Arraial d’Ajuda, 12 de novembro de 2042
Queridos netos,
Quando me perguntais por que padeço deste vício epistolar, o que vos deverei responder? Se me imponho este diário exercício de escrita é porque ainda há quem padeça de uma estranha cegueira que, por mais de duzentos anos, afetou professores, administradores e outros funcionários de um “sistema de ensino”, cuja podridão engendrou fenômenos como aquele que vos passo a relatar.
Num tempo anterior ao vosso nascimento, quando decorria a década de noventa do século passado, uma guerra eclodiu nos balcãs. A somar-se aos horrores que qualquer guerra engendrava, se juntaram atos de extrema crueldade. Instalou-se o comércio de “safaris humanos”.
Pessoas ricas pagavam avultadas quantias para poder participar nesses “safaris”, que consistia em usar uma carabina, subir a arranha-céus e atirar contra civis, matando-os.
Uma longa-metragem dos anos vinte revelou esses hediondos crimes contra a Humanidade. Não se tratava de mercenários ao serviço de uma das partes do conflito armado. Eram atiradores furtivos – chamados “snipers”, ou franco-atiradores – civis estrangeiros, que pagavam elevadas quantias para disparar, indiscriminadamente, contra cidadãos de Serajevo, que passavam pelas ruas.
Calcula-se que 225 pessoas, entre as quais 60 crianças, tivessem sido vítimas desses monstros assassinos.
Quem os teria educado, deformado? Quem engendrara bonsais humanos? Foram as suas famílias, os seus exemplos, as suas “tradições”. Foi uma sociedade doente servida por uma escola que, até aos idos de vinte, reproduziu um modelo escolar e social obsoleto.
Apesar da escola, famílias havia que cuidavam de proteger os seus filhos das pragas sociais e de um iníquo “sistema de ensino”. A Ponte acolhia “pedidos de matrícula” de pais preocupados e ansiosos, por serem essas matrículas proibidas, pois se tratava de “alunos fora da área de residência”. Nós os “matriculávamos”. E sobre tais “prevaricações” vos falarei em próxima cartinha. Retomemos testemunhos…
“Trata-se de uma opção que conduz para o centro da cena educativa a discussão acerca do que entendemos por educar, o que entendemos por saber, por aprender. Uma opção a que podemos aceder através do reconhecimento do património pedagógico que a Escola da Ponte construiu, uma escola que é pública e democrática, porque aí se desenvolve uma experiência de trabalho:
onde as crianças não são seres exteriores e estranhos ao processo de interpelação que conduz à construção do saber;
onde os professores apoiam os alunos a confrontarem-se com informações relevantes e a construirem outros significados acerca da realidade e da relação que estabelecem com a mesma, o que constitui uma condição incontornável para aceder ao património cultural disponível e aos instrumentos que este nos fornece;
onde se entende o acto de aprender como um processo que se inicia a partir do confronto, quer entre a realidade objectivável e o conjunto de significados que cada um constrói acerca da mesma, quer entre as experiências pessoais e a estrutura das regras sociais pré-existentes e dos saberes já estabelecidos;
onde não se dissociam as aprendizagens ditas instrumentais do processo de formação pessoal e social das crianças que frequentam aquela escola.”
Uma pergunta de velho me ocorre:
Se os autores dessas linhas – professores universitários – isso concluíam, que interesses obscuros os impediam de agir em coerência com as conclusões dos seus estudos? Porque consentiam que, do chão da escola à universidade, o “sistema” se perenizase?