Ponta Delgada, 8 de junho de 2043
Achei essa foto no fundo de uma gaveta. Ela tem data de finais de noventa. E me fez recordar a visita a uma escola.
Naquele tempo, eu representava a educação básica no Conselho Nacional de Educação. e me pediram para redigir um “parecer” sobre uma proposta de decreto-lei, recebido do ministério.
Fui aconselhado a visitar algumas escolas tidas como “exemplos de qualidade”. Esqueceram-se de dizer se seriam de boa ou de má qualidade. Mas, eu lá fui.
Entrei no prédio da escola à mistura com alunos, professores e funcionários. Ninguém me perguntou ao que ia.
Munido da minha implacável grelha de observação, logo detectei um pormenor: as portas de entrada dos professores e dos alunos eram diferentes. Entrei pela dos alunos.
Esperei que enchessem as salas de aula e fui visitar as casas de banho dos alunos. Sentado numa sanita, observei as inscrições pichadas no interior da porta. Eram manifestações de indigência mental completadas com dísticos de rogo:
“Por favor, urine dentro da sanita.”
Acaso haveria outro lugar onde urinar?
“Por favor, dê a descarga!”
Pedir por favor o que não passava de um simples ato de higiene pública?
Do chão da escola aos gabinetes dos ministérios, passando pelas universidades, o interior das portas dos sanitários exibiam sugestivos desenhos, predominando elementos fálicos, bem como ostentavam frases de… elevada moral.
Passo seguinte de observação: a biblioteca.
Em tempo de aula, estava fechada, protegida por grades, com cadeado, ou estava vazia, com uma bibliotecária, sentada num canto, a dormitar, ou a fazer malha. Raramente havia alunos na biblioteca e, se os havia, “estavam de castigo”, à espera de “audiência” com o senhor diretor.
Em suma: uma biblioteca era um depósito de livros, que nunca seriam lidos, ou uma antecâmara de tortura.
Percorri longos corredores escutando ladainhas e berros vindos do interior das salas de aula. Antes de abalar, fiz a fotografia que encima esta cartinha, o dístico “Um projeto educativo de qualidade e inovador”.
A que qualidade e inovação se referiria?
No junho de vinte e três, eram promovidos seminários sobre “inovação pedagógica”. Neles se falava de inovação em “sala de aula” e de “escolas inovadoras”. Já sabíamos que, em sala de aula, não poderia haver inovação. Mas, eu sentia curiosidade em relação às “escolas inovadoras”, que diziam existir. Vezes sem conta, pedi o endereço de tais escolas. Não me foi dado, nunca soube onde elas estavam.
A Lei de Bases dizia-nos que a educação era dever da Família, da Sociedade e do Estado (através da Escola). Inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, acrescentava que a educação tinha por finalidade o pleno desenvolvimento do educando. Decorridas muitas décadas sobre a data da sua publicação, ainda lidávamos com os efeitos do analfabetismo funcional, com a exclusão escolar e social e outras manifestações de subdesenvolvimento educacional.
O rendimento escolar mantinha-se num nível precário e era um dado preocupante, dado que a maiores investimentos, à introdução de inúmeros projetos de melhoria e à intensificação das ações de formação, não correspondia um significativo aumento dos índices de aprendizagem. Se os resultados não correspondiam aos propósitos da lei era porque o sistema educacional estava pautado num modelo educacional ultrapassado.
Nas Capelas, o projeto Novas Rotas apontava caminhos novos, a partir de novas práticas. Naquele lugar se asseverava que somente conseguiríamos melhorar o sistema… quando mudássemos de sistema.
Por: José Pacheco
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