Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXX)

Herdade do Freixo do Meio, 10 de julho de 2042

A Lia regressara às suas mais remotas origens. E se surpreendera com a presença do seu avô no sonho realizado pelo amigo Alfredo. Na sua viagem a Portugal, voltaria a encontrar o espírito de Agostinho, não só em Barca d’Alva, mas em muitos lugares onde uma nova Educação emergia

Na manhã seguinte a uma longa e penosa viagem, encontrei a Lia e o seu companheiro (tentando fazer funcionar o seu drone) e à espera do Manuel dos Menires. Esses bons amigos decidiram atravessar o oceano para colher imagens e depoimentos de quem ousava inovar. Ajudei-os a preparar o périplo português e aproveitei para pôr em dia a leitura de escritos sobre o Mestre.

A desconcertante atitude de Agostinho perante a Vida levou um patrício da Lia (chamado Caetano Veloso) a escrever no seu livro ‘Verdade Tropical’: 

“Agostinho da Silva possuía um paradoxal sebastianismo de esquerda que nutria de lucidez e franco realismo e não de mistificações. Se aquilo era um ardil da saudade do catolicismo medieval lusitano ou um modo de expressar a intuição de uma via independente, não ficava claro para mim.”

O Agostinho “desvendador” pôs claridade na “escuridão” de Caetano: 

“Eu creio mesmo que o homem possui as qualidades dos seus defeitos… É possível que destes resultem aquelas, por contraste ou evolução criadora. Pode ser que o Bem não seja mais do que o Mal superiormente degenerado. Não foi assim, por degenerescência eletiva, que o homem se destacou do orango?
Se admitirmos tal teoria, o que não nos repugna, temos de olhar os nossos defeitos com esta vaga e lusitana consideração devida às coisas ruins (…) Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total”. 

Acaso ainda haja na antiga Internet algum episódio das “Conversas Vadias”, valerá a pena revê-las. Já septuagenário, Agostinho acolhia o a pessoa do seu interlocutor (“o Outro” de Buber), provocava o diálogo, respondia mesmo sem pronunciar palavras. Ficaram célebres as suas explicações de não possuir cartão de contribuinte e sobre o acesso ao ensino dito superior. 

Agostinho era um verdadeiro franciscano. Nunca se interessou por bens materiais. Nunca recebeu pagamento pelas treze ‘Conversas Vadias’. Não confundia o verbo amar com o verbo ter. Escutemo-lo, de novo:

“O que penso ou escrevo hoje é do eu de hoje; o de amanhã é livre de, a partir de hoje, ter sua trajetória própria e sua meta particular. Mas, se quiserem pôr-me assinatura que notário reconheça, dirão que tenho a coerência do incoerente e a originalidade de não me importar nada com isso.

A vida certa do mundo inteiro seria que cada um pudesse viver a sua vida e cada um dos outros pudesse ter esse espetáculo extraordinário de ver pessoas diferentes à sua volta e não, como tantas vezes acontece, sobretudo em pessoas que gostam de mandar nos países, achar que deve ser tudo igual, e quando aparece alguém diferente se ofendem, acham que está fugindo das regras, saindo da vida que deve ter”.

Para finalizar esta já longa cartinha, renovo a minha decisão dos idos de vinte e a minha crença de sermos capazes de reencontrar o que em nós é extraordinário. Quando o meu extraordinário ícone era questionado sobre os seus graus académicos, respondia ser “licenciado em liberdade e doutorado em raiva”. A sua visão de homem e de mundo era, numa palavra, a liberdade, “a liberdade de se ser, plenamente, aquilo que se é”.

Quando a Lia chegou, o Mestre estava entre nós, ajudando-nos a fazer de cada biblioteca e de cada praça lugares de aprender, ajudando-nos a refazer o mundo.

 

Por: José Pacheco

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