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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXXIII)

Engenho de Dentro, 28 de julho de 2040

Já não me recordo de quem terá escrito que, junto com Anísio Teixeira, Freire, Darcy e Lauro formavam o quarteto mais fecundo, fértil e injustiçado da história da educação em nosso país, mas sei que li algo assim. E não eram apenas estes os injustiçados. Temos registros de muitas e muitos mais injustiçados. Como a Nise…

O Sartre dizia haver dois tipos de pessoas que diziam a verdade: as crianças e os loucos. E, nos idos de vinte, para obstar à sadia loucura, os loucos eram internados em hospícios, enquanto as crianças eram sequestradas em salas de aula. Jovens guetizados, na mesma sorte dos velhos confinados em lares da terceira idade ou estupidificando-se, frente a um televisor. Naquele tempo, os verdadeiros loucos andavam à solta e os netos eram separados dos avós em tenra idade.

A salutar criatividade da infância era cerceada pela louca velha escola. Mas a “busca da verdade e da beleza são domínios em que nos é consentido ficar crianças toda a vida”, como nos dizia o sábio Einstein. E as pinturas dos considerados loucos, nos quais a Nise reconheceu genialidade, deram origem a um belo museu, prova de que nem tudo estava perdido.

Pela mão do meu amigo Vítor, fui até ao Engenho de Dentro, onde o Hotel da Loucura provava ser possível, em imprevistos e improváveis lugares, retomar o rumo perdido da humanização, concretizar utopias.

No discurso sobre educação, a palavra utopia era sinônima de impossibilidade. Mas, como diria o Quintana, “se as coisas são inatingíveis… ora! / Não é motivo para não querê-las”. Concretizar utopias – recriar vínculos, rever e re-olhar, reelaborar as práticas – reconfigurava a metáfora do Mito de Sísifo, o “inédito viável” freiriano. A nova educação, que emergia do sonho de todos nós, deveria formar o cidadão democrático e participativo, o ser humano sensível, solidário, amoroso.

Todas as teorias já estavam escritas. Importava renovar a denúncia da guetização da juventude, a par com o anúncio da possibilidade de uma aprendizagem transformadora. Nunca seria demasiado afirmar a possibilidade de uma escola na qual os aprendizes aprendessem a lidar com um conhecimento mutante, na busca da integração das diversas dimensões do humano “para garantir condições de se atribuir novos sentidos à existência e atender a necessidade do engajamento do sujeito na construção do futuro”, como diria uma Nise, que um tal Carl Jung admirava e desejava conhecer.

Então, como entender a pressa na decisão de, ainda em plena pandemia, remeter a infância para dentro de muros? O que se aprendia dentro de um edifício escolar, que não pudesse ser aprendido fora dos seus muros? Quase nada! Os decisores não sabiam que o espaço de aprender era todo o espaço, tanto o universo físico como o virtual, e a vizinhança fraterna. O modelo escolar não era o único modelo de educação. E esta deveria ser pensada mais a partir das comunidades que servia, do que a partir da instituição.

Urgia que os “paidagogos” não mais conduzissem as crianças da comunidade para a escola, mas que as libertassem da reclusão em guetos escolares e as devolvessem à comunidade. A recuperação de vínculos afetivos, seria início de cura das enfermidades sociais, como dissera a Nise: “O que cura é o contato afetivo entre uma pessoa com a outra. O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito”.

Nos anos trinta, chegaria o tempo do despontar da claridade, que pôs fim à loucura. Tinha chegado o tempo de, à semelhança do Jung, o Brasil (finalmente!) encontrar a Nise.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXXII)

Caldas Novas 27 de julho de 2040

No meio do internético entulho, achei um textinho com um título bem sugestivo: Um momento para recriar a educação”. Com a devida vênia reproduzo breves passagens, pois o seu início é auspicioso.

“Podemos estar prontos para acolher o imprevisto, as mudanças de rota, as incertezas e as dificuldades, mas temos que concordar que diante da atual situação, que o coronavírus trouxe, quase todos os paradigmas usuais e conhecidos foram quebrados.”.

O textinho é auspicioso até sugerir a transferência do instrucionismo para o virtual…

“A única ferramenta que temos disponível atualmente é o ensino a distância. Os canais on-line, as plataformas, os sites, as redes Facebook e WhatsApp e as vídeo chamadas. Frequentemente criticados no passado recente, hoje se tornaram nosso principal recurso, para manter relacionamentos e superar a sensação de isolamento”.

Depois, apesar de manifestar alguma ambiguidade, retoma o rumo inicial.

“Porém, precisamos manter claro o significado, a intenção profunda de quando usamos essa forma de ensino – que é manter vivo nos alunos o sentimento de pertencer à comunidade escolar, suprir a necessidade de estar juntos, de compartilhar, de sentir-se parte de um grupo, possibilidade de encontro (…) de troca e de escuta, para romper a solidão e o isolamento”.

Como referi, da tralha mercadológica, que poluía a virtual comunicação, emergiu esse exercício de algum bom senso. Porém, maculado pelo pressuposto de que só havia um caminho a seguir, o da ensinagem.

O Piaget escreveu que a educação era a única área das ciências humanas em que todo mundo se considerava especialista. O autor do textinho era formado em marketing e empreendedor na área de tecnologia. À semelhança de outros marqueteiros, confirmou a piagetiana afirmação. Para esses gurus do digital, as ciências da educação eram ciências ocultas. Mas atreviam-se a escrever livrinhos com sugestivos títulos, como “A educação do Século XXI”, reificando a inteligência artificial no monitoramento dos padrões de preferência cerebrais de estudantes – “Big Brother is watching you!”.

Três possíveis cenários pós-pandêmicos se apresentavam. O mais provável seria o “regresso à sala de aula”, que, desde há dois séculos, era causa da hecatombe escolar. O segundo era assustador: a manutenção do instrucionismo geminado com o digital, o da tecnologia ao serviço de grandes empresas do ramo da educação. O terceiro eventual cenário seria o da concepção de uma nova construção social de aprendizagem. A harmonização do presencial com o virtual aconteceria no contexto de territórios educativos compostos de “círculos de vizinhança” autônomos e com acesso à Internet.

Os aprendizes de feiticeiro do instrucionismo digital não conseguiam entender que a coexistência do presencial com o virtual aconteceria num casamento perfeito. Após um divórcio, claro! Um divórcio que augurava ser litigioso, entre uma nova escola e o velho e esclerosado sistema de ensinagem.

Em finais de julho, a mercantilização da educação impunha-se, agressiva, disfarçada de internéticas “comunidades escolares”. Nessas “comunidades”, contemporâneos dos marqueteiros do digital surtavam, por terem deixado entrar nos seus lares a internética sala de aula. E as escolas particulares faziam carreatas, exigindo o “regresso às aulas”…  presenciais.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXXI)

Jussara, 26 de julho de 2040

Nos idos de vinte, um relatório da UNESCO lembrava que a pandemia revelou que vivíamos num mundo frágil, complexo e inseguro. Num cenário de total imprevisibilidade, que decisões deveriam ser tomadas, que afetassem a vida em comum? Dever-se-ia voltar ao prédio da escola, em agosto ou em setembro, com focos de infeção ainda ativos?

O bom senso e o respeito pela Vida aconselhavam que o não fizéssemos. Mas, já havia anúncios de “regresso às aulas” marcado para esses meses. Artifícios vários serviam de argumento: funcionamento por turnos, turmas reduzidas a metade, contratar mais professores, não permitir contatos no recreio, eliminar intervalos, aumentar as atividades online… Consciente dos riscos e do ridículo desses e de outros remendos instrucionistas, um diretor de escola manifestava preocupação:

“Espero que não estejam a brincar com a saúde das crianças!”.

Qualquer justificativa servia para viabilizar um precoce “regresso às aulas”, até mesmo radicais propostas como despedir professores e usar robôs, ou substituir auleiros por inteligência artificial: “Há sempre a hipótese de fazer somente ensino on-line. A manterem-se os atuais números de infectados, seria única hipótese inteligente”.

O debate nada tinha de “inteligente”, não ultrapassava o limite da indigência mental: “Agradeço a explicação gráfica mas devo dizer-lhe que é muito ingênua e ineficaz, para provar o seu ponto de vista. Ponto 1. Os utilizadores estão de costas e não há, portanto, possibilidade de contágio (saliva). Ponto 2. E se as mesas, em lugar de em fila, estivessem desalinhadas? Seria possível assegurar a manutenção da distância de um metro entre alunos, obrigados a olhar para o quadro, sentados sozinhos em mesas duplas?”

Estapafúrdias propostas e míseras sugestões de especialistas de ocasião aconselhavam que, nas salas de aula, onde se havia colocado as mesas em círculo, se retomasse o enfileiramento, para que os alunos não ficassem com dores nas costas de olhar para o quadro, nem “corressem o risco de poderem ficar virados uns para os outros, a respirar na cara do outro” (sic). Aventava-se a hipótese de reduzir o número de alunos por turma ou optar pelo desdobramento em três turnos. Mas, “especialistas”, os administradores e os gestores não ousavam alterar programas informáticos, que haviam organizado horários e turmas, nem conseguiam pensar soluções fora do prédio da escola, ou para além do modelo instrucionista.

Era urgente encontrar soluções de rentabilização de espaço, porque, por imperativos de ordem economicista, o regresso à indispensável escola presencial não poderia ser adiado. Mas, como assegurar equilíbrio entre a aprendizagem, a educação, a saúde e a segurança, em tempo de pandemia? Como não agir leviana e displicentemente, não criar situações de risco para alunos, famílias e profissionais do desenvolvimento humano?

Queridos netos, permiti que, mais uma vez, recorra às metáforas. Porque, neste início da década de quarenta, ainda me custa pensar que tudo isso aconteceu. Precisamos de duas décadas de porfiados esforços, para reconfigurar a escola e refundar a educação, para a todos garantir o sagrado direito à educação.

Então, metaforicamente, vos digo que, nos anos que sucederam aos dramáticos acontecimentos, que venho narrando, as gaivotas que sofreram o fustigar das asas por ventos contrários aprenderam no canto das almas sensíveis a arte de voar contra ciclones e tufões, sem esquecer que o importante não é a velocidade, mas a direção e o sentido do voo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXX)

São Gabriel de Goiás, 25 de julho de 2040

Na última das cartas para a Alice, eu vos dizia que ela marcaria o reinício da vossa história de vida. A vida é uma história sempre inacabada, poderemos conferir-lhe diferentes desenlaces, poderíeis dar-lhe quantos diferentes desfechos lhe quisésseis dar. Bastaria que não vos confinásseis nos estreitos limites do entendimento das coisas e dos seres desse tempo da proto-história da humanidade.

Para que entendais esse tempo feito de medo e solidão, deixo-vos com mais alguns excertos do Manifesto da Denise. Para vos dizer que havia educadores que cumpriam a Vida, dando-lhe sentido. Que se respeitavam, que preservavam a sua dignidade pessoal e profissional, que propunham novos rumos para a sua Vida e a dos outros. Eis o que proclamavam:

“Pela existência palpável da vida, queremos a revolução dos Sem Medo. Queremos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos seja. Caminhamos… Quase nunca somos ouvidos. Vivemos através do que dizem que devemos fazer. Adote esse livro. Siga essa apostila. A orientação da escola diz que está na hora de realizar provas. Mas nunca perguntamos: Qual o sentido dessa escola? Qual o sentido desse currículo, dessas provas, desses horários? Nunca perguntamos: qual o meu sentido de estar aqui, nesse momento presente, histórico, apenas observando a crise humanitária, que 2020 está desvelando.

Temos a ciência, mas codificam como magia. A transformação permanente do tabu em totem, da Verdade em mentira. Quem merece passar de ano? A fixação no progresso por meio do “ele vai precisar disso no futuro”…

É a mentira muitas vezes repetida que nos amedronta. Cadê a vacina contra as escleroses urbanas, contra a pseudo Educação? As ideias reagem, queimam a gente por dentro. A nossa independência ainda não foi proclamada!

Caros colegas, estamos fazendo esse chamamento: #semmedodedizernão! É uma campanha que pretende fortalecer Professores e Professoras a se declararem contrários ao retorno às aulas, nesse momento. Já deixamos passar tempo demais sem nos posicionarmos”.

Fazendo eco dessas palavras, regresso, não ás aulas, mas às metáforas…

Nesses conturbados tempos da pandemia, um rouxinol de nome Góis – não é aquele em que estais a pensar e que a Santa Inquisição assassinou, mas um seu homónimo mais discreto – cantava que não se vendem certas estrelas, nem dunas de areia… Por sabermos isso, o silêncio que nos pudessem impor cantaria, num secreto jardim, melodias imperceptíveis aos ouvidos dos pássaros sem alma.

Por falar em jardim e daquilo que de dentro dele vem, veio-me à memória um conto escrito pelo Óscar sobre um pássaro que voou acima das palavras habituais. Falava-nos de um rouxinol que, num infausto instante, escutou a voz de um adolescente apaixonado, que reclamava uma rosa vermelha para oferecer à sua amada.

O rouxinol voou, urgente, em busca da rosa encarnada, sem lograr encontrá-la. A roseira queixou-se de que o Inverno lhe gelara a seiva e lhe queimara todos os botões. Apercebendo-se da imensa bondade do pássaro, disse-lhe que seria possível transformar uma rosa branca em rosa encarnada. Bastaria que o rouxinol aceitasse tingi-la com o seu sangue, deixando que um espinho lhe trespassasse o coração, enquanto cantasse o derradeiro canto. Seria o sangue da avezinha que, saciando a sede de cor daquela rosa, a iria carminar.

O Óscar Wilde era mesmo… “wild”. E, na puritana época em que viveu, sofreu as consequências da sua ousadia, quase teve o destino do rouxinol. Mas, não vos contarei o desfecho dessa estória. Inventai-a!

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXIX)

Pirapora, 24 de julho de 2040

Por meados de julho, um pitoresco episódio me trouxe à memória situações do mesmo tipo, vividas no Portugal de meados do século passado. Um desembargador, que passeava sem máscara protetora, rasgou a multa passada por um guarda municipal. Não fora bastante o despropósito, ainda ofendeu o cioso defensor da lei. Creio que lhe terá chamado “analfabeto”.

Ocupando um sórdido segundo lugar do ranking dos países onde a desigualdade social prevalecia, o Brasil assistia a infames situações de afirmação de ostensivos status sociais.  O desembargador agiu como se pertencesse a uma casta herdeira de privilégios materiais e simbólicos, quando deveria agir como se esperaria que agisse um servidor público.

Um médico e biólogo chamado Jacques, descobriu que, para além de genes biológicos (físicos), genes culturais se transmitiam de geração em geração. Atitudes racistas ou classistas passavam de pais para filhos, a cultura era como que o último estágio da biologia. O homem, enquanto animal social, era uma inteligência colaborando com outras inteligências, nos seus quatro bilhões de cérebros comunicantes e a cultura era o conjunto de comportamentos aprendidos. Esta e outras descobertas científicas convidavam a conceber uma nova ordem mundial, acima de limites artificiais, que confinavam a humanidade na animalidade. Urgia superar oposições derivadas do egoísmo de classe, nacional ou individual.

Mas, era pesada a herança cultural feita de séculos de escravagismo e coronelismo – a praga das castas sociais, políticas, religiosas, se reproduzia. Genética cultural, certamente, também fruto de um obsoleto modelo de educação familiar, social e escolar. Em finais do século passado, presenciei uma cena, que ilustra este meu arengar…

Duas viaturas colidiram numa rotatória. Por lei, a prioridade pertencia ao carro que contornava a rotatória, porém, a motorista causadora do acidente afirmava que não era sua a responsabilidade pelo sinistro.

Serenamente, o sinistrado argumentava com o código de estrada, pedindo à causadora do acidente os dados para entregar ao seguro automóvel. A senhora recusou dá-los, zombando do fato de o motorista ser trabalhador da construção civil. E, quando, pela enésima vez, respeitosa e pacientemente, ele repetiu o pedido, a senhora gritou o estribilho habitual:

Você, por acaso, sabe com quem está a falar? Eu sou diretora escolar! Eu sou doutora! Ouviu? Eu sou doutora e os doutores têm prioridade em tudo!

Acreditai, queridos netos, que foi mesmo isso que a “doutora” disse. Se o Brasil de novecentos tinha sido um “país de barões”, o Portugal de meados do século XX ainda era um “país de doutores”.

Sempre me avisavam, bem me diziam para não abordar “assuntos-tabu”. Mas, o desassossego derrotava a prudência. No quarto mês de isolamento social, enquanto 9 milhões de brasileiros passavam fome e sofriam outras privações, por terem o seu salário cortado, congressistas recebiam antecipação de metade do 13º…

Naquele tempo, subsistiam repugnantes castas., também no sistema de ensinagem. Havia ensino “superior” e ensino “inferior”. Havia ensino “público” e ensino “particular”. Este era “superiormente” considerado. Enquanto o particular “regressava às aulas”, as escolas públicas, as do ensino “inferior” não tinham previsão de retorno ao presencial.

A administração escolar nada tinha aprendido com a pandemia e forçava o “regresso às aulas”, um regresso à mesmice produtora de castas e reprodutora de desigualdade.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXVIII)

Santo Antônio do Descoberto, 23 de julho de 2040

Queridos netos, nos idos de 2000, entreguei-vos um montinho de cartas, com a recomendação de que, quando a decifração dos códigos da linguagem dos homens vos permitisse, as irieis ler e sobre elas refletir. Na última das cartas, disse-vos que ela não seria o fim das estórias. Retomei a sina de avô contador, quando um vírus nos remeteu para o único modo de comunicar: o virtual.

Aconteceu que, por meados de julho do distante 2020, mais de oitenta mil vidas brasileiras haviam sido ceifadas pelo vírus. Os técnicos de saúde apelavam ao lockdown, à paralisação dos fluxos de deslocamento, a que as pessoas não se aglomerassem, enquanto mesquinhos interesses economicistas reclamavam o… regresso às aulas.

Também havia quem preferisse outro refrão, o “voltar à escola”. A que “escola se refeririam? Lá do Chile, o amigo Juan assim a definia: Quando se diz ”uma escola”, em geral, se refere a um lugar onde há salas de aula, turmas, um lugar onde se dão as aulas.. Mas o que caracteriza uma escola não são estas coisas. O que caracteriza uma escola é a sua forma particular de existir. O tipo de escola é dado pelo fluxo de interações entre as pessoas. Notemos que o fundamental nessa noção de escola é a ideia de que os seus elementos constituintes não são objetos, mas sim pessoas (…) o que permite que se pode dizer que é uma escola é dado pelo padrão de interações intersubjetivas. O fenómeno escola emerge do padrão de interações humanas.

O Juan ocupara postos de elevada responsabilidade em ministérios e na UNESCO. A sua sabedoria era inquestionável. Os desgovernantes da educação talvez não tivessem lido os seus livros e, por isso, impusessem o “regresso às aulas”. Entretanto, neste lado da cordilheira, vozes avisadas se levantavam. A minha amiga Denise manifestava a sua preocupação:

“Olá, meu caro amigo! Não sei se você lembra de mim. Você foi duas vezes ao nosso Colégio, uma cooperativa de educadores e que acabou… acabando”.

O projeto dessa excelente educadora tivera o mesmo destino de muitos outros projetos com potencial inovador. Mas a Denise não era pessoa de desistir:

“Você pode ajudar divulgando a campanha, ajudar a divulgar entre os professores”.

E juntava ao e-mail o “Manifesto pela Educação sem Medo”, descaradamente baseado no Manifesto Antropofágico do Oswald de Andrade, porque, cem anos decorridos, o essencial desse Manifesto mantinha atualidade:

Só o medo nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos. Ter ou não ter. Essa é questão! Contra todos os medos! E contra a mãe da Hipocrisia. Só interessa que eu não me perca. Estamos fatigados de todos os medos postos em drama. Medo de perder o emprego. Medo da diretora. Medo do dono do colégio. Medo de perder minhas gratificações. Medo de viver. É chegada a hora de perder o Medo e dizer Não!

Por que razão se deveria voltar para um prédio de escola, sem garantias de preservação da vida? Os professores deveriam “regressar às aulas”, ou partir para uma nova educação?

Metaforizando… foi natural, doce, terno, o modo como a escola do vosso pai-professor vos acolheu. Mas, para que pudésseis ir à escola sem medo, muitos foram os pássaros que sofreram a dor de um tempo em que as gaivotas se condoíam de ver jovens pássaros amontoados em celas de betão, vigiados, subvivendo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXVII)

São Paulo, 22 de julho de 2040

Regressando à minha mátria brasileira, chego mesmo a tempo de celebrar os cento e vinte anos do nascimento do Mestre Florestan.

A sua origem humilde moldou o teu caráter. Filho de mãe imigrante e analfabeta, começou a trabalhar como engraxate aos seis anos de idade. Foi forçado a abandonar a escola aos nove e fez as primeiras aprendizagens sociológicas na escola da vida. Porém, não deixou de acreditar que a educação poderia ser uma experiência transformadora e que as escolas deveriam formar “um sistema comunitário”.

Como deputado federal, Florestan participou na Campanha de Defesa da Escola Pública, bateu-se pela escola que integrasse a dispersão cartesiana, bem como pela autonomia das escolas, que apenas tinha expressão na timidez do artigo 15º º da LDBEN, jamais regulamentado e, na prática, deturpado.

Em julho de 2020, comemorámos o seu centenário. Parece que foi ontem, que educadores brasilienses se reuniram, nesse mesmo dia, para anunciar a criação da primeira rede de comunidades de aprendizagem.

Entre 2015 e 2018, para que (finalmente!) a LDBEN fosse cumprida, a Secretaria de Educação do Distrito Federal me solicitara um projeto de desenvolvimento de comunidades de aprendizagem. Feita a entrega do projeto, uma portaria criou a Comunidade de Aprendizagem do Paranoá. O projeto político-pedagógico da CAP apresentava-se deste modo:

“Quando a comunidade se constitui como parte atuante da escola, com voz e participação na construção coletiva do projeto político-pedagógico, surge o sentido de pertencimento, isto é, a escola passa a pertencer à comunidade, que, por sua vez, passa a zelar com mais cuidado por seu patrimônio, a criar, planejar e respirar os projetos de interesse de sua gente, de sua realidade”. A “Apresentação” da CAP começava com esse excerto do documento-base da política educacional da secretaria, o “Currículo em Movimento da Educação Básica”. Até então, esse documento havia sido letra morta.

Em 2015, a pedido da secretaria, um núcleo de projeto se tinha constituído. Em 2018, o teor do documento começava a ter tradução prática, círculos de vizinhança eram esboçados. Nos encontros com as famílias, com a comunidade, com a secretaria de educação e órgãos de poder, seria suscitado o debate sobre a ressignificação do espaço escolar, bem como da relação deste com a comunidade. Visava-se materializar princípios e valores, que constavam do projeto e o fundamentavam.

Nesses encontros, era apresentada e explicada a proposta de reconfiguração da prática escolar às famílias que desejavam que os seus filhos participassem do projeto. Estimulava-se o encontro informal de esclarecimento. A “Campanha de Defesa da Escola Pública” do Mestre Florestan despertava de décadas de abandono. A defesa de um ensino público, laico e gratuito, enquanto direito fundamental do cidadão do mundo moderno, tomava forma concreta.

O projeto de criação da segunda comunidade de aprendizagem – a Comunidade de Práticas Sustentáveis do Mangueiral – assumia os mesmos princípios da CAP. Visava superar os modelos educacionais vigentes, buscando fertilizar as práticas, a partir do legado deixado por eminentes educadores. Florestan Fernandes e Anísio Teixeira eram disso exemplo, quando concebiam a ideia de uma educação integral, onde se acolhia a multidimensionalidade do ser humano e onde se usava como matéria-prima a própria vida. A rede de comunidades de aprendizagem foi a concretização prática desses princípios.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXVI)

Queluz, 21 de julho de 2040

Prestes a partir para terras brasileiras, participei num encontro de académicos interessados em conhecer a nova educação, nascida no sul de há vinte anos. Aproveitei o ensejo para lhes falar de Florestan Fernandes e da sua obra.

Amanhã, completar-se-ão cento e vinte anos sobre a data do seu nascimento. O insigne educador brasileiro nasceu em São Paulo, em 22 de julho de 1920 e na sua cidade-berço faleceria em 1995. A morte o levou, pouco antes da aprovação de uma Lei de Bases, que ajudou a construir.

Não sei se no lugar etéreo onde se encontra “memória desta vida se consente”, mas sei que o eminente sociólogo se surpreenderia, se soubesse que, um quarto de século depois, essa lei continuava por cumprir. De absurdo em absurdo, os desgovernantes da educação tudo faziam para impedir o seu cumprimento. Narrarei um caso exemplar.

Um governador inaugurou uma escola construída no “Padrão Século XXI”. Pouco tempo após a inauguração, um jovem aluno foi morto a tiro dentro dessa (dita) escola modelo. Outro rapaz foi atingido por uma bala perdida.

A diretora disse que o rapaz tinha comportamento normal e boas notas. O porteiro do colégio prestou depoimento: a Polícia Militar vem, ajuda, mas quando eles saem os marginais voltam. Acrescentou que o colégio tinha encomendado câmeras de segurança e uma barreira de proteção em volta do prédio onde os alunos estudavam. Que um serralheiro colocaria placas em volta da escola, mas, antes de ficar pronto, infelizmente aconteceu essa tragédia”, disse. Um superintendente da secretaria de Educação averiguou as condições da infraestrutura de segurança e, peremptoriamente, afirmou: um circuito de câmeras de monitoramento será instalado ao redor de toda a escola. E a Polícia Militar, por sua vez, informou que fazia rondas intermediárias.

Porém, apesar de todas as garantias dadas por quem podia dá-las, poucos alunos apareceram na instituição na manhã seguinte. E uma mãe decidiu mesmo tirar o filho daquela escola, porque se cansou de ouvir os relatos do menino, que afirmou ter testemunhado o uso de drogas no local. Culminando esta insana sequência de fatos, a escola, que era pública, se tornou uma instituição militar.

Disse a minha amiga Ely que pais e governo comemoraram o plano de recuperação da qualidade da escola, através da colocação de policiais militares, uma solução retrógrada, talvez inconstitucional e desnecessária. Quanta ignorância a de pensar que se poderia acabar com a violência explícita com recurso à violência simbólica, numa escola-caserna! Ou que um ambiente castrense poderia gerar autonomia e disciplina.

Na minha provecta idade, eu estava crente de que já tinha visto tudo, mas estava imbuído daquele engano de alma ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito… Perplexo com tantas besteiras, iria juntá-las ao balde do lixo do computador. Eis senão quando, este português cioso da sua herança cultural, encontrou uma razão para reagir – a ocupação das escolas pela PM começaria no “Colégio Fernando Pessoa”.

Diria o Fernando poeta que tudo vale a pena, quando a alma não é pequena. E o que não vale a pena é perder o dom da indignação. Por que não deixavavam o poeta em sossego, no seu repouso eterno? Por que se permitia que a poesia e a pedagogia fossem vilipendiadas? Por que se calavam os educadores perante tantas aberrações? Por que razão, os educadores brasileiros não seguiam o exemplo do Florestan sociólogo, que dizia ser o professor “um cidadão e um ser humano rebelde”?

Na cartinha de amanhã, vos darei um princípio de resposta.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXV)

Tortozendo, 20 de julho de 2040

Tudo aquilo que lestes do mestre Celso e muito mais do que lestes está plasmado nas crônicas que o amigo Rubem publicou, no início do século. Decorria o mês de maio de 2020, quando o Rubem visitou a Ponte. Eis como o Mestre descreveu a sua chegada:

“Pedi que o Ademar me desse explicações preliminares, antes da visita. Ele se recusou. Disse-me que explicações seriam inúteis”.

O Rubem surpreendeu-se com a recepção, imaginou que eu seria o seu guia e explicador:

“Ao invés disso ele chamou uma aluna de uns 10 anos que passava e disse: “Será que tu poderias mostras e explicar a nossa escola a este visitante?” Ela acenou que sim com um sorriso e passou a me guiar”.

“Antes de entrar no lugar onde as crianças estavam, ela parou para me dar a primeira explicação que tinha por objetivo, imagino, amenizar a surpresa. É preciso imaginar o delicioso “portuguesh” que se fala em Portugal para sentir a música segura e tranquila da fala da menina. “Nósh não têmosh, como nas outrash escolash (daqui para frente escreverei do jeito normal…) salas de aulas. Não temos classes separadas, 1º ano, 2º ano… Também não temos aulas, em que um professor ensina a matéria. Aprendemos assim: formamos pequenos grupos com interesse comum por um assunto, reunimo-nos com uma professora e ela dá orientação sobre o que deveremos pesquisar e os locais onde pesquisar. E usamos muito os recursos da Internet. Ditas essas palavras ela abriu a porta e, ao entrar, o que vi me causou espanto”.

O “espanto” estimulou a humildade daquele extraordinário ser humano. Fê-lo questionar atávicas culturas de universitários, que consideravam haver um “ensino inferior”. Sem resquícios de arrogância, concluiu que, se alguma “aprendizagem superior” existisse, ela não estaria nas salas de aula de uma superior ensinagem. Talvez a encontrássemos em frágeis fendas de universitária inovação, que também as havia…

Na universidade – prefiro esta designação “não-superior” – outro humilde mestre, o amigo Celso, teoricamente abordava o processo de pesquisa, que a anfitriã do Rubem descrevera em termos práticos:

“No passado, com a dificuldade de acesso à informação, o professor (ou o padre ou pastor) era a única forma de acesso. Atualmente, esta justificativa chega a ser risível com toda a explosão dos meios de comunicação e, em especial, da rede mundial de computadores. Há a presunção de que os alunos “naturalmente” se interessam por aquilo que vai ser transmitido. Muitas vezes, o professor, a partir de seu centramento afetivo, não consegue imaginar que exista alguém que não se interessa por aqueles conteúdos que ele se interessa”.

Na pós-pandemia, a administração educacional ostracizou a surpresa do Rubem e a ciência do Celso. O vil metal envenenava as relações e poluía o debate. Quando foi possível conviver sem máscara protetora no rosto, o instrucionismo mascarou-se de aula híbrida e de aula online. Mercadores do digital substituíam professores por robôs, indiferentes aos argumentos do amigo Celso.

Outro ser humano a caminho da perfeição escreveu que a linguagem dos homens passara a ser fonte de mal-entendidos. As palavras de um cientista valiam menos do que a verborreia de falsos “superiores” e dos desgovernantes.

Meditareis, queridos netos, sobre o facto de este vosso avô ter atribuído humanos nomes a alados seres. Isso se devia a não me sobrar engenho para reinventar a adulterada linguagem dos homens. Nem conseguiria alcançar a compreensão de ocultos saberes que só as aves preservavam, quando atribuíam exatos nomes a exatas essências.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXIV)

Fundão, 19 de julho de 2040

No lugar de onde vos escrevo, encostado ao pé da serra, merendei as cerejas de muitas primaveras, em escolas onde anônimos professores me acolhiam, nos idos de oitenta. São memórias de um velho glutão, que muito queijo da serra saboreou na casa do amigo Gildo. Quase de partida para a mátria brasileira, ainda dispus de um tempo para satisfazer a gulodice e escrever esta cartinha.

Nos difíceis tempos, de que vos venho falando, mal grado os avanços que a lei consentia, a escola brasileira continuava imersa em contradições, dividida entre uma escola dos deserdados e uma escola de pseudo-elites.

Enquanto os herdeiros da plêiade educacional do Manifesto dos Pioneiros defendia que a educação deveria ser pensada a partir das comunidades, de modo que os processos de aprendizagem assumissem um papel transformador nas sociedades, ainda havia quem acreditasse que o modelo escolar instrucionista era único e que o prédio da escola era o único lugar onde se poderia aprender.

Até que chegaram tempos novos. Encontrei educadores, que faziam das suas escolas instrumentos de emancipação, para que um povo educado não mais aceitasse “as condições de miséria e desemprego como as que temos”. Nestas palavras do Florestan estava contido o drama que a herança escravagista e colonialista perpetuava: a de manter a maioria da população culturalmente alienada e afastada das decisões políticas. O Brasil padecia de um enorme déficit democrático e de cultura cívica. As escolas que, infelizmente, ainda tínhamos e que para tal contribuíam, eram objeto da crítica do eminente sociólogo.

Falo-vos de Florestan, porque, em julho de 2020, ele fez cem anos. E porque interpelava a prática da sala de aula, a concepção do professor como transmissor do saber, a hierarquização da gestão e dos saberes. Uma linha de trabalho característica de Florestan, nos anos cinquenta, foi o estudo das perspectivas teórico-metodológicas da sociologia e os seus ensaios foram fundamentais para a afirmação da sociologia como ciência.

Florestan não estava sozinho. A educação brasileira era pródiga em referências internas, mas a síndrome do vira-lata impelia à procura de sonhadas finlândias, na ignorância das finlândias domésticas. O Brasil dispunha de uma extraordinária plêiade de teóricos: Paulo Freire, Anísio Teixeira, Nise da Silveira, Agostinho da Silva, Milton Santos, Maria Nilde, Darcy Ribeiro, o piagetiano Lauro de Oliveira Lima… mas o Piaget importado prevalecia sobre o “produto nacional”.

Com o advento da pandemia, uma das modas importadas dos States, uma escola dita “de elite”, perdeu grande parte dos alunos. E os seus pais tomaram consciência de que “o que era brasileiro era bom”. Assim se expressavam:

“Você sabe como é a elite do Brasil. Eles pensam: ‘Se é americano e custa caro, vale a pena’. Os que mantêm o filho nessa escola acreditam no marketing do ensino e têm a fantasia de que o filho, só por estudar ali, vai virar novaiorquino e levar a mesma vida que um nativo nos Estados Unidos. Não tem sentido, nos dias de hoje, continuar submetendo o aluno a aulas convencionais, previsíveis, com provas e notas. Prefiro que minha filha tenha uma experiência humanística, motivadora, que a faça pensar de acordo com o tempo em que a gente vive. Acredito que isso vai dar a ela maturidade para decidir se prestar o vestibular é algo importante. E entender que não é o fim do mundo”.

Como vedes, a mensagem do vírus suscitava mudanças de atitude parental, mudança social, operava transformações… sociológicas.

Por: José Pacheco

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