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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXIII

Maricá, 28 de fevereiro de 2044

Netos queridos, espero não ser maçador, voltando a conversar sobre a praga do teoricismo. No tempo em que não havíeis nascido, o Gagné (de quem já vos falei) afirmava que a questão mais importante no processo de ensinagem era a extensão do que poderia ser previamente determinado para o indivíduo que aprendia. Estava seguro de que não se poderia esperar que a pessoa que aprendesse, enquanto estava voltada para o próprio processo de aprendizagem, fosse capaz de julgar a eficácia das diretrizes de ensino traçadas pelo professor. Enfim! Não conseguindo sair dos limites epistemológicos do paradigma da instrução, Gagné afirmava duvidar de que uma sala de aula fosse o lugar em que se pudesse realizar a tarefa de determinar condições de aprendizagem para cada estudante em particular. Dizia ser “impossível”… em “sala de aula.

À revelia de Gagné, a Ponte centrava o processo de aprendizagem o aluno, libertava o professor para exercer um controlo individual e permanente, o que seria inviável em ensino diretivo, no qual o professor interagia com todos os alunos, a todo o instante. 

Essa posição de livre observador era “perversa”. Conferia ao professor o privilégio de uma intervenção permanente e imediata, enquanto gerava no aluno uma autonomia censurada. A autonomia em pedagogia negativa poderia ser uma perversão da autonomia. 

Quando procedia à crítica de Rosseau, Schérer referia que o fulcro do processo continuava a ser, mais do que nunca, o educador, seguro de si, tanto mais omnipresente quanto não poderia colocar-se à margem, estendendo a todos os atos da vida do seu aluno o seu direito de controlo e de olhar. 

Ao nível das regras, a intervenção do educador era permanente. Em nome da sua própria proteção, a criança via-se submetida a um controlo generalizado. Porém, como também dizia Schérer, na infância, não era só o outro, mas o próprio, quem está implicado. E o olhar inquisidor lançado sobre a criança era também, e em primeiro lugar, o impossível olhar lançado sobre si. 

O professor, ainda que se reclamasse de uma posição demissionária, estava sempre presente, a administrar o poder e a regular os afetos. O adulto não queria a “criança outra”, procurava-se nela; não queria tê-la como interlocutora, julgava-a apenas moldável; esperava dela, sobretudo, a sua autoafirmação. 

Se fosse caso de se fazer, de novo, ele recomeçar-se-ia, certamente, na infância. Mas, não sendo possível, escolhia perpetuar-se nela. Ocorria um “desvio da infância” que forçava o desejo infantil a dirigir-se para simulacros que lhe eram propostos. 

A teoria psicanalítica aplicada ao campo educativo não poderia ser criadora de um novo saber. Ela era alterada pela prática, enquanto alterava a própria prática, pois suscitava o aparecimento de questões inéditas, propiciava um verdadeiro poder de interpretação. 

Numa busca de interpretações (ou reinterpretações), Mendel considerava a escola como uma “função paternal especializada” e exprimia o desejo de ver realizados consensos que questionassem a desigualdade de estatutos responsável pela manutenção do fenómeno autoridade. Para Mendel, essa autoridade revelava-se perniciosa, porque escapava, em grande parte, à consciência crítica. 

A coação institucional nunca surgia tão poderosa como num êxito quase perfeito, que consistia em fazer aparecer como legítimo o uso da força sobre a criança, que conseguisse transformar essa violência em legitimidade. 

A autoridade não seria, então, mais do que o resultado dessa transformação, tornado conceito abstrato.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXII

Rio Bonito, 27 de fevereiro de 2044

O discurso da política educacional dos idos de vinte estava eivado de valores da modernidade, dos valores dominantes dos três períodos da trajetória da modernidade: a liberdade, a igualdade e a autonomia. Mas, tal como transparecia no discurso, o conceito de modernidade sacralizava valores e direitos, mas era inviabilizado a sua operacionalização – na prática.

A essência do homem é, essencialmente, o conjunto de relações sociais. A opção pela reelaboração pessoal e profissional assumida pela equipa do projeto Fazer a Ponte constituiu-se em instância de mediação entre singulares. O professor que participava do contacto direto e permanente com outros ficava outro e, transformando-se, disso adquiria consciência. 

O requisito de respeito pela autonomia do formando e pela autonomia do círculo de estudos estava intimamente ligado ao princípio da responsabilização a que essa modalidade de formação apelava. Dada a sua organização, o círculo foi sempre um verdadeiro núcleo de democracia participativa, onde a responsabilidade era responsabilidade de todos. 

Três valores fundamentais norteavam a reelaboração cultural nos círculos: o mutualismo (cooperação, solidariedade e interajuda, obstáculos à autonomia isolacionista e competitiva), autonomia crítica e transformadora (criatividade, senso crítico e responsabilidade, que conferiam ao indivíduo a possibilidade de existir com os outros como pessoa livre e consciente) e democraticidade (pluralismo, participação social e assunção de cidadania, que definiam o homem como interveniente e confirmavam a transformação da substância e das estruturas da comunicação).

O projeto-círculo implicava autoria de um grupo, que, desde o início, detinha a pilotagem das informações, das regras de funcionamento, do domínio de situações particulares com que se pudesse deparar. A procura de sentido pela ação tornava pertinente o esforço desenvolvido em comum. E a procura de sentido para a ação outorgava ao projeto uma autonomia de novo tipo.

Escolas são pessoas e as pessoas são os seus valores. Ganharia sentido, pois, considerar as escolas como espaços coletivos de criação de novas identidades, a existência de sujeitos coletivos capazes de aprofundar propostas democratizantes. Boaventura dizia não fazer sentido continuar à espera de que o projeto de modernidade se cumprisse naquilo que, até ao final de século, não se cumprira. A emergência de grupos informais confirmava uma situação cultural de “celebração afirmativa” característica da pós-modernidade. 

A questão que se colocava, tal como a equacionou Boaventura, era a de saber “se [em Educação] poderíamos pensar o pós-modernismo numa sociedade semiperiférica [referindo-se a Portugal]. Mas, sobretudo, se poderíamos pensar e agir pós-modernamente. Os constrangimentos eram inúmeros, a começar dentro de nós (as pessoas) e a acabar nas contradições do sistema. 

Talvez  fizesse sentido reorganizar grupos de professores, que questionassem a primazia do autoritarismo do Estado, que tendiam a legitimá-lo como agente de modernização. Essa crença assentava no facto de que, nos espaços intersticiais das reformas educacionais, serem detetadas fragilidades na prática legislativa e nas práticas sociais, onde o Estado não ultrapassava o domínio da intencionalidade. 

A sociedade portuguesa teria de cumprir algumas promessas da modernidade, mas à revelia da teoria da modernização. Na Ponte, com intuição e amorosidade, ajudamos a cumprir essas e outras promessas. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXI

Armação de Búzios 26 de fevereiro de 2044

Volto a Biasutti, um autor da minha predileção dos idos de setenta. Ele afirmava que o processo de aprendizagem se desenvolvia numa atmosfera que exasperava as dinâmicas emotivo-afetivas e fomentava um conformismo de superfície, mascarando o mais aceso individualismo. Seria necessário repará-la, a tempo, para a futura inserção disciplinada do indivíduo no trabalho e na sociedade. 

A espontaneidade cedia aos raciocínios abstratos. A imaginação e a fantasia apagavam-se sob o peso de exercícios impostos. Quando o professor receava perda de controlo, criava desconfiança relativamente a comportamentos infantis, que, no seu critério, não seriam aceites socialmente. 

A realidade da criança era substituída pela realidade do adulto, que nela se projetava. Até mesmo quando a escola se reivindicava de uma organização de trabalho centrada no aluno, essa situação se verificava, ou mesmo se agravava. Mas, outras correntes eram desenvolvidas, paralelamente às divagações teoricistas. 

A presunção da interferência do educador era aquilo que distinguia Neill das experiências libertárias de Hamburgo. Essa interferência apoiava-se na compreensão analítica da existência de recalcamentos e de culpabilizações na criança. O educador-analista interferia com a sua própria personalidade numa funçäo “paternante”. 

No pressuposto de que haveria aquisiçäo de saber sem medo, a “Liberdade sem Medo” já näo era a liberdade ingénua da Educaçäo Nova. O desejo da criança era resultante de múltiplas influências e Neill procurava desmitificá-las, numa fase embrionária da introduçäo da psicanálise na educaçäo.

A partir das propostas de Rogers, Pagès, Peretti e Hameline (a obra deste autor que mais me marcou era de 1971), ensaiei a passagem da näo-directividade à autogestäo pedagógica, outorgando-me um papel de facilitador da elucidaçäo de motivos e de decisöes conducentes a uma efetiva aprendizagem.

Também Vasquez e Oury estavam conscientes dos perigos de uma psicanálise mal compreendida. Recusavam a análise dos atores educativos, uma formaçäo terapêutica dos professores, e a psicanálise da própria escola. Utilizavam noçöes psicanalíticas, para procurar esclarecer e explicar o que se passava nos grupos. A psicoterapia institucional punha em evidência as “trocas” entre crianças e adultos, que facilitavam a compreensäo e a modificaçäo dos comportamentos. 

Hameline e, mais tarde, Snyders denunciaram armadilhas da näo-directividade e lhe  acrescentaram uma crítica do papel do professor, numa perspectiva psicanalítica. Quarenta anos mais tarde, o Rui voltaria ao assunto, para nada dizer. Como era apanágio do teoricismo nada acrescentar de conhecimento ao conhecimento existente, seria provável que, na década de trinta (após mais quarenta anos) outro teoricista voltasse ao assunto. E se confirmou a previsão. Enfim!

O teoricismo se apropriara do debate sobre Educação. Sazonalmente, o teoricismo reciclava velhos conceitos. Há cerca de vinte anos, comecei a escutar a palavra “aprendizado”, um termo usado para designar a aprendizagem de conteúdos supostamente aprendidos a partir da palração de uma dador de aula, algo que somente existia na cabecinha de teoricistas palestrantes. 

A indústria dos congressos prosperava. A mercantilização da escola pública, alastrava, exponencialmente. O teoricismo e a mercantilização se associaram, inventando novos termos para práticas fósseis. 

Era tal a dimensão da pouca vergonha, que eu cheguei a ter vergonha de ser professor. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXX

Cabo Frio, 25 de fevereiro de 2044

Quando um mandante do ministério ordenou que eu retirasse das paredes dispositivos de relação, perguntei por que deveria obedecer à sua ordem. Respondeu que aquilo era “tudo uma palhaçada”, que “voltasse para a sala de aula” e que eu deveria obedecer às ordens de um “superior hierárquico”, a velha e já conhecida cantilena autoritária.

Com todo o respeito, lhe disse que o faria, se ele me dissesse porquê.

Repetiu a cantilena autoritária.

Com todo o respeito pela hierarquia, pedi-lhe que fundamentasse a sua ordem.

“Fundamentar?” – replicou, incrédulo com o atrevimento de um “inferior hierárquico”.

“Sim, senhor inspetor. Diga-me em que modelo pedagógico se filia, qual a proposta teórica, quais os autores dessa proposta, quais os pedagogos que recomendam não utilizar os dispositivos que nós usamos”.

Devo lembrar que, nesse tempo (estávamos em 1976), eu já tinha quatro pais, companheiros da primeira equipe de projeto, e que acabara com salas de aula. 

O inspetor tentou “dar a volta” à discussão. Amainou o tom de voz e perguntou quais eram “as minhas teorias”.

Disse~-lhe que não eram minhas. Eram de Mosconi, Biasutti, Freud e outros. Evoquei contribuições de âmbito psicanalítico.

“Freud? Já ouvi falar!… mas o que dizem os outros?”

“Com todo o respeito, recomendo ao senhor inspetor que os vá ler”.

Furibundo e com a ameaça de me instaurar um inquérito disciplinar, desandou.

Nesse tempo, eu já me havia protegido contra as investidas dos meirinhos ministeriais. Eu agia dentro da lei, enquanto o ministério agia à margem da lei. Eu sabia fundamentar aquilo que fazia, e os inspetores do ministério não sabiam.

Se tiverdes disposição para tal, talvez um dia vos conte estórias de encontros e desencontros com funcionários do ministério. Estou a reunir essas (hilariantes) estórias num livrinho a que darei o título “Estórias que eu nunca hei-de escrever”. Será publicado a título póstumo. o que não deve demorar muito.

Nesse tempo, eu ainda enfeitava a minha datilografia com citações e notas de rodapé. Ninguém é perfeito, e eu acreditava que só colocando as citações entre aspas ou em itálico, com indicação da obra e da página, poderia conferir à minha redação valor científico. Mais tarde, percebi que não era necessário. Os teoricistas isso faziam para disfarçar duas coisas: a sua ignorância, pois eram meros copistas, e a impotência, porque nada daquilo que copiavam conseguiam tornar útil, na prática.

Então, cá vai mais um pouquinho do texto escrito em 1972.

Schmidt e Reich, no enunciado de princípios psicanalíticos do trabalho, são objetivos. Diziam que a nossa tarefa é ensinar a criança a compreender progressivamente o significado das condições reais do mundo exterior e assim incitá-la a ultrapassar o princípio do prazer, a substituir este pelo princípio da realidade. 

Estávamos numa encruzilhada relacional, entre o desejo e a realidade. Biasutti afirmava que a infância tinha valor, não tanto como período de adestramento, mas como período em que se poderia experimentar, livremente, aquela maravilhosa sensação de sermos nós próprios, que predispõe a aceitar melhor as inevitáveis limitações da vida adulta. Mas, de que modo a Escola operava a superação do egocentrismo? 

A Escola introduzia um elemento novo no psiquismo infantil: o do êxito intelectual. Fazia rodear a criança de uma atmosfera de pressão organizada a que, antes, ela não fora submetida. Levava a efeito uma contínua seleção entre os alunos.

Amanhã, vos trarei mais alguns excertos de “fundamentações” escritas numa velha Remington.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXIX

São Pedro da Aldeia, 24 de fevereiro de 2044

De volta ao Brasil, rascunhei durante a viagem mais algumas contribuições, mais ou menos, teóricas, que convosco partilho. 

Desta vez, me arriscarei numa breve incursão no universo da… psicanálise. Não espereis profundas reflexões. O vosso avô apenas reunia informação (leia-se: teoria) que o ajudasse a resolver dificuldades de ensinagem. Eis o que teclei na velha máquina de escrever, por volta de 1972:

Em que sentido pode a psicanálise (como ciência aplicada) ter “aplicação” nas práticas educativas? Mosconi dá-nos uma possível resposta, quando refere que numa prática pedagógica, não será a psicanálise a comandar, nem como prática, nem como teoria científica, mas essa mesma prática, com os fins que se propõe.

Apesar de a psicanálise ser considerada determinista, por considerar o adulto retroactivo, para Freud a educação consiste, fundamentalmente, em desenvolver na criança um eu capaz de se determinar. 

A formação do superego exigirá um meio educativo em que intervém, determinadamente, no campo intelectual como no da ação, a afetividade. 

Entre as noções introduzidas por este autor, destaca-se o “princípio do prazer” (tendência para a satisfação das necessidades) e o “princípio da realidade” (submissão aos constrangimentos sociais). Entre os seus discípulos, e no campo restrito da educação, merecem referência: Mélanie Klein, que interpretava perturbações neuróticas através do jogo; Hans Zulliger, que criava situações de jogo, para que nelas as crianças simbolizassem os seus conflitos traumatizantes; Maud Mannoni, que, através do desenho e do teatro de fantoches, permitia a verbalização das perturbações; Ana Freud, que divulgou a psicanálise junto dos educadores, ajudando-os na interpretação do psiquismo infantil. 

Neste âmbito, também merece referência Alfred Adler, criador da “psicologia individual”, que viria a exercer alguma influência no apogeu da Educação Nova. 

A psicanálise não descura o papel da auto-educação. Mas, sustenta que o educador deve “dar o exemplo”, não o seu exemplo, mas a imagem ideal que sustenta a benevolência, atenção, compreensão. Confere a maior importância às relações interpessoais. Realça o conteúdo afetivo e emocional dessas relações, raramente contemplado pela escola. Por isso, recusa a redução da curiosidade e interrogações infantis ao domínio do cognitivo. 

Nesse tempo, ainda considerávamos o aluno como centro do processo de aprendizagem. Mas, já Filloux nos dizia que tudo o que diz respeito à criança e à escola deve ser estudado numa perspectiva relacional. 

Esse autor reconhece que não foi ainda possível aproximar os psicanalistas dos especialistas em Ciências de Educação, de modo a promover um “saber psicanalítico” aplicável à Educação.

O que a psicanálise requer ao educador é, no fundo, um discernimento suficiente para se descobrir e se reconhecer, o que não é tarefa fácil, dada a dificuldade de transpor o potencial da psicanálise para a práxis pedagógica. Mas, são inúmeros os equívocos. Poderemos encontrar falsos adultos, para os quais o contacto com crianças é um meio inconsciente de recuperação pessoal da infância, que funciona como uma fuga à realidade, ou concretização do reconhecimento de poder e consideração. 

Outro desvio consiste na manipulação dos desejos. Sobre isso, vos falarei na cartinha de amanhã, de Schmidt e de Reich, no enunciado de princípios psicanalíticos do trabalho escolar.

A Ponte era um projeto cientificamente fundamentado. Talvez isso nos tivesse salvado da extinção.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXVIII

Aveiro, 23 de fevereiro de 2044

Não sei, netos queridos, se já estais saturados destas divagações, mais ou menos, teóricas. Mas, podereis crer que, nos idos de vinte, houve educadores que por elas se interessaram e sobre elas refletiram. Talvez, também, em 2044, haja quem esteja interessado naquilo que rascunhei numa velha máquina de escrever, em velhos papéis, que retiro do baú das velharias. Salvo do esquecimento algumas reflexões, no pressuposto de que ainda tenham alguma serventia.  Se vos desagradam, mudarei de assunto. 

Como devereis ter reparado, tento fugir ao usso indiscriminado do jargão “científico”, embora não consiga… Naquele tempo – anos oitenta – o discurso da autonomia poderia desempenhar uma poderosa função ideológica, promovendo a subordinação do indivíduo a um sutil controlo organizacional. 

Foi vergonhosa a ação dos teoricistas (uma das sete pragas da educação), que, dominando o jargão “científico”, encontrando-se em posições de poder, anularam a parca autonomia conseguida pela à Escola da Ponte, em 2004. Abusando de efeito retroativo (ilegal!) de uma lei do final da primeira década deste século, o ministério da educação, unilateralmente e à margem da lei, retirou competências básica de um contrato de autonomia.

O vosso avô abominava má-fé, desonestidade, mesmo que ornamentada com citações, com frases de belo efeito, ou com um “jargão” dito científico que, não raramente, ocultava… ignorância. 

O humanismo renascentista já havia celebrado o carácter efémero da realidade, já havia reconhecido que a realidade é desprovida de qualquer finalidade. O carácter informal do “círculo de estudos” (a modalidade de formação por nós mais utilizada) servia um propósito de apoio do professor na resolução de conflitos, no “confronto de autonomias”. 

Tudo é transitório e inconsequente, mas também provisoriamente durável e significativamente produtivo. Em círculo, o professor permanecia firme numa tradição de formação, sabendo que outras tradições existiam e mereciam escuta.

Essa autonomia de novo tipo realçava a inutilidade de controlo externo. No círculo, os professores detinham um efetivo controlo sobre o seu próprio trabalho, e o entendimento de que a inteligibilidade do real sofria uma erosão constante. 

À desatualização dos saberes, o círculo contrapunha uma autonomia sempre provisória e questionável – para a provisoriedade dos conhecimentos uma autonomia de recorte não definitivo e continuamente amadurecida.

No seio do círculo não se alienavam as estruturas profundas de desenvolvimento individual no quadro do coletivo, antes se agudizavam os conflitos para, através deles, se testar meras aparências de autonomia.

O círculo possibilitava a afirmação de autonomias individuais, no aprofundamento das relações entre o indivíduo e as estruturas sociais de subordinação, pois a gestão das dependências admitidas como inevitáveis não se referia a uma liberdade abstrata, a uma noção especulativa de mudança social.

Concebida desse modo, a autonomia do círculo relativizava a originalidade da autonomia de cada destino particular, sem que privasse cada um dos seus elementos de uma autonomia-com-os-outros. De uma autonomia que poderia ser conceptualizada enquanto ação de um sujeito envolvido num projeto humano coletivo, numa “autonomia relacional”.

Vai para uns vinte anos, eu tentava assegurar a autonomia (financeira) de um projeto. A experiência colhida levou-me a escrever um livrinho sobre autonomia. Se ainda houver algum exemplar por aí, vo-lo darei a conhecer.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXVII

Viana do Castelo, 22 de fevereiro de 2044

Por aqui ando, queridos netos, no extremo norte de Portugal, visitando escolas, observando aquilo que, nos últimos vinte anos, se conseguiu concretizar: uma nova construção social de aprendizagem, que, efetivamente, garante a todos o sagrado direito à educação. Nos intervalos de viagem, descanso e escrevo. E aqui continuo a falar-vos de autonomia.

Uma das cartinhas enviadas neste mês terminava com uma pergunta: “Em que consistia o trabalho autónomo?” Tentarei responder.

O trabalho autónomo é uma forma de pedagogia individualizada, através da qual o aluno participa na determinação de objetivos, na gestão de tempos e espaços em que os seus projetos decorrem, bem como na avaliação. 

O trabalho autónomo tende a anular a dicotomia clássica entre diretividade e näo-directividade, pelo reconhecimento da possibilidade de estatutos e papéis dos intervenientes no ato educativo. Coloca-se, aqui, o tipo de intervenção do professor, que poderá ser “diretiva” (por exemplo, para introduzir no plano de um aluno uma atividade que julgue oportuna), como “não-diretiva” (por exemplo, para integrar no planejamento geral uma proposta individual ou de grupo). 

O exercício de autonomia não se confunde com a permissividade, nem dispensa a colaboração do professor, na situação de tutor. 

Na Escola da Ponte dos anos oitenta, a partir da prática e da reflexão sobre a prática, foi elaborado um “Perfil do Orientador Educativo”. Eis alguns excertos desse documento: 

“1- RELATIVAMENTE À ESCOLA E AO PROJECTO 

d) Contribui, ativa e construtivamente, para a resolução de conflitos;

e) Contribui ativa e construtivamente para a tomada de decisões;

f) Toma iniciativas adequadas às situações;

g) Alia, no desempenho das suas tarefas, a criatividade à complexidade, originalidade e coerência;

h) Apresenta propostas, busca consensos, critica construtivamente;

i) Produz ou propõe inovações;

j) Procura harmonizar os interesses da Escola e do Projeto com os seus interesses individuais;

k) Age de uma forma autónoma, responsável e solidária;

l) Procura fundar no Projeto os juízos e opiniões que emite;

m) Domina os princípios e utiliza corretamente a metodologia de Trabalho de Projeto;

n) Assume as suas falhas, evitando imputar aos outros ou ao coletivo as suas próprias incapacidades;

o) Procura dar o exemplo de uma correta e ponderada utilização dos recursos disponíveis;

2- RELATIVAMENTE AOS COLEGAS

a) Está atento às necessidades dos colegas e presta-lhes ajuda;

b) Pede ajuda aos colegas, quando tem dúvidas sobre como agir;

d) Mantém com os colegas uma relação atenciosa, crítica e fraterna; 

e) Reconhece e aceita criticamente diferentes pontos de vista, procurando ter sempre o Projeto como referência inspiradora;

g) Apoia ativamente os colegas na resolução de conflitos;

3- RELATIVAMENTE AOS ALUNOS

a) Mantém com os alunos uma relação carinhosa;

b) Procura ajudar os alunos a conhecer e a cumprir regras;

c) Procura ser firme com os alunos, sem cair no autoritarismo; 

d) Procura tomar atitudes em sintonia com o coletivo;

e) Procura acompanhar de muito perto e orientar o percurso educativo dos seus tutorados.”

A prática de autonomia passa, igualmente, pela prática da colaboração entre pares. Também aqui o professor-tutor é responsável por uma correta organização, dado que a ajuda entre alunos introduzida como técnica, de forma mecânica, não conduz à entreajuda, ao reconhecimento do outro, ao exercício de solidariedade ativa, não produz autoconhecimento, não propicia aprendizagem de autonomia.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXVI

Esmoriz, 21 de fevereiro de 2044

Como vos disse, o textinho que escrevera sobre autonomia, há meio século, mantinha atualidade. Por que seria?

Uma das causas da “atualidade” desse textinho era a pérfida ação de “doutores em educação” saídos das catacumbas da pedagogia do século XIX, venerando Gagné, Skinner e quejandos. A ação de áulicos universitários afetados pelo teoricismo – a doença infantil da pedagogia – conferiam ao textinho atualidade e contribuíam para perenizar a tragédia instrucionista. 

Espero que não vos canse regressarmos à leitura daquilo que redigi sobre o conceito de autonomia e a sua expressão praxeológica. É de prática que vos falo, não de teorização de teorias teorizadas. Faço-o porque os Gagnés dos idos de sesenta tinham todo o direito de “duvidar” da possibilidade de assunção de uma autonomia responsável, mas poderíamos admitir que a aprendizagem poderia ser reduzida a uma resposta a estímulos externos ao sujeito de aprendizagem? 

Só porque escasseava a caução das práticas (ditas) alternativas, teóricos como Gagné “raramente duvidavam”. Mas o discurso teórico instrucionista poderia cair em contradição, se confrontado com algumas inelutáveis práticas participadas pelo vosso avô. Humildemente, contrapus o argumento de uma práxis dos anos setenta, num textinho intitulado “Uma utopia realizável?” Ei-lo:

“As propostas de Gagné, como as de tantos outros teóricos militantes, orientam a aprendizagem para o domínio da criação de situações de ensino em que ao professor cabe apresentar estímulos, dirigir a atenção do aluno, fornecer modelos, orientar “a direção do pensamento”, e ao aluno um papel passivo. 

A tecnologia educativa projeta-se em artefactos que visam a “função geral de fornecer imputs à pessoa que aprende”, afirma Gagné. Não declino o importante papel da repetição, da memória e do esforço, mas uma criança aprendiz poderá ser metaforicamente comparado a um rato aprendiz que, por tentativas, constrói o seu mapa cognitivo?” 

Netos queridos, como vos disse na cartinha anterior, nos idos de vinte, a farsa instrucionista estava bem montada e generosamente financiada por empresas e fundações. Alastrava a praga das start-up educacionais consideradas inovadoras – que de inovadoras nada tinham – lideradas por titulares de cursos de administração de empresas e por técnicos de Marketing, que apenas visavam lucro, explorando a ignorância e a ingenuidade pedagógica.

Consultei a lista de palestrantes de “lives” promovidas por abútricas empresas. A curiosidade me levou à consulta do currículum vitae de improvisados e falsos “especialistas” em educação. Eram especialistas em Administração, Gestão de Empresas, Design de Produto, Publicidade e Propaganda, Informática, Direito, Finanças, Varejo e Serviços, Ciências do Consumo Aplicadas, Educação Executiva… 

No distante 2024, os “híbridos” seduziam a administração educacional e secretarias de educação compravam “gato por lebre”. Numa economia de mercado, o direito à educação estava transformado numa mercadoria. 

A escolha das condições para a aprendizagem determinava, decisivamente, o tipo de modificações que se operavam. Nos idos de vinte, alunos transformados em “monstrinhos de tela”, consumiam currículo prescrito, como cobaias de laboratórios “alternativos”, ou “ratinhos de laboratório” de aprendizes de feiticeiro. Burocratas usurpavam espaços de reflexão e prática, onde deveria prevalecer o bom senso e uma ciência prudente.

Iríamos esperar mais um século pela erradicação da escola da sala de aula?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXV

Viseu, 20 de fevereiro de 2044

A minha irmã Maria enviou-me os programas eleitorais dos partidos concorrentes às Legislativas de 2024. Li todos os programas para a Educação. Acreditareis, se eu vos disser que um desses programas assumia medidas, que o vosso avô havia proposto, ao longo de décadas?

Pois bem! Eu, que estava longe da pátria, que talvez não pudesse exercer o direito de voto, que já tinha passado pela política ativa e, prudentemente, dela me afastara, quase senti vontade de a voltar. 

Descontando algumas premissas de origem neoliberal, citarei partes do “programa” desse partido:

“Centrar a escola em cada aluno, assegurando a integração entre conhecimentos de áreas do saber;

Promover a criação de verdadeiras escolas livres, usufruindo da autonomia e flexibilidade curricular e construindo na escola pública novos modelos de ensino centrados em cada criança e jovem;

Criar condições para uma nova organização não baseada em turmas, mas antes em comunidades de aprendizagem;

Garantir a todos os alunos uma formação integral, com o acompanhamento de colegas e professores, que promova o conhecimento para lá das disciplinas e da divisão entre atividade intelectual e atividade manual;

Manter todas as modalidades de ensino atuais, por forma a que cada aluno e sua família possam optar, de forma livre e respeitadora das suas opções pessoais, familiares e/ou étnicas, por aprender da forma mais adequada ao seu caso individual, nomeadamente o Ensino à Distância, o Ensino para a Itinerância, o Ensino Doméstico (…) avaliação contínua, proporcionando uma abordagem mais holística da aprendizagem;

Promover a interação com a família no âmbito da aprendizagem, promovendo a assunção de valores e princípios comuns e o respeito por eles;

Garantir a possibilidade de expansão da rede escolar, através da regulamentação e certificação de escolas alternativas e/ou comunitárias;

Reforçar a oferta educativa formal com competências cruciais para a vida no século XXI, como pensamento crítico, inteligência emocional, empatia e criatividade, essenciais para preparar os jovens para prosperar num mundo cada vez mais complexo e tecnológico.”

E a “cereja no bolo” era a recomendação de que se deveria “ter em conta a proximidade com as populações, evitando o abandono das escolas locais em favor de superescolas”. Esse partido denunciava o crime de “desertificação” do interior português, também, por via da construção de megalómanos “centros educativos”.

Isso era “música para os ouvidos”. Não hesitei. Enviei aos meus amigos e às minhas amigas de Portugal essa boa noticia, pois talvez não tivessem lido os programas dos partidos.

A minha atitude não visava sequer sugerir que votassem nesse partido. Mas, certo é que os mais reacionários programas educacionais eram propostos por partidos que ocupavam os primeiros lugares nas sondagens de intenção de voto. E o partido que apresentara o melhor programa educacional estava… em último lugar.

Após a Revolução de Abril, jovens se filiaram em partidos políticos e ascenderam na hierarquia partidária. Decorridos 50 anos, ocupavam cargos de confiança, nos gabinetes dos ministérios. Eram “doutores”, que nunca tinham trabalhado nas suas vidas. E que ditavam leis, que os professores deveriam cumprir, nas suas salas de aula. 

Nos idos de vinte, a educação estava à mercê de políticos e funcionários, que impunham um modelo educacional reciclado, uma escola semelhante à de “partido único”, que foi aquela que me coube, no tempo da ditadura.

Compreendeis, queridos netos, a dimensão da tragédia?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXIV

São João da Madeira, 19 de fevereiro de 2044

Vim até São João, observar os prodígios realizados pela professora Rute, ao longo de duas décadas de projeto. É admirável a sua obra. E se constituiu em fonte de inspiração para muitos outros projetos.

A Rute compreendeu que toda e qualquer situação pedagógica assentava numa relação de poder mediada pelo saber, uma mediação não natural, mas construída. E essa educadora se transcendeu, através de uma prática coerente com valores e princípios, assumindo que o poder não é bom, nem mau, que o uso do poder é que poderá ser benigno, ou maligno. Sobretudo o poder simbólico exercido sobre a infância.

A criança pode brincar com o poder. É pelo exercício desta brincadeira “séria”, num constante jogo de reajustamentos, que o aluno exerce e aprende a exercer o máximo poder a que tem acesso. 

Esse jogo sério implica não a totalidade do princípio do desejo, mas uma totalidade-síntese de desejo e realidade. A responsabilidade do aluno poderia traduzir-se nesta mistura dinâmica e em permanente reequilíbrio. E a assunção de autonomia, que daí decorre corresponde um aumento da fluidez dos papéis e rituais presentes na relação educativa. 

O poder de controlar exerce-se em formas subtis. Para o interpelar, não basta ter consciência da sua origem. A ordem estabelecida com vista à realização da autonomia é de natureza anárquica, no que näo pode ser confundida com um estado caótico de relação (Prigogine o afirma…). 

O indivíduo em processo de autonomizaçäo libertária passa de um nível restrito à pessoa, ou a um grupo, ao envolvimento numa gestäo institucional participada, numa ordem simbiótica, concretizada a nível microssocial; näo uma ordem ideal, mas uma base efetiva de partilha de perspectivas. 

A relação vertical professor-aluno não permite uma integração dos conhecimentos em termos de saber gerante. Tudo o que é meramente transmitido e, pretensamente, ensinado tem pouca influência no comportamento da pessoa. Os conhecimentos que podem influenciar os conhecimentos do indivíduo são os que ele próprio descobre e de que se apropria.

Netos queridos, eu sei que estou a usar de excessiva didática. Mas, ficai sabendo que, se nos idos de vinte houvesse professores que chegassem a ler estas cartinhas, iriam apreciar, certamente, o didatismo que nelas coloco. 

Na longa jornada percorrida, a Rute e muitos outros educadores enfrentaram dificuldades, tormentas várias. A propósito… cito Attico Chassot, para que saibais como esses educadores reagiram: 

“É nos momentos de crise, não na normalidade, que se multiplicam os bons e os maus exemplos. Cada um de nós reage de uma forma às catástrofes. A sociologia dos desastres é farta em estudos sobre o assunto. 

Há os que crescem em altruísmo, magnânimos, solidários, prontos a ajudar. Há, também, os que se tornam apáticos na crise, ficam paralisados diante dos estragos. Sentem-se impotentes. Preferem recolher-se e esperar, não atrapalham, mas não ajudam. Por fim, há aqueles que querem tirar vantagem da situação, sempre há. São tipos variados. Na hora mais difícil, todos esses vão aparecer e podem, ou não, fazer a diferença. 

Para a nossa sorte, há muitos que “fazem o bem sem olhar à quem”, ajudam a costurar as pontas do tecido social e amarram firme essa coisa que chamamos de sociedade. São essas pessoas que merecem a nossa consideração, não as outras que perderam a chance de mostrar grandeza.”

Queridos netos, as sociedades são as pessoas, as famílias são as pessoas, as escolas são as pessoas. Certamente, já entendestes que pessoa é a Rute. 

Colhei o seu exemplo.

 

Por: José Pacheco

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