Cachoeira dos Pretos, 22 de janeiro de 2043
Estranhastes que, na cartinha de ontem, eu tivesse falado de modo intimista, de uma juvenil paixão. E perguntastes quem foi Brell. Pois bem! Vos direi que foi um francês de nome Jacques e sobrenome Brell, que me acompanhou ao longo de mais de setenta anos, sob a forma de livro (aquele que junto a esta missiva), que me foi oferecido, quando contava dezessete anos. Foi assim….
Havia passado um ano inteiro fitando a minha musa inspiradora, num reverente ato de amor, que eu cria ser platónico. Ela tinha dezoito anos. Eu, dezessete. Mas, ela era professora. Eu era aluno. A demanda de amor jamais poderia ser atendida. Um “vazio constitutivo” se instalara. E eu confiava na sorte, que ela não se apercebesse de que era o meu olho estrábico que a observava.
Nesse dia, à medida que o tempo da aula se esgotava, a tristeza me invadia. Talvez nunca mais voltasse a vê-la.
No tempo da Ditadura, os professores mandavam-nos levantar. Depois, diziam: “Podem sair!”. Acaso proferissem o nome de algum aluno e lhe dissessem para ficar na sala, isso era sinal de que iria ser punido. A professora de francês sempre dispensara esse ritual. Porém, naquele último dia de ano letivo, aconteceu algo inesperado. A professora de francês juntou ao sacramental “podem sair” um apontar de dedo na minha direção.
“Podem sair. O José Pacheco fica. Precisamos conversar!”
Pensei: ter-me-ei deixado trair pelo olhar? Iria ser punido?
Os meus colegas foram saindo, deitando-me um olhar de piedade, convencidos de que iria ser castigado. Seria o cúmulo do infortúnio ser admoestado por alguém que eu amava profundamente, em silêncio.
Quando o último dos alunos se retirou, ela fechou a porta da sala de aula e retirou da sua saca de ombro um disco e um livro, dizendo:
“Fui a Paris, e lembrei-me de te trazer música de Jacques Brell. Sei que irás gostar. É para não te esqueceres de que me lembrei de ti”.
A professora a tratar-me na segunda pessoa do singular, num vocativo apenas usado entre pessoas íntimas, ou… que se amam.
Fiquei pregado ao chão, uma mão colada ao disco, outra no livro. Mudo por fora, gritando por dentro. E, antes que eu conseguisse resolver o conflito, a professora saiu da sala.
Nunca mais voltaria a vê-la. Para ser totalmente sincero, devo confessar que, de cada vez que ouço o “Ne me quitte pas” do Brell, sinto a súplica do poeta-cantor como se minha fosse. Por isso, no altar-espólio da minha andarilhagem esse livro teve lugar cativo.
A escola que me coube em sorte assemelhou-se a um vaguear num deserto. Mas, como todo o deserto que se preze é pontuado pelo mimo dos oásis, na escola também nutri afetos.
Há professores que não usam a pedagogia como mera ciência ou arte, mas ajudam outros aprendizes a aprender a arte de viver. A minha professora de francês era uma mulher extraordinária, que se envolvia no que ensinava e criava duradouros vínculos com os seus alunos, interpelando as nossas vidas na língua de Voltaire e de Vian.
As suas perguntas, feitas em catadupa, conduziam-nos a novas perguntas, a novas descobertas e à descoberta de nós. No breve tempo desse ano letivo – que a noção de tempo não é idêntica na amiba e no elefante – a professora anediava-me a alma.
As suas aulas – que eram mais uma espécie de liturgia – produziam em mim um efeito mágico. E eu para ali ficava a contemplá-la, automaticamente absorvendo tudo o que ela dizia, antropofagicamente exaurindo tudo que ela era. Numa alquimia dos sentidos, de que só ela conhecia os segredos, mais do que a amá-la, ela me levou a amar a cultura francesa: Camus, Yourcenar, Eluard, Piaf… Brell.
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