Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXCVII)

Cotia, 15 de setembro de 2042

Há seres que atravessam a vida como estrelas cintilantes, mas frágeis por serem gente. 

Como qualquer ser humano, o Kevin era único, irrepetível, dotado de um talento, que mereceria expandir-se. A Penha o ajudou a realizar-se, numa tenda de circo, a ágora da Escola do Projeto Âncora. O Kevin se fez artista. Proverbiais eram a sua alegria, o seu brilho, que se apagaram no mesmo setembro da partida da Therezita. Faleceu no mesmo dia da Rainha Elizabeth, mas no anonimato, porque “a dor da gente não sai no jornal”. 

A Penha assim o descrevia:

“Me lembro dele pequenino em sua primeira aula de circo, com seus olhinhos brilhantes. O Kevin olhou para os equipamentos e disse “Vou aprender tantas coisas aqui!”.

A Juliana o recordava, ternamente:

“Kevin, menino incrível, extremamente educado e livre. Quantas vezes pude da frente de minha casa acompanhar seus lindo saltos e dança. Com certeza o que vier de lembrança sobre você será de um sorriso lindo e de um corpo livre e leve. 

E a Lívia o exaltava:

“O bailarino Kevin virou anjo. Deixará para sempre na memória de quem o conheceu o emblema do talento. Por onde Kevin saltava, ganhava bolsa de estudos, como recebeu da Bathka e da EDA (Escola de Desenvolvimento Artístico). Em escassos dezesseis anos, aprendeu seis tipos de dança, integrou a série documental “Borboletas e Sereias”, estudou teatro no Ballet Paula Castro e estava pronto para estrear seu segundo musical.

Kevin, que o mundo possa se deslumbrar ao te ver dançando. Teu extraordinário talento, tua beleza e alegria sempre habitarão nossos corações. És inspiração para todos nós. Voa, Kevin, brilha sempre!”

“Morre jovem o que os deuses amam”, dissera o Pessoa, em memória do seu amigo Mário:

“Não morrem jovens todos a que os Deuses amam, senão entendendo-se por morte o acabamento do que constitui a vida. E como à vida, além da mesma vida, a constitui o instinto natural com que se a vive, os Deuses, aos que amam, matam jovens ou na vida, ou no instinto natural com que vivê-la.  Uns morrem; aos outros, tirado o instinto com que vivam, pesa a vida como morte, vivem a morte, morrem a vida em ela mesma. E é na juventude, quando neles desabrocha a flor fatal e única, que começam a sua morte vivida.”

Na Ponte, as crianças criaram uma “editora” e publicaram “A “Cor das Vogais”, invocando uma estória antiga. Aquela em que a criança pergunta ao pai: 

“Pai, qual é a cor do A?”

“Não sei, meu filho.”

E a todas as perguntas que o filho lhe fazia o pai ia respondendo não saber.

“Pai, não te importas que eu continue a fazer perguntas, pois não?”

“Não, meu filho. Se assim não fosse, como poderia aprender todas as coisas que me ensinas?”

Que se abram os olhos e os ouvidos ao entendimento dos sons do mundo. É necessário escutar “a voz que vem do coração”, os sons sensíveis, amorosos.

Querido Marcos, não sei se te recordarás de teres ficado atento à voz da Violeta: “Gracias a la vida!”  A Violeta era como Kevin, uma criança grande que morreu de amor e, por isso, vive.

Os talentos se revelam prematuramente, o artista faz-se bem cedo, se não for frustrada a propensão. Nos idos de setenta, a Diana não se apercebia de que estava a inventar poesia que não rimava. O Dario, moço-poeta de oito anos de idade, não estava consciente do seu dom. Numa manhã de escola, talvez inspirado no verde das árvores que o sol de Primavera sublinhava, foi um pequeno Lorca: 

“O amor é verde / Doce como pipocas / Mas com açúcar a dobrar / Cheira a carvalho / E é mais quente que um vulcão a fervilhar / Tem o som de qualquer coisa / De que eu não posso falar / Move-se como um caracol / Pois é leve / E faz-me sentir feliz.”

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