Tavira, 8 de maio de 2041
Queridos netos, esta cartinha não é minha. Melhor dizendo, sou eu quem a envia, mas não sou o seu autor. Transcrevo uma descrição feita por uma extraordinária professora participante do Projeto 115 Norte. A Marina assim refletia, em tempo da pandemia:
“Alarme toca. Abro os olhos. Preciso ir à escola. Que ânimo tenho? Enfrentar e viver mais um dia em um paradigma instrucionista. Que sentido tem? Desisto? Sigo? O que faço? Me troco, já em uma nova energia.
Recebo as crianças. Medo! A escola fez com que as crianças sentissem medo. As vejo trancadas em suas falas e expressões, poucos gestos. Silêncio. Não é só um medo resquício de uma pandemia. Verificava um medo diferente, era um medo de aprender. Era um medo mais profundo, de anos de castração.
Com algumas turmas aquela sensação não era tão evidente. Eu via naquelas expressões anos de repreensão. Treinadas a aprender no medo. No desprazer. Era essa a lembrança que teriam da escola, o que mais poderia eu esperar? O que mais poderia esperar que elas trouxessem após tanto tempo sem ir à escola?! Qual seria a última e maior lembrança das vivências na escola daquelas crianças? O que iria eu esperar que elas pudessem manifestar, muitas vezes de modo mais sútil, outras, de modo mais evidente?
Iniciei com uma música, depois fizemos uma respiração. Precisava de maneiras de destravar toda aquela tensão. Em dado momento, após ir me guiando por um impulso intuitivo, mostrando a elas que estava ali por amor e não para colocar mais medo! Eu estava ali, inteiramente! Parecia tão difícil lhes mostrar isso. Elas tinham medo de mim! De mim! Voz mansa, calma, amorosa, paciente, embora firme…
Fiz, enfim, a inestimável pergunta, que tirava de mim aquela figura medonha de autoridade e colocava nelas o centro de poder:
“O que vocês querem aprender?”
Eu vi olhares surpresos. O que essa professora está a dizer?
Anotei na lousa a pergunta, em letras grandes. E repeti, firme e amorosa:
“O que vocês querem aprender? Eu quero aprender sobre vocês, estou curiosa, me digam, o que vocês querem aprender?”.
Silêncio.
As crianças não poderiam responder a pergunta tão séria. Antes, elas não tinham sido levadas em conta. Estranhamento.
“Alguém já ouviu essa pergunta?” – perguntei, já sabendo a resposta.
Responderam:
“Não, professora.”
Aqueles “nãos” iam saindo um por um. O segundo “não” fora copiado do primeiro. E o terceiro copiou do segundo. Um por um, copiando uns aos outros. Sentia um leve ar de tristeza naquelas vozes, mas de ainda surpresa. E disse:
Pois é. Agora, eu quero partir de vocês. Vocês são únicos! E nunca poderão se comparar a ninguém! E eu não quero alunos copistas. Estamos aqui a pensar. Vamos pegar o caderno? Estaremos aqui a fazer indagações. Eu não tenho nada a responder a vocês. São vocês que me guiam e eu vos guio. Serão vocês a responder. Estou aqui a aprender. Como vocês.
Vamos aprender esse processo. Não sintam medo de mim. Falem. Se expressem!”
Puxei a cadeira. Eu ao lado deles. Não lá na frente, no alto, a falar. Ambos, lado ao lado. A nos ajudarmos. Eles já se sentiam mais confortáveis. Estavam bem “obedientes”. No início, era uma sala de aula morta. Só eu falava.
Por tratar-se de uma pandemia, me sentei a alguns metros de aluno por aluno, fazendo a amorosa pergunta e rompendo o clima de medo. Comecei a ouvir, voz por voz, ser por ser, as suas vontades, os seus desejos. Algo acontecia ali.
Iniciamos um primeiro roteiro. Senti que era uma retribuição àquilo tudo que aconteceu no dia 4/05/2021, em uma sala de aula municipal, em Ubatuba. Aqueles alunos não eram mais os mesmos. Nem eu!
Por: José Pacheco