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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLII)

Quarteira, 23 de dezembro de 2041

Apesar de Portugal receber milhares de imigrantes provindos do Extremo Oriente, da África, do Leste Europeu, a comunidade brasileira era a maior das comunidades estrangeiras. Muitos dos brasileiros residentes eram educadores, que tinham encontrado na Escola da Ponte do início do século a educação desejada para os seus filhos.

De norte a sul do país, muitos dos projetos despontavam, frutos da iniciativa de professores e pais de jovens brasileiros. Sinal evidente de integração social era o fato, por exemplo, de a Presidente da Associação de Pais da Escola da Ponte ser… uma brasileira.

Tenho andado a garimpar umas caixas esquecidas no sótão da casa de Vila das Aves. Entre arqueológicos testemunhos de pedagógicas andanças, encontrei uma velha pen drive, onde guardara “impressões” de uma viagem a Portugal. Pedi autorização à sua autora, para as divulgar. Eis o que a Cléo escreveu, vai para vinte anos:

“Vou falar um pouco das minhas andarilhagem e dos desafios, que me instigaram a mudar de mala e cuia para 7.199,95 km de distância do nosso Brasil. Não sei se, por obra do acaso ou se pura estratégia da Vida, saí do meu país para trabalhar em Portugal, justamente nesse momento crítico, por que passam os brasileiros. Nosso país está como uma nau desgovernada com leme solto. Mas, depois das tempestades, há de vir a bonança, um esperançar freiriano para 2022.

Em breve, vamos voltaremos a sonhar, a comer frango, a ter pão. A poder sorrir, a exercer democraticamente nossa cidadania. Levantaremos a bandeira dos Júlios, dos Henriques, das Lúcias, dos Renes, dos Jeans, dos Krenaks e de tantos outros.

Nesta terra, há 40 anos, um educador juntou-se com duas educadoras e um grupo de pais, e iniciaram um processo de transformação. Me refiro à escola que o  psicanalistaeducador e escritor Ruben Alves se referia:

“Encontrei a escola com que sempre sonhei: a “Escola da Ponte”. Me encantei vendo o rosto e o trabalho dos alunos”. 

Pasmai, leitores! A Ponte é pouco conhecida em seu próprio país. É bobagem! Mas, como diz o velho ditado: “Santo de casa não faz milagres”. Entretanto, é uma das escolas mais visitadas do mundo. O educador Zé Pacheco tem muitos livros publicados mundo afora e nenhuma das obras está publicada em Portugal.

Não irei ater-me na Ponte, mas se faz importante partir dela, para dar continuidade a narrativas luso-brasileiras.

A experiência que estou vivenciado em Portugal em nada se distância da educação que temos no Brasil. Sim, aquela educação bancária do século XIX, representada no “Another Brick in The Wall” dos Pink Floyd. Mas, no hemisfério Sul, acontece uma das maiores transformações educacionais, rompendo o paradigma da instrução, avançando para o paradigma da aprendizagem, alicerçado em escritas e práticas de grandes educadores.

Este prelúdio é um convite para dialogarmos sobre uma nova construção social educacional. Para despertar a válvula motriz chamada curiosidade e o desejo de construir com muitas mãos este sonho. Convido-os para essa partilha e troca sobre Antropogogia e a co-criação de uma Educação Inovadora em Ato.” 

No 23 de dezembro de há vinte anos, educadores éticos se encontraram em Tavira, inaugurando um novo tempo, iniciando a contagem regressiva para o cessar da impunidade.

A Cléo marcou presença nesse encontro do primeiro dia do resto da vida da instituição Escola. E não tardou a embarcar para o seu Brasil, para, com outros extraordinários educadores, ajudar a devolver à escola a sua vocação.

Uma década de mudança e inovação começava nas duas margens do Atlântico.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLI)

Albufeira, 22 de dezembro de 2041

Completam-se vinte anos sobre uma ida a Portugal muito especial. Para além de corresponder a solicitações, que já não esperava, conheci muitos brasileiros, que encontraram no “país irmão” refúgio e reinício de vida. No início dos anos vinte, por lá andava uma brasileira, a admirável Cleo, que assim descrevia as primeiras experiências em terras lusas:

“Desembarquei em Portugal, com o desafio de conhecer por dentro os movimentos da educação na terra das sardinhas, do bacalhau, dos fados, das poesias, das magias, dos castelos, com suas histórias marcadas por lutas, massacres e “conquistas”.

Em Lisboa, dei um saltinho ao Largo de Camões. Não fui lá turistar, mas acompanhar um grupo de crianças da educação básica, juntamente com um grupo de educadores teimosos, que acreditam, como eu, na construção urgente de uma nova educação. 

O início do cortejo se deu na porta da escola. As crianças foram recebidas com a música “Pedra filosofal” de Antônio Gedeão. No violão, o amigo e educador João. Na voz do educador Tiago, seguido do “coro” dessa amiga que vos escreve, do Professor Zé, das educadoras e dos demais “figurantes”, que transitavam pela rua. Até parecia uma cena de filme.  

Pedacinho da música: “(lá, rá, lá, rá, lá, lá) sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança, como bola colorida entre as mãos uma criança (…) não sabem que o sonho comanda a vida)”.

Foi interessante ver pessoas tirando fotos. Outras, gravando no celular, sem entender muito do que ali acontecia, tudo envolto num clima de alegria. Foi um acontecimento, no sentido mais amplo do processo de uma construção viva de conhecimento em ato.  Os olhos dos miúdos brilhavam. Podemos até dizer que iniciamos uma “aula-passeio” do Freinet.

Descrevo aquele acontecimento como um cortejo acompanhado por uma trilha sonora. Lá fomos, rua afora, até ao Largo. Os pequenos seguiam entusiasmados, enxergando outra Lisboa. Abria-se uma outra cidade para eles.  Imaginai para mim!

Na andarilhagem nas ruas, eles iam trocando suas expectativas sobre o poeta, que tinha a sua estátua bem no meio do Largo. Com olhos atentos, os pequenos faziam perguntas, interessados em saber:

“Como Camões perdeu o olho?

Por que tinha uma estátua dele? Ele nem rei era!

Quem o ensinou a escrever poesias?

Por que foi preso?”

Porquês, porquês, porquês… Cada pergunta suscitava outras perguntas, que aguçavam ainda mais a curiosidade e o desejo de pesquisar sobre a famoso personagem. Fazendo um trocadilho com o Krenak: A vida não é útil. A curiosidade, sim! É uma válvula motriz, que move o mundo.

O cortejo não terminou ali. Seguimos para a Travessa das Laranjeiras, lugar simpático e frutífero, literalmente falando. Lá, sentamo-nos sob a sombra das laranjeiras do outono português, um cenário comum nas ruas por onde passei. A válvula da curiosidade foi acionada. E lá veio pergunta:

“Quem deu o nome de Rua das Laranjeiras?”

Continuando o cortejo seguimos para uma tasquinha (pequena mercearia), do avô de uma das crianças, que nos recebeu carinhosamente. Ainda que não entendesse do que se tratava, esses momentos foram reveladores: ainda há quem acredite que o aprendizado se dá dentro de uma sala, ou em grandes caixotes de concreto ou gaiolas, seja lá de que material for?

Tomamos um “galão” e, ali, na pequena e estreita rua, as crianças recebidas com música portuguesa se despediram com música brasileira: “O Sol”, de Vitor Kley. Todos cantando no meio da rua, não como uma despedida, mas com desejo de um reencontro.” 

Se a Cléo autorizar, prosseguirei a transcrição de memórias felizes.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXX)

Arrentela, 20 de dezembro de 2041

No dezembro do já distante 2021, o amigo André isto escreveu acerca da Open Learning School:

“Não é aceitável um modelo educacional em que alunos do séc. XXI são “ensinados” por professores do século XX, com práticas do século XIX”. Esta citação de José Pacheco tem tanto de verdade como de triste. Por trabalhar em educação, a representar os mais prestigiados colégios e universidades do mundo, escolas frequentadas por filhos de presidentes e multi-milionários, tive a oportunidade de poder ver, pelos meus próprios olhos, aquelas que se consideravam como “as melhores escolas do mundo”.

Percebi que o modelo base de educação era o mesmo: instrucionista. A única diferença eram os cavalos, os campos de golfe e de tênis, até cinema 3D. Escolas onde a diferença era que o professor, em vez de licenciado ou mestrado, era doutorado, e, em vez de 20-30 alunos numa sala, tinham 6 ou 8. Eram todas iguais! Alguém debita – os alunos decoram.

Nunca pensei dizer isto, ironicamente. Quando chegou a minha vez, não consegui encontrar escola para os meus filhos. Três anos de estudo e dedicação fizeram-me perceber que a educação parou no tempo. Tudo mudou, menos a educação. Então, em vez apontar problemas, decidi que queria fazer parte da solução.”

Era genuíno e legítimo o desejo do André de criar uma boa escola para os seus filhos. E, também, para os filhos de outros pais, que já tivessem tomado consciência do que seria uma “boa escola”.

Uma revista desse tempo ostentava na capa um sugestivo título: “Conheça as melhores novas escolas para o seu filho”. A mídia usava e abusava dessa ambígua expressão, estava inundada de um marketing digital baseado em “influencers” e falsos especialistas, que recomendavam produtos ou serviços a potenciais clientes… que não passava de publicidade enganosa.

“Novas” não eram. As lousas digitais não eram mais do que quadros negros do século XXI. Aquilo que distinguia uma “boa” escola não era dispor de aula 3D. Esses enfeites pedagógicos apenas davam um ar de modernidade a práticas, cujos avatares eram fósseis – Montessori criara a sua Casa dei Bambini em 1907. Dewey escrevera o seu livro essencial em 1905. Estávamos em… 2021.

E “melhores” em quê? O consumidor leigo considerava “boa escola” aquela que, desde a creche, ocupasse os primeiros lugares de absurdos rankings.

E o que nos diziam os rankings? Assinalavam escolas cujos alunos mais conteúdos aprendiam? Aprendiam, ou apenas debitavam decoreba em prova e a esqueciam?

A memória era esperta, apagava aquilo que não tinha significado. A bem da verdade se diga que, nessas “boas” escolas, quase nada se aprendia.

E as ditas “boas escolas” cuidariam da formação sócio-moral dos seus alunos? Como se explicaria que, entre as élites que as frequentavam, se contassem muitos corruptos de colarinho branco? Quantos conformistas eram produzidos nas velhas e péssimas “boas escolas”, indo ocupar as cadeiras do poder, incapazes de uma postura humanista e inovadora?

Afinal, o que seria uma “boa escola”? Não seria aquela que a todos acolhesse e a cada qual desse condições de ser sábio e feliz, independentemente de ter patrocínio público ou privado? Não seria aquela que desenvolvesse excelência acadêmica e inclusão social?

Seria preciso enjeitar maniqueísmos fúteis, questionar o mito da “boa escola”, pugnar para que todas as escolas a todos garantissem o direito à educação, a uma educação humanizadora.

Pressenti verdade nas palavras e amorosidade na intenção. Isso bastou para que ajudasse o André a fazer uma verdadeira boa escola.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXIX)

Lagos, 19 de dezembro de 2041

Participei da criação do primeiro centro de formação do meu país. Nasceu sob o signo da dissidência, relativamente à formação que, então, se fazia. Realizamos centenas de ações de formação continuada. Mas, nunca o fizemos recorrendo a modalidades formativas instrucionistas, como o curso, os módulos de curso, os seminários, os treinamentos, ou estágios. Elegemos os círculos de estudos e as oficinas como práticas de uma formação isomórfica, adequada aos projetos, que acompanhávamos e que tinham por referência o paradigma da aprendizagem.

E chegou o momento das interpelações:

“O vosso projeto fala sobre os orientadores educacionais, no item 29: “A formação inicial e não-inicial dos orientadores educativos deve acontecer em contexto de trabalho, articulando-se a Escola, para esse efeito, com outras instituições”. Será que poderiam deixar mais claro?”

Efetivamente, “clarificamos”:

“Por detrás de toda a mudança efetuada na Ponte, há um conjunto de reflexões (teoria) que as sustenta. No caso da formação, existe uma dissertação com muitas páginas, que não ouso transcrever, mas de que extraí alguns excertos, que poderão ajudar a responder. Estes excertos têm três defeitos, para além de outros: refletem a realidade portuguesa (bem diferente da brasileira), restringem-se à modalidade de formação que adotamos na Ponte (o círculo de estudo) e estão “datados” (a dissertação foi escrita entre 1991 e 1994). Mas creio que se manterá atual.

“No campo da formação, as iniciativas foram tradicionalmente marcadas por uma preocupação eminentemente técnica. Visavam rituais de atualização concebidos por organismos centrais ou regionais do Ministério da Educação, com recurso frequente a instituições de formação inicial de professores. Os formadores refletiam uma profunda ignorância relativamente a problemas específicos deste ciclo de ensino e escudavam-se, inevitavelmente, na transmissão de conteúdos teóricos.

Estes encontros tiveram uma virtude. Foram oportunidades não desperdiçadas por alguns professores para interpelar a própria formação. Alguns segmentos conjunturais foram, deste modo, abertura para a concepção e desenvolvimento de projetos locais. E se alguns outros projetos foram anulados pela intervenção da hierarquia administrativa, outros houve que resistiram à erosão do tempo.

O modelo acolhe e valoriza a formação nos contextos mutáveis de trabalho, pauta-se pela flexibilização e pela harmonização com a aprendizagem informal. Não distancia a formação dos professores das realidades organizacionais em que os indivíduos atuam e reconhece que a ação educativa é apenas uma das componentes, um dos possíveis momentos de um processo de formação de adultos, e que, per si, uma ação educativa não é automaticamente formadora.

Em outras modalidades, a formação é concebida num espaço isolado dos contextos em que a aprendizagem se desenvolve. Pressupõe que a informação e a formação são dois momentos cumulativamente justapostos, numa linearidade simples.

A oposição entre teoria e prática é ultrapassada por uma praxeologia que confere à experiência um estatuto de fonte de conhecimento, enquanto objeto de reflexão e de produção dos próprios conhecimentos. A formação é um meio e não um fim em-si-mesma. Os professores são mediadores de formação. Passam da valorização do saber à sua partilha, inseridos num sistema social em que detêm competências específicas (…).”

A “clarificação” é texto demasiado longo, para ser transcrito numa só cartinha. A ele voltarei.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXVIII)

Praia Verde, 18 de dezembro de 2041

Nesta cartinha, ainda vos falarei sobre a cidadania que se fazia na Ponte dos idos de setenta, partindo de interrogações de quem nos visitava.

“Os alunos que chegam de um modelo tradicional de ensino costumam não entender a linguagem e a prática da liberdade, que se usa na Ponte. Usa-se a autoridade, e gostaria de saber como isso é realizado. As regras da escola são colocadas logo no início, ou são realizados “acordos”, conforme o comportamento de cada aluno? Existe “premiação”? Como isso se dá na prática?”

Um professor da Ponte respondeu:

“As regras são propostas, debatidas e aprovadas pelos alunos, nas reuniões de Assembleia de Escola. A Mesa da Assembleia e a Comissão de Ajuda são as maiores responsáveis pelo seu cumprimento. Mas, todos se ajudam mutuamente, para que as regras sejam por todos respeitadas.

Não há “premiações”. Se um aluno cumpre as regras, não faz mais que a sua obrigação. O exercício da cidadania é obrigação pessoal e social.

É a autoridade (não o autoritarismo!) que suporta todo o desenvolvimento emocional, afetivo e sociomoral dos alunos. O carinho e a firmeza são administrados em doses variadas e com bom senso.

Como isso se faz é difícil explicar. Só vendo. Para além dos dispositivos e estratégias a que recorremos, a assunção da autonomia condimentada com a solidariedade e a responsabilidade continua, em muitas circunstâncias, a ser um mistério…

Existe diferença entre educar PARA a cidadania e educar NA cidadania. O professor Rubem Alves ficou impressionado com o fato de, nas reuniões da Assembleia, todos respeitarem a vez de o outro falar.”

Outro visitante retomou a questão anterior:

“É assim mesmo? Como é aprender isso? Quais os assuntos mais tratados nas assembleias?

E uma aluna da Ponte respondeu:

“A sua pergunta fez-me refletir muito sobre a filosofia da Escola da Ponte. Para ser sincera, tive algumas dificuldades em formular uma resposta digna de tal pergunta. Na Ponte, costumamos dizer que a Educação deve ser na cidadania, porque todos os alunos são cidadãos dotados de capacidades e de personalidade. O educar para a cidadania parte do princípio de que os alunos ainda não são cidadãos. Preparam-se os alunos para participar nas eleições, mas não participam em assembleias, por exemplo.

O fato de sermos vistos como alguém que, embora seja novo, é já uma pessoa com opiniões e ideias próprias, fez-nos crescer mais depressa e ganhar mais responsabilidade. Isto faz-nos sentir pessoas incompletas, que poderão vir a ser cidadãos, mas que não passam de um projeto disso.

O bom desta escola é que os deveres cívicos nos são “incutidos” de uma forma suave e não através da imposição. Ou seja, quando dizemos a uma criança que tem de fazer isto ou aquilo, ela recusar-se-á devido à sua tendência natural de quebrar regras impostas. Se lhe explicarmos a razão pela qual deve proceder dessa maneira, ela aperceber-se-á da importância de respeitar para ser respeitado. É assim que, na Escola da Ponte, aprendemos os valores que regem a vida em sociedade.

Os assuntos mais tratados em assembleia são, normalmente, relacionados com o funcionamento da escola (responsabilidades, direitos e deveres…)

A Ponte tem um especial cuidado em relação às crianças que vêm de outras escolas. Os orientadores educativos, os funcionários, mas também os alunos já residentes, dedicam bastante atenção aos novos colegas, ajudando-os a ambientarem-se a esta comunidade escolar e, também, aos círculos de amizade já existentes. Assim sendo, julgo que será fácil para os novos alunos a sua iniciação.”

 Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXVII)

Cacela Velha, 17 de dezembro de 2041

No dezembro de 2021, que Natal teriam milhões de brasileiros, que sobreviviam abaixo do limiar da pobreza? No rico Distrito Federal, uma creche comunitária corria risco de fechar as portas, por falta de doações. Sobrevivia, unicamente, de doações da comunidade e cuidava de crianças em situação de risco social.

Num ambiente carinhoso, sessenta crianças ali passavam os seus dias. Ao mesmo tempo que a creche atendia crianças em vulnerabilidade social, auxiliava as famílias, entregando-lhes alimento. A crise econômica provocada pela pandemia comprometera a renda salarial de muitos milhões de brasileiros. Perderam o emprego e a disparada inflacionária dificultava a compra de alimentos básicos.

Muitas pessoas da comunidade, que contribuíam para a manutenção da creche viram-se forçadas a suspender as doações. Mas, embora a instituição tivesse fechado as portas, continuou a oferecer refeições a pessoas da comunidade, que mendigavam um prato de comida. Em 2021, a creche voltou a funcionar presencialmente, oferecendo cinco refeições ao dia: café da manhã, lanchinho com frutas, almoço, lanche da tarde e jantar para as crianças, que voltavam para casa com uma sacolinha de pão, para suprir necessidades básicas.

Escutei protagonistas do drama:

“Um dia, um assistente social veio com a mãe de gêmeos e uma bebê recém-nascida pedindo ajuda e, mesmo sem vagas abertas, nós recebemos os gêmeos e arranjamos um carrinho de gêmeos mesmo, e ela coloca os dois de um lado e a bebê do outro”.

Mãe de cinco filhos, Luciene trabalhava como vendedora nas ruas, para completar o Bolsa-Família, numa luta diária para pagar as contas:

“Para pagar o aluguel, é matando um leão por mês. Para a comida, nós contamos com as doações das igrejas, Casas de Passagem, CREAS, e eu continuo vendendo minhas balinhas, paçocas, picolé, de tudo um pouco.”

Desmaios por fome tornavam-se rotina nas escolas:

“Essa aluna chegou bem atrasada. Ela bateu na porta da sala de aula, eu abri e notei que ela não estava bem, mas não consegui entender o porquê. Passei álcool na mão dela e senti a mão muito gelada, num dia em que não estava frio para justificar.

“Ela sentou e abaixou a cabeça na mesa. Eu estranhei. Perguntei se ela estava bem. Ela fez com a cabeça que estava, mas com aquele olhinho de que não estava. Perguntei se ela tinha comido naquele dia, ela disse que não.

Fui pegar algo para ela, na minha mochila — porque eu sempre levo um biscoitinho ou uma fruta para mim mesma. Mas não deu tempo. Ela desmaiou”.

Era um povo sofrido aquele com quem convivia, nos idos de vinte. A pandemia se aliara uma democracia frágil. E um governo (democraticamente eleito) manifestava-se impotente para deter o flagelo da fome.

Na Brasília do início dos anos vinte, a incompetência coabitava com a corrupção intelectual e moral. Passaria mais de uma década, até chegarmos a um nível de maturidade democrática, que nos permitiria prevenir e evitar dramáticas situações.

Saramago, que exerceu o ofício de escritor com a consciência de um cidadão e a visão ampla de um verdadeiro intelectual, deste modo apontava as raízes do drama:

“Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente, somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto”.

2022 marcaria o princípio do fim de um pesadelo. Nesse ano, se comemorava o centenário do nascimento de Darcy Ribeiro. Em próximas cartas, tentarei descrever-vos acontecimentos desse ano extraordinário.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXVI)

Vila Real de Santo António, 16 de dezembro de 2041

Nos idos de noventa, estando o vosso avô no Conselho Nacional de Educação, coube-lhe redigir um “Parecer” sobre uma proposta de lei. Dessa proposta constava a introdução de uma disciplina e de aula semanal de “educação para a cidadania”. Entre outras considerações, perguntei ao ministério (o autor da proposta) se os alunos só poderiam ser cidadãos uma hora por semana. Na aula de matemática haveria algum exercício de cidadania? E numa atividade extracurricular?

Jamais obtive resposta. As escolas confinaram a ensinagem de cidadania numa aula semanal e uma efetiva educação democrática, cidadã, ficou adiada para as calendas.

Enquanto isso, na Ponte (já cá faltava…) em cidadania se aprendia cidadania. No exercício de uma liberdade responsável, usávamos dispositivos de respeitoso relacionamento. E, todas as sextas-feiras, as crianças realizavam uma reunião de Assembleia.

Alguém nos questionou, nestes termos:

“Gostaria de saber como se dá a organização da assembleia. Os alunos recebem convite formal, ou se organizam espontaneamente? Como vocês conseguem fazer com que o aluno participe?”

Eis a resposta:

“Todas as semanas, a Mesa de Assembleia reúne, faz uma recolha de propostas de assuntos e elabora uma convocatória, informando todos os professores, alunos, pais, funcionários e visitas da hora, dos assuntos agendados e do local onde a reunião da Assembleia se vai realizar.

A participação dos alunos varia em conformidade com o interesse e a forma como os assuntos são apresentados. A Mesa de Assembleia tenta incentivar a participação de cada aluno nas reuniões”.

As ideias são como as cerejas. E logo outra pergunta surgiu:

“Como preparam os alunos para as assembleias? Fico apavorada em pensar que não conseguiríamos que nossos alunos (de colégio…) ouvissem, discutissem.

Estou indo amanhã para SP, passar o dia na Desembargador Amorim Lima. Estudo sobre a Ponte e estas duas escolas, desde o ano passado. Tenho tentado preparar meus professores para a mudança de nossa proposta pedagógica e vocês devem imaginar a minha dificuldade (resistências de toda a sorte). Pergunto: vocês acreditam que seria possível uma mudança gradativa? Ou, como disse a Ana Elisa: “Pensei que poderia, mas de repente, me vi derrubando as paredes!”

Já estou implementando algumas mudanças, mas, às vezes, me sinto impotente diante de tantas dificuldades que o corpo docente apresenta (fiquei aliviada em saber que também a Ponte ainda passa por estes momentos).”

Resposta:

“A Assembleia já faz parte da cultura da escola. Existe toda uma vivência política para a efetivação das assembleias. No início do ano, os alunos passam por uma espécie de eleição, onde devem escolher algumas listas (chapas) formadas por alunos de diferentes idades. Essas listas pensam em propostas, para melhorar a escola. A partir dessa eleição, é formada a mesa da assembleia com o devido presidente. A organização fica a cargo do “Grupo de Responsabilidades”, acompanhado por dois professores. Esse grupo define a pauta, quem será responsável pela ata e refletem sobre as posturas necessárias para o bom andamento das reuniões.

O que podemos aprender com a experiência é a necessidade de espaços democráticos, para que se possa pensar coletivamente. Algumas escolas no Brasil já fazem assembleias de classe, o que é um ótimo caminho. Do que precisamos é de ter a coragem de mudar. Enxergar os desafios enfrentados pela Ponte talvez vos ajude a compreender que ela tem a prática democrática como impulsionadora de mudanças.”

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXV)

Cabanas de Tavira, 15 de dezembro de 2041

Neste mesmo dia, mas no distante 2021, acontecia o último dos encontros das “turmas-piloto”. Dali em diante e até meados de 2023, o vosso avô iria acompanhar projetos saídos de uma longa conversa virtual dos idos de vinte. Prestes a entrar no último dos quatro anos de um tempo-pesadelo, nada poderia continuar como antes.

De tempos pandêmicos, três subsistemas sociais deveriam sair alterados: o subsistema político, que demonstrara total inépcia na gestão de crises humanitárias; o econômico, que não mais poderia manter-se predatório; e o educacional, que estava na base de ambos – durante a pandemia, muita gente morrera, porque as escolas da ensinagem nem sequer tinham ensinado a lavar as mãos.

No início do distante 2022, as sequelas das crises política, econômica, educacional e, sobretudo, sanitária estavam à vista. Conscientes da gravidade da situação social e escolar, centenas de educadores delineavam novos rumos para a educação, adotando a proposta de Darcy de integrar três dimensões de projeto: a educação, a saúde e a cultura.

No distante 2021, a saúde pública passara de precária para trágica. A fome assolava milhares de famílias brasileiras abaixo do limiar da miséria. As mais vulneráveis sobreviviam garimpando restos em caminhões de lixo, procurando ossos descartados.

Uma pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional concluía que 19 milhões de brasileiros passavam fome e mais de metade da população apresentava algum nível de insegurança alimentar. O custo da “cesta básica” era o dobro, ou o triplo da parcela média do Auxílio Brasil, que fora anunciada pelo governo. Era deplorável a situação vivida num Brasil, que aprendi a amar e que me atraía para memórias, que eu recusava. Explico.

Nos idos de oitenta, um sociólogo amigo facultava-me o acesso às teses de doutoramento, que ele havia orientado. Passei longas horas no seu gabinete da faculdade, lendo e relendo, tirando notas, aprendendo. Até que, certo dia, deparei com uma tese sobre a fome, que assolara a minha cidade, durante a ditadura de Salazar.

Enquanto lia a tese, não conseguia conter a indignação e o riso, ao ponto de o Steve me interpelar:

“Por que ris?”

“Porque o que aqui está escrito não corresponde à realidade. E as conclusões estão erradas.”

Desagradado, o meu amigo reagiu, afirmando a boa qualidade da tese. E eu acrescentei:

“Este doutor nunca entrou na comunidade que estudou.”

“Como sabes?” – replicou.

“Porque eu nasci e morei na “Ilha dos Tigres”. Lá, não entrava polícia, nem ambulância, quanto mais alguém que não sabe o que é ter fome!”

Foi grande a surpresa do meu amigo. E perguntou:

“Zé, para saber o que é fome, é preciso passar fome?”

“Não é preciso. Mas… ajuda.”

Nos difíceis idos de vinte, eu sabia o que sentia quem passava um dia sem comida e sem saber se, no dia seguinte, alcançaria alimento.

Recordemos palavras de Saramago:

Ninguém assume suas responsabilidades, muito menos os governos, porque não sabem, porque não podem, porque não querem, ou porque isso não lhes é permitido por aqueles que realmente governam o mundo: as grandes empresas multinacionais, que detêm todo o poder. Não podemos esperar que os governos façam o que não fizeram. Que nós mesmos façamos com que nossa voz seja ouvida, com a mesma ênfase com que, até o momento, temos exigido: o respeito aos direitos humanos.

Tornemo-nos responsáveis por nossas obrigações como cidadãos, sejamos cidadãos, e o mundo talvez possa ficar um pouquinho melhor. Assumamos as responsabilidades que nos cabem.”

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXIV)

Santa Luzia, 14 de dezembro de 2041

A minha amiga Tina era implacável na crítica à desumanização da escola. No tempo da máscara obrigatória, tinha coragem suficiente para denunciar a má utilização, que, então, se fazia das tecnologias digitais.

“Você ainda acredita que a inovação na educação virá da tecnologia? Gamificação para ajudar na decoreba de conteúdos fragmentados é inovação? Lousa digital para o professor, o detentor do saber, expor sua sapiência é inovação? Aplicativo de apostila digitalizada é inovação? Plataforma digital conteudista é inovação? Tablet para o aluno (subserviente) seguir o roteiro elaborado pelo professor (protagonista) é inovação?

Mesmo depois de importantes avanços tecnológicos na educação, continuamos com a mesma base pedagógica, pautada no Paradigma do Instrucionismo, com processos sequenciados por apostilas, que padronizam o que as crianças aprendem, o método e o ritmo que todos devem seguir, com volumes enormes de conteúdos fragmentados, para serem decorados e reproduzidos em provas que testam a memória do estudante.

O que vemos é a digitalização das velhas práticas pedagógicas. Uma aula com quadro verde e giz foi transportada para uma lousa digital. A apostila foi digitalizada e animada, mas continua sendo um instrumento padronizador. Uma sequência de exercícios foi gamificada, mas mantém a função de estimular a decoreba de conteúdos.

A maior revolução na educação não será tecnológica, mas pedagógica. Precisamos libertar a educação das amarras do Instrucionismo e atuar no Paradigma da Aprendizagem e da Comunicação. A tecnologia precisa ser uma aliada desta revolução pedagógica e parar de ser uma maquiadora das velhas práticas.

Como disse meu amigo Ricardo, “não podemos cair na digitalização do tradicional”.

Na outra margem do Atlântico, o Zé Morgado comentava o difícil processo de “transição digital”. Demonstrava surpresa perante a relutância de muitas famílias relativamente à entrada nos seus lares das famigeradas “aulas online”.

“Em diferentes agrupamentos e escolas, muitas famílias de alunos identificados como necessitando de equipamento para acesso ao ensino presencial e integrando, naturalmente, os escalões mais carenciados no âmbito da Ação Social Escolar, não procederam ao seu levantamento, nas escolas.

Estes equipamentos foram colocados à disposição das escolas pelas autarquias e por entidades particulares. Numa situação completamente atípica, que não terá um fim próximo, e numa perspectiva de proteger a equidade claramente ameaçada, a situação deveria ser repensada, de forma a que as famílias pudessem ultrapassar eventuais razões para o seu não levantamento.

Temos pela frente uma gigantesca tarefa de recuperação de aprendizagens não realizadas, de recuperação de alunos que perderam na distância a que ficaram da escola, de recuperação do impacto negativo e significativo que estes meses de confinamento sem escola terão causado.

O deslumbramento com o novo mantra, transição digital, ainda terá que gerir situações como estas.”

O amigo Zé atribuía a “recusa de muitas famílias de usar os equipamentos” ao fato de elas virem a ser obrigadas à sua devolução, após a conclusão do ano letivo, e de serem responsabilizadas pelo estado dos equipamentos.

Hoje, sabemos que o Zé estava equivocado. No tempo em que se andava mascarado, já havia robôs exportando conteúdos a granel. E a rejeição talvez constituísse um ato de amor. Intuitivamente, talvez as famílias estivessem a proteger os seus filhos de uma “digitalização do tradicional”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXIII)

Tavira, 13 de dezembro de 2041

Mais uma vez… em Tavira. Quando o vosso avô aqui esteve, nos idos de setenta, a cidade era palco de um drama, que ameaçava a minha geração. O espectro da morte na guerra colonial pairava sobre a cidade. Mas, Tavira também foi lugar de bem-estar, dado que o vosso pai a escolheu como lugar de viver e ser professor. São gratas as recordações que guardo dessa cidade. Vezes sem conta, deambulei pelo bairro árabe. Na ponte românica, contemplei belos entardeceres. E, sempre que pude, fui até Cacela Velha. Dela vos falarei, em breve.

A estas velhas boas recordações se juntaram, hoje, outras recordações, contidas em mensagens quase esquecidas numa velha pen drive.

Em finais da segunda década deste século, a Cecilia compartilhava lembranças. Seria pecado não as transcrever, não vos dar a conhecer sensíveis palavras. O farei, como singela homenagem a uma extraordinária educadora.

“Quando iniciamos nossa reconfiguração, em meados de 2017, um aspecto que chamou a minha atenção foi o desinteresse das crianças pelos livros. Eu sou uma apaixonada pela literatura, autora de livros infantis e não via motivação nos pequenos em ouvir, ou ler histórias.

Partimos para a organização da biblioteca, que se tornou o lugar mais colorido e acolhedor da escola. Colocamos em prática um grandioso projeto de Leitura. E, vendo o encantamento das crianças, lhe demos continuidade, em 2018, com novas ações e propostas.

Certo dia, estávamos todos no pátio da escola, nos preparando para irmos embora, e uma pequena com seus oito anos veio até mim e disse:

“Tia, estava te procurando”.

Eu respondi:

“Oi, minha linda. Está precisando de alguma coisa?”

“Não, tia! Só queria te contar uma coisa. Sabia que lá em casa eu e as meninas estamos fazendo uma biblioteca?”

Não consegui conter um sorriso de satisfação e curiosidade.

“Sério? Que incrível! Como vocês estão fazendo?”

“Ah, Tia! A gente juntou aqueles livros que a gente tem da Catarina e mais uns papeis e cadernos, e colocamos numa mesinha. E, lá, a gente brinca de biblioteca e de escola.”

Eu respondi, ainda mais entusiasmada:

“Que legal! Os livros que vocês ganharam! Vou ver se tenho mais alguns para vocês!”

“Oba!!! – ela respondeu.

Eu e a pequena grande menina nos abraçamos e despedimos:

“Tchau Tia!”

“Tchau, querida! Vai com Deus! Boa leitura, hoje!

Ela olhou para trás, sorriu com olhos e disse:

“Vou falar para a Tia Jéssica mandar uma foto da biblioteca para você!”

“Ah! Vou adorar!”

Saímos da escola mais esperançosas, nesse dia, por se comprovar como nossas ações, bem planejadas, faziam, de fato, a diferença na vida das nossas crianças. Os livros que a incentivaram a fazer a sua biblioteca pessoal foram entregues a estas crianças em março desse ano, na Campanha dos Padrinhos Literários e causava transformações como essa.

A tia Jéssica tinha na sua casa dez crianças entregues aos seus cuidados. Então, foram dez livros recebidos na Campanha, cada criança recebeu o seu. A menina alimentava a esperança de receber mais livros e ampliar sua brincadeira em casa: a brincadeira de ler. Quer coisa mais linda?

Em casa, já bem à noitinha, recebi a foto que a Tia Jéssica me enviou, com a seguinte legenda:

“A biblioteca das meninas está desarrumada, pois elas arrumam todo dia na lavanderia, mas, quando chove, molha e aí eu tiro de lá.”

Eu nem sei o que senti, tamanha esperança em um mundo melhor! Cheio de livros, cheio de práticas educacionais significativas, cheio de afeto!

“Obrigada, pequena Kemilen, por esta dose de vida em minha vida!”

As mensagens da minha amiga Cecília eram educação em estado puro.

Por: José Pacheco

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