humanidade. Mais do que isso, essa educação acaba por incentivar a formação de pessoas que tendem a reproduzir o modo de pensar, sentir, agir e viver que produziram tais desafios. 

Para que os atuais paradigmas educacionais possam ser superados é necessário estabelecer novas conceções que apontem formas alternativas de pensar, estruturar e praticar a Educação.

Tendo como síntese de nossa visão o trinômio autonomia-responsabilidade-solidariedade, apresentamos nossos “princípios gerais”, assim como alguns exemplos de seus desdobramentos educacionais. A finalidade é tanto orientar a ação dos membros da rede Românticos Conspiradores como esclarecer àqueles que queiram participar ou formar novos núcleos. São estes princípios que, a nosso ver, devem fundamentar a vital transformação da Educação, para que esta possa corresponder às necessidades das pessoas e das sociedades contemporâneas.”

Tinham passado catorze anos, mas era a mesma intenção. E a Carta de Princípios começava assim:

“EDUCAR PARA A INTEGRALIDADE

A educação deve contemplar a humanidade dos educadores e educandos em sua totalidade, sendo coerente com a indivisibilidade das dimensões biológica, mental e espiritual de cada pessoa.”

Na cartinha de amanhã, vos darei a ler um documento feito por muitas mãos, pelas mãos daqueles que, nos primórdios de uma “viragem educacional”, em ato, manifestavam o seu amor pela infância.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDLII)

Praia do Sossego, 18 de dezembro de 2043

Ainda Agostinho e o seu Hino à Tolerância:

“Já será grande a tua obra se tiveres conseguido levar a tolerância ao espírito dos que vivem em volta; tolerância que não seja feita de indiferença, da cinzenta igualdade que o mundo apresenta aos olhos que não vêem e às mãos que não agem; tolerância que, afirmando o que pensa, ainda nas horas mais perigosas, se coíba de eliminar o adversário e tenha sempre presente a diferença das almas e dos hábitos; dar-lhe-ão, se quiserem, o tom da ironia, para si próprios, para os outros; mas não hão-de cair no ceticismo e no cómodo sorriso superior; quando chegar o proceder, saberão o gosto da energia e das firmes atitudes. Mais a hão-de ter como vencedores do que como vencidos; a tolerância em face do que esmaga não anda longe do temor; então, antes os quero violentos que cobardes.

Mais alto te pretendo e mais humilde; à tolerância que envergonha substitui o cálido interesse pedagógico, o gosto fraternal de aprender e de guiar; não levantes barreiras, mas abate-as; se consideras pior o caminho dos outros vai junto deles, não os deixes errar só porque os dominarias; transforma em forte, viva chama o que a pouco e pouco se dirige a não ser mais que um gelado desdém.”

Nos idos de vinte, decidi já ser tempo de não tolerar o intolerável. Por exemplo: era comum escutar a expressão “educação democrática”. Mas, cadê essa tal educação democrática? Na cabecinha de teoricistas? No discurso de palestrante ocioso? Nas escolas não estva, não!

Haveria gestão democrática, quando os diretores continuavam cativos da indignidade do dever de obediência hierárquica? 

Se apenas o ensino dito ”superior” (nunca me explicaram em que seria superior) beneficiava de alguma autonomia, o “inferior” (também nunca soube o que seria) nem disso se poderia gabar, pois nesse “inferior” escalão de ensinagem vigorava o autoritarismo e a heteronimia.

Correndo risco de suscitar alguma polêmica, arriscava perguntar: 

As decisões tomadas pelo corpo de educadores de uma escola deverão ser tomadas por maioria (democrática), ou por consenso? A minoria a quem foi Imposta uma decisão democrática respeitará (aceitará) tal decisão, cumprirá aquilo que foi decidido? Dito de outro modo: as decisões deverão ser pautadas na tolerância, ou na aceitação?

Os professores brasileiros pareciam tender à tolerância. Talvez por ser mais cômodo ir ao aeroporto, xingar o time que perdeu uma partida de futebol, do que manifestar na rua, na praça, em todo o lugar, a não-aceitação do enriquecimento ilícito, da corrupção, de crimes contra o erário público. Era mais fácil do que intervir, quando um energúmeno joga uma lata vazia pela janela do carro, ou quando uma justiça obtusa permitia que o político corrupto beneficiasse de impunidade. 

O péssimo exemplo de significativa parte da classe política influenciava o caráter do povo, poluia as mentes com valores egoístas. O povo brasileiro sofria de uma bovina tolerância face aos atos imorais dos indigentes morais, que conspurcavam a nobre arte de fazer política.

Li (já não sei onde) que a ética se assemelha a uma reta: a menor distância entre os pontos A e B, onde A é o Ideal e B, a Ação. Deveríamos tolerar a incoerência entre o pensar e o fazer, aceitar a necessidade de fincar barreiras perante procedimentos moralmente contraditórios?

Não existia qualquer razão para tolerar os efeitos de um sistema educacional hierárquico, autoritário, imoral e corrupto. Por isso, a “reserva moral” do sistema resolveu suster uma nefasta inversão de valores, definindo princípios de ação. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDL)

Sobral, 16 de dezembro de 2043

Neste dia de há vinte anos, se fechou o processo de criação das ARCAs. Hei-de explicar-vos o que eram essas organizações. Agora, completarei a transcrição de parte da missiva do amigo António, um dos fundadores da ARCA portuguesa.

Era uma carta dirigida ao Ministro da Educação, em que se dizia ser preciso:

“Criar projetos educativos verdadeiros referenciais de ação das escolas, em autonomia, reforçando o seu funcionamento enquanto organizações educativas:

colocar os alunos no centro do processo de renovação do sistema educativo, da escola pública e da aprendizagem;

melhorar o funcionamento da escola pública, alterando o paradigma burocrático (ao nível organizativo) e o paradigma transmissivo e heterónomo (ao nível pedagógico) que a caraterizam;

honrar a necessidade de se olhar para a escola pública como “a escola da cidadania”; 

assumir “como prioridade a concretização de uma política educativa centrada nas pessoas, que garanta a igualdade de acesso à escola pública, promovendo o sucesso educativo e, por essa via, a igualdade de oportunidades” (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho); 

integrar, de modo adequado, toda a comunidade escolar (segurança, equilíbrio e proximidade), acolhendo e valorizando a sua megadiversidade, a nível funcional, social, cultural, neurológico e afetivo.

Considerando, finalmente, o facto de o atual governo ainda estar em funções plenas. 

Os signatários vêm, por este meio, solicitar a criação do grupo do trabalho “Educação Humanizada”, onde os mesmos tenham assento.”

E eram enunciadas as finalidades do futuro Grupo de Trabalho:

Propor programas, projetos, diretrizes específicas, orientações e legislação que contribuam para a implantação e implementação de novas construções sociais de aprendizagem;

promover a renovação da escola púbica e a criação de escolas públicas de iniciativa local e comunitária;

propor parâmetros de arquitetura e de mobiliário (interior do edifício e exterior a ele) que criem uma nova pedagogia do espaço, promotora de ambientes de aprendizagem ativos, acolhedores e seguros, onde cada educando possa valorizar-se, experimentando, refletindo e co-construindo os seus próprios processos de aprendizagem.

incentivar um desenvolvimento curricular e uma ação pedagógica centrados no respeito pelas caraterísticas, necessidades e interesses de cada educando, assumindo que o sucesso na aprendizagem é diretamente influenciado pela motivação, pelo acolhimento de diversas formas de aprender e pelo respeito por distintos ritmos de aprendizagem.

apoiar a constituição de redes de aprendizagem que promovam o desenvolvimento humano sustentável e integral, baseado na convivência, no diálogo, na solidariedade e na defesa da dignidade humana, dando a cada educando a oportunidade de ser e de aprender de forma significativa.

Coordenar e/ ou orientar e acompanhar projetos de âmbito nacional, regional e/ ou local que visem a criação de Comunidades de Aprendizagem.”

Quer o ministério aceitasse, ou não aceitasse, a criação do grupo de trabalho das novas construções sociais de aprendizagem, elas iriam cumprir-se. 

A sempre adiada Educação do Futuro se fazia presente. Bem à maneira do heterónimo Ricardo Reis: 

“Uns, com os olhos postos no passado / Vêem o que não vêem; outros, fitos / Os mesmos olhos no futuro, vêem / O que não pode ver-se / Esta é a hora / este o momento, isto / É quem somos, e é tudo.”

Se “o fracasso era o do sistema”, como dissera Freire, um olhar de apoena apontava para a refundação do “sistema”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLIX)

Juazeiro do Norte, 15 de dezembro de 2043

Do outro lado do oceano, chegava o relato de um breve busquejo de significados. Tínhamos debatido conceitos – como o de “educação integral” – e fazia sentido que o revíssemos a partir do chão de escola, dado que era habitual a sua abordagem por teoricistas. 

O amigo António, companheiro de muitos anos de projetos, assim dizia:

”Bom dia, Carísim@s

Pois é, aqui estou eu de novo. Como vos disse, não estava totalmente convencido com a parte final da minha última proposta. Já encontrei o motivo e explicarei o meu processo de reflexão. Fui pesquisar, mais aprofundadamente, o conceito de Educação Humanizada e o de Educação Integral. Descobri que está muito em voga no Brasil, com muita mistura de aceções, algumas delas impregnadas de “cobertura” cremosa do paradigma da instrução, como se esse “chantilly” de sobrevivência salvasse a face de um sistema que tenta de tudo para se manter;

incorpora vários contributos estrangeiros, nomeadamente das concessões de humanized Learning e da Maker Culture;

tem na sua base, sem o explicitar (na esmagadora maioria dos casos) importantes teóricos da Educação (apesar deles já não o poderem saber), como sejam Dewey, Kilpatrick, Piaget, Vygotsky, Paulo Freire, Anísio Teixeira, Lauro de Oliveira Lima (entre outros, claro);

no meio dos “entre outros”, há dois senhores que ainda estão vivos: Barry Zimmerman e um tal de José Pacheco…;

a parte final do nosso documento quase não explicitava em que consiste a dita Educação Humanizada e esses princípios deveriam, por isso, ser realçados.

Honrando os princípios de autorregulação da aprendizagem do primeiro dos “outros” (Zimmerman), mobilizo um breve texto do segundo (Pacheco), incluído na apresentação de conferência que ele dinamizou, recentemente, em Lisboa, no Instituto de Educação, com o tema “Novas construções sociais de aprendizagem”:

“Urge humanizar a educação, conceber novas construções socais de aprendizagem, nas quais, efetivamente, se concretize uma educação integral. Urge constituir redes de aprendizagem, que promovam desenvolvimento humano sustentável. A educação acontece na convivência, de maneira recíproca entre os que convivem.

Se a modernidade tende a remeter-nos para uma ética individualista, nunca será demais falar de convivência e diálogo, enquanto condições de aprendizagem. Será oportuno falar de novas construções sociais de aprendizagem.”

Embora essa apresentação não fale disso, conheço muito bem (in loco, na Escola da Ponte do início dos anos 2000) as conceções de prática pedagógica dessa escola e desse tal Pacheco (“velho insuportável”, segundo as suas palavras, numa estratégia de sedução que tem dado os seus frutos, ao longo de vários anos) e revejo-me, totalmente, nessa prática.

A partir daí, se revelava a proatividade do amigo António e da ARCA portuguesa, quando dirigiam ao Ministro da Educação uma mensagem, que ficou célebre. Começava assim:

“Considerando o desafio lançado publicamente pelo Sr. Secretário de Estado da Educação, António Leite, no encontro de Educação “O Futuro é Hoje: Comunidades de Aprendizagem”, realizado nas Caldas da Rainha (27 de setembro de 2023), para desafiarmos o Ministério da Educação com a apresentação de um projeto.

Considerando também a necessidade de promover a autonomia (organizativa, curricular, pedagógica e financeira) das escolas públicas e o desenvolvimento de práticas pedagógicas inovadoras (…)”

A proativa missiva enviada pela Coordenação da ARCA portuguesa merece que vo-la dê a ler, na integra… amanhã.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLVIII)

Cariri, 14 de dezembro de 2043

Nas vésperas da criação das ARCAs (creio já vos ter falado dessa fraterna organização), eram intensas as trocas epistolares. Transcrevo uma mensagem, relato de auspicioso futuro. Amanhã, vos trarei uma carta reivindicativa.

“Prezado Professor José Pacheco,

Ao longo dos últimos quatro anos, o grupo escola esteve num denso e intenso processo de transformação da escola. Indagamo-nos o motivo pelo qual não estávamos conseguindo concretizar o nosso compromisso: proporcionar aprendizagem com sentido e significado às crianças.

A identificação dos problemas e a construção das alternativas que construímos não foram suficientes para explicar e superar as enormes dificuldades de aprendizagem. Prosseguimos com a indagação.

Afinal, quais os motivos pelos quais profissionais, em sua grande maioria, comprometidos com a educação e com as crianças matriculadas nesta escola e com competência pedagógica, não alcançam melhores resultados?

Foi um esforço enorme do grupo, reflexões, mudanças, com muita disposição e disponibilidade. Identificamos avanços nos processos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, principalmente naqueles referentes ao protagonismo e participação na vida escolar. Não obstante, tais avanços (de absoluta importância, diga-se), e considerando-se o empenho frente a empreitada de tal monta, o grupo não estava satisfeito plenamente com os resultados,

Convidamos educadores, diretores de escola, supervisores, para que respondessem às nossas indagações. O corolário desse processo foi a sua presença em nossa escola, num dos momentos de maior boniteza que vivemos, ao longo dos nove anos de projeto. Foi um imenso impacto em nossa comunidade escolar. 

Fazendo convergir nossas indagações com o diálogo que mantivemos, construímos orientações. Definimos nossa proposta, qual seja: para melhorar é preciso transformar. Mas qual modelo seguir? Nossa resposta: nenhuma. Inspiração e exemplo foi o que buscamos, para construir uma escola da qual todos se orgulhem de fazer parte. 

Buscamos conhecer escolas com práticas transformadoras, na nossa rede municipal e em outras redes, tais como o Projeto Âncora, a Campos Salles, al Amorim Lima etc. Amiúde trazem em seu bojo a proposta de transformação da organização escolar. 

A partir destes exemplos, destas inspirações, e com base no princípio de não seguir modelos, no nosso horizonte foi se desenhando o ideal de uma escola na qual professores são sinonimizem a prática docente com dar aulas e alunos, a provas, crianças divididas por faixa etária; trabalhos isolados em salas de aula, regras e normas apenas impostas e cobradas. 

Na avaliação do grupo escola, escolhemos aspectos que pudessem se constituir como ponte entre a escola que temos e a que queremos construir. Os professores não mais prepararam aulas, mas construíram roteiros de aprendizagem. Passamos a contar com espaços de aprendizagem para além da sala de aula; elaboramos os valores que devem fundar todas as ações, projetos e planejamentos da escola, a partir de seminários, cujo escopo foi o de refletir a a partir do seu  Dicionário de Valores – Respondemos a pergunta: Por qual desses valores eu iria até o fim do mundo para defender? Escolhemos Responsabilidade, Respeito e Autonomia.

Fizemos a opção ética, profissional e político-pedagógica de que, como diria Paulo Freire, “O mundo não é, o mundo está sendo”, e com passos curtos, mas firmes, construímos veredas rumo ao processo de transformação da escola, demonstrando que “outro mundo é possível”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLVII)

São Cristóvão, 13 de dezembro de 2043

Netos muito queridos, certamente, estareis recordados de vos ter contado uma estória passada numa instituição universitária, cujos protagonistas foram alunos do último semestre do curso de formação inicial de professores, jovens que tinham sido preparados para a docência.

Dizia-nos o dicionário que docente era quem ensinava; quem “ministrava aulas”. E muitos dos “ministradores” nunca chegaram a ser professores. Aqueles que iriam dar aulas de química tudo sabiam de química. Os de história conheciam bem os conteúdos da sua disciplina. O mesmo acontecia com os futuros docentes de língua portuguesa, matemática, física, música, filosofia… Eram exímios no domínio da “matéria” da área em que se tinham especializado. O drama consistia em que, ao pretender ensinar alunos, não faziam a mínima ideia de como os alunos aprendiam. Um conhecido palestrante dissera que os dadores de aula pensavam que ensinavam, enquanto os seus alunos fingiam que aprendiam.

Nessa instituição, como na maioria das escolas de formação, não eram criados os “viveiros do futuro”, que o Mestre Morin havia imaginado. Quando pedi aos meus alunos “evidências de aprendizagem”, para que constassem dos seus portfólios, entregaram-me “trabalhos de conclusão de curso” enfeitados com citações do tipo: segundo Piaget, Vygotsky disse… Eu devolvia-lhes os textos, dizendo-lhes que aqueles “trabalhos acadêmicos” não eram fruto de pesquisa – eram cópias. 

Disse-lhes que não me aparecessem com trabalhos semelhantes a teses engordadas com a costumeira lengalenga do “fulano disse”, do “beltrano disse”, porque eu não era “pedagogo fofoqueiro”, não me interessava saber aquilo que alguém disse, mas verificar a aquisição de saberes, a produção de conhecimento. Se eu quisesse saber o que algum pedagogo escrevera, iria ler as suas obras.

Desde o final da década de setenta, nada de novo havia surgido no domínio da produção de conhecimento, no campo das ciências da educação. Nesse tempo, essa delicada área das “ciências humanas” em que todo o mundo se sentia no direito de dar opinião fora invadida pela praga do teoricismo. 

Peagadeuses e quejandos fabricavam e vendiam palestras de power point, publicavam “papers” (o anglicanismo parecia conferir maior credibilidade à “fofoca teoricista”), que não passavam de citações de outras citações (obra, autor, número de página), como se esse “rigor” conferisse à produção teórica – melhor dizendo, reprodução – caráter científico.

Estávamos nos anos noventa, tempo do aparecimento do copy past da Internet. Cortei o mal pela raiz. Ajudei os meus jovens alunos. Ensinei-lhes aquilo que, nos quatro anos de formação, lhes deveriam ter ensinado. 

Para que soubessem pesquisar, ensinei-os a elaborar roteiros de pesquisa, a selecionar informação pertinente, a avaliar e a comparar diferentes informações (como já havia uma precária Internet, desenvolveram senso crítico suficiente para identificar “fake news”). Ensinei-os a comunicar, a produzir currículo, a sintetizar conhecimento, a partilhar “evidências de aprendizagem”, a transformar conhecimento em ação, desenvolvendo “competências”.

Encontrei-os, trinta anos depois, cinquentões, dirigindo agrupamentos de escolas, ou vereadores da educação em autarquias. Os professores eram maioria. Uma minoria tinha fugido das agruras do chão da escola, fora dar aula na universidade. 

A prática de sala de aula, com maior ou menor tratamento paliativo ou com a introdução de modismos readaptados, seguia igual à dos ancestrais.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLVI)

Ilha Bela, 12 de dezembro de 2043

Foi por volta dos idos de vinte que as redes de comunidades de aprendizagem foram surgindo. Eram ensaios de novas construções sociais, caraterizados pela prática de uma efetiva educação integral. Eram projetos de humanização, que a todos garantiriam o direito à educação.

Talvez fossem a Escola Pública sonhada por Anísio, o espírito e a letra de Lauro e de outros insignes educadores:

“Quando a comunidade se constitui como parte atuante da escola, com voz e participação na construção coletiva do projeto político-pedagógico, surge o sentido de pertencimento. Isto é: a escola passa a pertencer à comunidade, que, por sua vez, passa a zelar com mais cuidado por seu patrimônio.”

Sentindo-se como um nodo de uma comunidade, a escola cria, planeja e respira projetos de interesse da sua gente, da sua realidade. Em comunidade, cumpriria preceitos da Constituição, da Declaração Universal dos Direitos da Criança e do Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Naquele tempo, eram criados “grupos de trabalho”. O primeiro fora criado pela Portaria Nº 276, de 16 de agosto de 2019, da Secretaria Estadual de Educação do Distrito Federal. A esse “GT” era outorgada a missão de propor “Diretrizes de Política Pública para a Implantação e implementação de Comunidades de Aprendizagem na Rede Pública de Ensino” (sic).

Quase três anos decorridos, O “Termo de Referência” de 20 de maio de 2022, da Secretaria Municipal de Educação de Maricá antecedeu a publicação da Resolução PMM/SE Nº 16/ 2022, de 19 de dezembro de 2022, anunciadora do GT das comunidades de Maricá. 

No ano seguinte, em Portugal, uma Assembleia de Redes de Comunidades de Aprendizagem” punha em prática promessas deixadas pelo decreto-lei 55 de 2018 e propunha a criação de “grupo de trabalho ministerial”, visando conceber e desenvolver novas construções sociais de aprendizagem.

Entretanto, já havia outros grupos de trabalho em funcionamento, em Mogi das Cruzes e em outros municípios brasileiros. 

Projetos educativos e projetos político-pedagógicos das escolas puderam (enfim!) ser concretizados, efetivando objetivos constantes das leis de bases do Brasil e de Portugal. Visava-se: promover o crescimento do educando em todos os aspectos: físico, mental, intelectual, emocional, afetivo, psíquico, para que ele possa interferir, atuar e transformar o seu meio, de forma ética, na perspectiva do desenvolvimento sustentável do ser humano e da comunidade em que se integra; reconfigurar práticas educativas; produzir práticas integradas (na confluência dos paradigmas da instrução, da aprendizagem e da comunicação), religando instituições (Família, Sociedade e Escola), unindo Cultura, Saúde e Ambiente, em projetos de educação integral.

Netos queridos, poderá ser para vós fastidiosa esta descrição de fatos. Mas, em 2043, importa fazer história e refazer a história oficial, porque a memória dos homens costuma ser curta e deturpada.

Há vinte anso, acontecia a primeira co-criação de protótipos de comunidade de aprendizagem, a partir de “turmas-piloto” e de “círculos de aprendizagem”. Escolas e universidades se transformavam em “lócus de referência”. Acolhiam visitantes, facultavam “residência pedagógica” a quem desejasse conviver, por alguns dias, com crianças, professores e comunidade.

Projetos com potencial inovador já não eram fragilizados ou destruídos, pois assumiam a dignidade da autonomia. Práticas democráticas e de trabalho em equipe eram incrementadas.

O sonho de Darcy virava (ou, “era tornado”) realidade.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLV)

Mogi das Cruzes, 11 de dezembro de 2043

Philippe Meirieu foi comentador atento do drama educacional. No texto “Entre dizer e fazer”, falou-nos de onze tensões, que atravessam a profissão de professor:

“Entre educação e liberdade, entre o todo poder do adulto e a impotência do mestre…

Entre transferência de conhecimento fixo e descoberta livre do próprio conhecimento, entre obrigação de aprender e respeitar o interesse do aluno…

Entre formalização enciclopédica e submissão ao desejo de aprender, entre a primazia do programa e a primazia do projeto…

Entre confiar no que o aluno sabe fazer e romper com os dados, entre usar o “já” e descobrir outros universos…

Entre a obediência a um mundo fixo e prático de democracia na Escola, entre o respeito escrupuloso pela ordem escolar e a autogestão pedagógica…

Entre enquadramento imposto e liberdade de iniciativa, entre acompanhamento rigoroso e emancipação necessária…

Entre a tomada de riscos necessária e a suspensão crítica necessária, entre a inibição e a passagem para agir…

Entre grupos homogéneos e heterogéneos, entre adaptação às necessidades individuais e enriquecimento pelas diferenças…

Entre planejamento necessário e decisão improvisada…

Entre obrigação de resultados e obrigação de meios…

Ensinando especialista em conhecimento e especialista em pedagogia.”

Esse escrito foi publicado em 2004. Citava “tensões”, que eram as mesmas sentidas em 94, em 84, em 74… E assim permaneceram, ao longo das primeiras décadas deste século. Havia quem se atirasse a este tipo de escritos como gato a bofe. E os saboreasse, “entre o dizer e o fazer”.

O amigo Matias bem dizia ser preciso parar de “jogar às escolas”. O cansaço se apoderava do corpo e do espírito de um avô, que reunia as parcas energias que ainda restavam, para tentar criar uma A.R.C.A., que organizasse a dispersão de projetos, retomasse projetos suspensos, acolhesse novas tentativas de ultrapassar as “onze tensões” e mais algumas.

Nos idos de vinte e três, o marketing agressivo de “colégios de elite” iludia uma opinião pública acrítica. Cinicamente, teoricistas caducos diziam serem as iniciativas de mudança “mero romantismo”. Instituições intelectual e moralmente corruptas, alegavam que as mudanças propostas “não eram oportunas”. Quando apresentávamos propostas efetivamente inovadoras, professáurios afirmavam “já ter feito isso”. 

Valia-nos o desfazer de “tensões” por quem não hesitava entre “o dizer e o fazer”.

No Sul, o Bruno conseguia que a Escola da Floresta assegurasse sustentabilidade financeira, enquanto a Comunidade da Lagoa das Amendoeiras buscava proventos que matassem a fome das suas crianças. No Mato Grosso, a Zizi envolvia comunidades em projetos de educação ambiental (e não só…), enquanto, em Mogi das Cruzes, a Tina participava no projeto “Agrofloresta na Escola”, no Centro Educacional Jabuti.

Esses projetos não eram notícia. Esses educadores dissolviam as “onze tensões” do Meirieu num quotidiano feito de perseverança. Não se quedavam entre o “dizer e o fazer”. Faziam!

As “tensões” jamais ultrapassadas redundavam em dramas que a escola da sala de aula, competitiva e estacionada no “dizer”, provocava.

Em Portugal, os professores adoeciam. No Brasil, eram assassinados por ex-alunos. No Japão, só entre 1972 a 2013, mais de cem alunos se suicidavam no dia do regresso às aulas. Na Índia, jovens alunas se suicidavam, por não terem conseguido “entrar na universidade”. “Entre o dizer e o fazer” teoricista, sucessivas gerações de seres humanos não se humanizaram.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLIV)

Recreio dos Bandeirantes, 10 de dezembro de 2043

Nos idos de vinte e três, não passava um dia sem que eu lesse o que a minha amiga Tina publicava. Religiosamente, guardei seus escritos no baú, junto de objetos remotos, mas de indispensável e atual releitura. 

Por isso, lhes retiro a poeira e vo-los dou a ler:

“Uma parede está sendo construída no lugar errado. Há uma comissão, composta por engenheiros e especialistas em construção de paredes, que se une em uma força tarefa para estudar como podem fazer a obra dar certo. Depois de muito estudo, a comissão decide mudar o tipo de material que vem sendo usado para subir a parede. Agora, com o novo material, mais tecnológico, a parede fica bonitona. Ao término da obra, ninguém entende porque, apesar de bonita, a parede deu errado.

Ai daquele que se atreve a dizer que, com base na lei e nos teóricos, ali deveria ter uma ponte.

Até quando a educação vai receber maquiagem nova no que está dando errado?”

E a Tina listava aquilo “que estava dando errado”, para que ninguém tivesse dúvidas: Conteudismo, Instrucionismo, Padronização (geradora da exclusão e evasão), Foco na ensinagem, Fragmentação dos saberes em disciplinas, Professor detentor do saber, controlador, Sala de aula, Carteiras enfileiradas, Nota, Prova, Uso sequencial de material didático, Separação de estudantes por idade ou nível de conhecimento, Competição (geradora do bullying e evasão), Olhar repressor e desaprovador, Ranqueamento, Punição ao erro, Desprezo à curiosidade… E acrescentava que naquela lista, o que não era ilegal, era imoral.

A Tina era um daqueles seres humanos a quem fora concedido o dom de uma amorosa indignação, e deu significativo contributo para a humanização do ato de aprender e ensinar. Confirmava aquilo que Brecht dissera, há um século:

“Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.”

Naquele sábado de novembro, a Tina andava pelas escolas de Mogi, participando do plantio de quarenta árvores, comemorando a chegada de uma primavera, que traria com ela o princípio do fim de uma Educação e de uma Humanidade desumanizadas.

E em que consistia “reumanizar” a Educação? 

Não seria, certamente, em teorizar o amor, mas de Amor em ato. De concretizar velhas promessas e propostas de mudança. De efetivar um Educação capaz de reumanizar a comunidade mundial, a partir das comunidades locais. Seria preciso escutá-las, para resgatar a esperança num futuro, que se construiria num novo saber cuidar.

Os exemplos de Vida da minha amiga Tina me davam alento para não desistir. Inspirado na sua Vida e na sua obra, isto escrevi num livrinho:

“Compreendi por que razão certos professáurios recorriam a uma abundante adjetivação – “líricos”, “lunáticos”, “utópicos” e outros epítetos bem menos lisonjeiros – quando se referiam a professores como a minha amiga. 

Alguns faleceram, outros estão à espera de alguém que os descubra. Insisto numa busca que não cessa, por ter sido nessa busca que me encontrei e encontrei razões para me manter professor. A esses “utópicos” devo quase tudo o que de bom possa ter e ser.” 

Porque se aproximava o Natal, à semelhança dos magos que se deixaram guiar por uma estrela, até uma claridade que rompia as trevas de um casebre, eu mantinha a crença de encontrar mais um marco de referência de uma Escola que irradiasse uma luz dissipadora de desumanas trevas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLIII)

Caraíva, 9 de dezembro de 2043

Na mesma semana da visita ao Campo de São Bento, a Bruna sofria com o drama de uma infância desvalida, a Fernanda organizava um evento, que marcaria a criação da A.R.C.A. do Sul da Bahia. Eu pedia às minhas amigas Caina e Ilana que participassem, colaborassem, pois conhecia a generosidade que as caraterizava e a força de vontade da Fernanda. 

Dizia-se que eu era “casamenteiro”, que juntava pessoas, que unia os desunidos. Talvez! Mas, nos idos de vinte, já era raro encontrar energia, ânimo, para enfrentar adversidades. 

Os inovadores eram uma espécie em vias de extinção e não habitavam escolas às quais uma qualquer organização, atrevidamente e lamentavelmente, tinha posto o rótulo de “inovação”. Até havia organizações, que se reclamavam de “educação transformadora”, especializadas em elaborar mapas de “escolas inovadoras”, mas que não passavam de caricaturas de mudança.

Dadores de aula hesitantes diziam que “talvez não fosse o momento adequado”. Tal como numa canção da Deolinda: 

“Agora não, que eu acho que não posso / Agora não, que falta um impresso”.

Nos períodos de recesso, como nas interrupções de atividade letiva, diretores de escola lamentavam “não ter tempo para tratar dessas coisas”, porque:

“Sabes como é Zé, no final do período e no final do ano letivo, temos muita papelada para preencher. E temos as avaliações”.

“Avaliações ou classificações? E porquê no final de um período, se a lei diz que a avaliação deve ser contínua? 

Se lhes dirigia essas e outras perguntas desconstrutoras, manifestavam incómodo:

“Lá vens tu com essas teorias!”

Não eram “teorias”, eram práticas fundamentadas numa teoria prudente.

No dealbar deste século, num livrinho com o título “Para os Filhos dos Filhos dos Nossos Filhos”, de que a Janaína partiu para montar uma bela peça de teatro, tentei contar ao Marcos que era costume os professores juntarem alunos em grupos a que davam a designação de “turma”. 

Tive de explicar ao meu neto o que era uma “turma”. A cada olhar de estupefação do Marcos, a narração foi sendo entrecortada pela definição de conceitos, sob risco de o Marcos perder o fio à meada. 

Passei pela provação de tentar explicar o inexplicável. Amiúde, o semblante incrédulo do meu neto derrotava a minha argumentação, pelo que lhe dava a entender que os factos narrados já não sucederiam nos dias de hoje. 

Sem correr o risco de ofender a inteligência de uma criança, como é possível explicar-lhe que professores dessem “aulas” a “turmas”, ensinando a todos como se o todo fosse um só? 

Como explicar que não se apercebessem de diferentes ritmos de aprendizagem? Como explicar que os professores não reconhecessem em cada criança um ser único e irrepetível? Como explicar que juntassem todos os alunos, num mesmo tempo, num mesmo espaço, nas mesmas condições de pressão e temperatura, e a todos aplicassem testes iguais para todos, fazendo perder um tempo precioso aos que sabiam a matéria e impondo chancelas de ignorantes aos que a não sabiam?

Fiz uma pausa na minha narrativa, para dar tempo ao meu neto de respirar fundo e recuperar da perplexidade. Li-lhe uma frase do Rosseau: 

“Tudo é perfeito quando sai das mãos de Deus, mas tudo se corrompe nas mãos do Homem”. 

Depois, para o sossegar, disse-lhe que seria possível reinventar a Escola. 

Para sublimar a impaciência que conduz ao desespero, sempre que pressentia a virginal perturbação do meu neto, me socorria de uma mentirinha piedosa: 

“Isso era antigamente.”

Num nove de dezembro de há vinte anos, tal qual fénix renascida, educadores resilientes geraram os alicerces das ARCAs.

 

Por: José Pacheco

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