Registro, 18 de agosto de 2040
Quando já tinham passado vários anos sobre o dia em que entreguei um macinho de cartas a uma Alice, que, entretanto, aprendeu a ler e se fez psicóloga, me perguntaram por que escrevia cartas e dicionários.
Esclareci o sentido das passagens mais rebuscadas das cartas e me penitenciei do recurso a vocábulos de código elaborado. Daí em diante, não mais escreveria com nota de pé de página, ou rodapé. Passei a evitar o recurso ao jargão científico porque, não raramente, ele tinha servido para pseudocientistas da educação ocultarem ignorâncias,
Em 2040, as cartas que vos envio são sementeiras de palavras com visibilidade pública, para encurtar o fosso entre saberes e fazeres. Aquelas que, na vossa infância, vos enviei foram as mais difíceis de compor. Escrever para adultos é fácil. Difícil é explicar a uma criança – em linguagem de gente, claro está! – o sem-sentido da Escola que tivemos até aos anos vinte deste século.
Em meados de 2020, convidei alguns amigos, que açoitavam os ancestrais hábitos de uma escola obsoleta, para participar nu projeto de criação de redes de comunidades de aprendizagem. Para uma nova construção social de aprendizagem seria necessária uma nova nomenclatura. E ensaiei a feitura de um glossário. Acumulei tantas e tão díspares explicações, que deliberei anexá-las a um dos meus livrinhos, que dava pelo longo título de “Inovar é Assumir um Compromisso Ético com a Educação”.
Cito de memória apenas um dos verbetes desse glossário, composto numa linguagem que todo mundo entendesse: “Escolas não são prédios; escolas são pessoas aprendendo na intersubjetividade, isto é, umas com as outras, numa relação mediada pelo mundo”. Prometo que, se eu encontrar o velho livrinho sobre inovação, vos enviarei o glossário inteirinho.
As crianças do nosso tempo surpreendem-se quando deparam com um mestre fóssil – ainda os há por aí… – e, respeitosamente, dirigem-lhes perguntas fundadoras de qualquer reflexão sobre a Escola. Perguntas que, em recuados tempos, poucos ousavam fazer, por quase todos se terem esquecido de que também tinham sido crianças, que também haviam passado pela idade dos porquês.
Nessa idade ficastes, porque os vossos professores não vos proibiram de perguntar, ninguém vos destruiu a curiosidade. E ainda fazeis perguntas de bom senso, questionando escolares e arcaicos usos e costumes:
É verdade que, antigamente, as escolas tinham campainhas penduradas nas paredes?
É verdade.
E para que serviam as campainhas?
Como se poderá explicar a um ser inteligente aquilo que não tem explicação? Poderão as crianças de hoje acreditar que, nas escolas de antigamente, alunos e professores andavam a toque de campainha? Será possível que entendam ocultas razões, pelas quais havia um toque para ir para a aula de Matemática, outro toque que mandava ir para a aula de Português, outro que reencaminhava corpos para o recreio?
Pensando em voz alta, murmurei a palavra “aula”. Logo uma criança perguntou:
O que eram “aulas”?
Depois, eu explico… – respondi, tentando ganhar tempo, pois não estava certo de conseguir explicar. Nesse tempo, como hoje, torna-se muito difícil explicar o sentido de velhos artefatos como “aula”, “tempo letivo”, “aula online”, “ensino híbrido” ou “carga horária”.
Está bem, depois tu explicas. Olha que eu não me esqueço! Mas juras que é mesmo verdade que, quando as campainhas tocavam, os meninos tinham de entrar, ou sair, ou chegar, ou ir embora?
É verdade.
Mesmo que não lhes apetecesse ir embora?
Sim. Mesmo que não quisessem ir embora.
Por: José Pacheco