Morada Nova, 12 de março de 2041
Em meados do mês de março de há vinte anos, notícias de primeira página dos jornais brasileiros avisavam que a tragédia anunciada se consumava. Passageiros se aglomeravam em trens do metrô, enquanto vigorava a fase vermelha da pandemia. As escolas de São Paulo registravam 21 mortes e 4.084 casos de Covid-19 em um mês de “volta às aulas”. Dois alunos e dezenove funcionários haviam morrido, após infecção pelo vírus. A televisão dava conta de que os jovens tinham passado a representar 25% dos internados com a doença.
Em meados do março de 2021, o Brasil atingia a marca de 2.349 mortes diárias. E muitas mais vidas se perderiam, num luto cruel e desnecessário.
Um médico saía do seu hospital, quando avistou um ajuntamento. Gente sem máscara de proteção, xingando quem passava usando máscara. Chamado de “maricas” reagiu. Disse que havia saído de uma UTI superlotada e apelou ao bom senso. Foi espancado pela multidão.
O negacionismo expunha os vivos ao contágio e ofendia os mortos. Quando escutei um educador lamentar a situação, dirigi-lhe algumas perguntas:
“Por que será que tanta gente acredita que a Terra é plana? Por que há gente acreditando em fake news? Tens feito um bom serviço na tua escola? Qual a tua quota parte de responsabilidade”?
Num dos seus discursos, o ditador Salazar disse” “Cada povo tem o governo que merece”. No Brasil dos idos de vinte, talvez o país não tivesse o povo que merecia. Quem o teria posto assim?
Em “O Brasil e as colónias portuguesas”, Oliveira Martins referia-se à transferência da família real para o Rio de Janeiro como a origem dos males que afetavam o Brasil. Em pleno século XIX, no jornal “O Repórter”, zurzia as medidas de política educativa de então, que em nada diferiam daquelas que, nos idos de vinte do século XXI, as secretarias de educação adotavam:
“Tudo isto é uma miséria, tudo isto está pedindo uma reverendíssima reforma. A organização atual dos nossos estudos está abaixo da crítica. Encasquetar na memória rosários de abstrações incompreendidas é o acume da insensatez. Embrutecemos os alunos com um ensino que é uma hipótese apenas, no fundo da qual está uma grande ignorância de mãos dadas com bastante especulação”. Em 2021, era surpreendente a atualidade da prosa… de 1888.
Cento e trinta e três anos depois, as estatísticas davam conta de défices acentuados na alfabetização, de miseráveis índices educacionais. Nas terras que Cabral achou, os jornais davam notícia de “alunos analfabetos na oitava série, de abandono dos estudos, do descalabro no ensino”.
As decisões dos políticos visavam atenuar efeitos, sem intervir nas causas. Eram inúteis exercícios de cosmética legislativa, que um sistema assente em viciosas rotinas se encarregava de perverter. Insistia-se no “dar aula”, apesar de os afirmarem que os professores ensinavam, mas os alunos não aprendiam. Nada conseguira abalar a estrutura herdada do velho Lancaster. Exauria-se recursos, na sujeição a uma racionalidade caduca, que condenava ao insucesso sucessivas gerações
Um professor quis saber por que razão não havia séries na minha escola. Expliquei-lhe. Pessoa inteligente – como qualquer professor – ele entendeu as razões que levaram a Ponte a abandonar a cartesiana segmentação.
“E há séries na tua escola?” – perguntei.
Ele respondeu com o silêncio e um sorriso maroto. Sosseguei-o:
“Não te preocupes. Já fiz essa pergunta a muita gente. Ninguém soube dar resposta. Se a procurares nos livros, não encontrarás fundamento, que possamos chamar “científico”, de haver séries. Pero que las hay, las hay”.
Por: José Pacheco
253total visits,2visits today