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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXII)

Ponta Delgada, 17 de abril de 2040

É isso mesmo, querido Marcos! Estas cartinhas são pretexto para ir contando estórias do tempo da velha escola. E, também, de como uma nova escola e uma nova educação surgiram, há cerca de vinte anos.

Em meados de abril, uma mãe fez algo maravilhoso e inesperado (sic): organizou uma videoconferência entre crianças. Convidou a diretora de turma do seu filho, que aderiu à iniciativa. A professora da disciplina de Tecnologias de Informação e Comunicação, responsável pela escolha da plataforma de e-learning, pediu para participar.

Na videoconferência, as professoras explicaram por que motivo a escola esteve quatro semanas afastada do convívio com as crianças. Conversaram com todos os alunos, dirigindo a cada um palavras reveladoras do que eles tinham de melhor. E com palavras esperançosas essa mãe concluía uma postagem no facebook: O facto de as professoras aceitarem fazê-lo em conjunto com os pais permite dar o Kick Off para uma verdadeira comunidade de aprendizagem.

Como não é por acaso que há acasos, quase no mesmo dia dessa videoconferência, a minha amiga Conceição – que protagonizaria uma bela “live”, no abril da pandemia – mandava notícia de novos rumos traçados nas açorianas ilhas: Passadas duas semanas de confinamento e depois de uma chamada de vídeo com os amigos, que já estavam a fazer a “roda da manhã” em suas casas, a vontade de “construir um Novas Rotas” em casa surgiu naturalmente. “Roda”, “folha de mostrar e contar”, “o estado do tempo”, “quantos somos?” – o “plano individual de trabalho” sendo elaborado… até que surgiu uma pergunta, que nos levou para novo projeto: Como é que somos por dentro? As crianças do Projeto Novas Rotas continuam a trabalhar, seguindo os seus roteiros de estudo, de forma autónoma, tendo as suas sessões de tutoria e momentos de especialista à distância.

Integrada na “Rede de Comunidades de Aprendizagem” – em próxima carta vos direi o que isso era – a Conceição percorria caminhos possíveis de aproximação escola-família, em tempos de distanciamento social. Como afirmara aquela mãe, a crise revelara múltiplas possibilidades de estabelecimento de laços. Viver junto assumira novos significados, o de contato intenso, real, de todas as horas, em espaços comunitários de aprendizagem interligados pelo virtual.

Na minha diáspora educacional, no dia 12 de setembro de 2018, chegava à ilha de São Miguel, para aprender aquilo que a Conceição me poderia ensinar. E para a ajudar a tornar sustentável uma comunidade de aprendizagem nascente.

O jornal “Açoriano Oriental” havia dado a boa-nova: O projeto Novas Rotas foi aceite pela Escola das CapelasConceição Medeiros, coordenadora do projeto afirma que este projeto-piloto de inovação pedagógica já recebeu o aval da Direção Regional da Educação. Será implementado no próximo ano letivo, na Quinta do Norte. Fará com que todos aprendam com todos. E que, em cooperação, contribuam para o bem comum. É um sonho tornado realidadeÉ com grande entusiasmo que aceitamos este desafio para apresentar o Novas Rotas, num ambiente de verdadeira Comunidade de Aprendizagem, onde prevalecem valores como a solidariedade, a cooperação, a criatividade… e o saber.

Pude testemunhar o envolvimento dos pais das crianças e ver crianças aprendendo, sabendo por que aprendiam. Uma motivação intrínseca os impelia para a descoberta de si e para o reconhecimento do outro. Davam forma corpórea aos versos da Adélia: Não quero faca nem queijo / Quero a fome.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXXI)

Três Rios, 16 de abril de 2040

Assim falava a Cecília: Em casa, as crianças e os jovens não precisam de lista de conteúdos, ou rotina enviada pela escola. Que educação é esta, em que os alunos estudam pandemia nas aulas do ensino médio – sei isso, porque a minha filha teve que estudar isso para um teste – e, na prática, não sabem o que fazer nesta situação? Os nossos alunos não precisam do material da escola, para fazer atividades. Aluno e educador usam a tecnologia para trocar informações, as mesmas que trocariam em suas tutorias, na escola. Simples assim!

No tempo da pandemia, a “Roda Criativa” de Petrópolis já era um locus de inovação. Cinco anos antes, com a Camila e uma equipe de amorosos professores, a Cecília erguera o projeto Alto Independência. Quando a Secretaria de Educação quase destruiu esse projeto, a Cecília foi semear humanidade em outro lugar e fez milagres com as crianças da Comunidade São Jorge.  Quando conseguiram destruir mais esse projeto, a Cecília não desistiu e dedicou a sua vida à reinvenção de modos de fazer das crianças pessoas sábias e felizes.

Assim falava a Cecília: Venho pensando em como lutei nestes cinco anos e como tudo se diluiu na burocracia e na ignorância de algumas pessoas, que não prejudicaram só a mim, mas a todas as crianças e famílias. Foi essa Cecília que, no Instagram da Ecohabitare, nos presenteou com uma “live”. Já lá vão vinte anos, mas não me sai da memória a imagem da competência e resiliência!

Essa extraordinária educadora também era dotada de grande senso crítico. De um dos meus velhos cadernos, respigo testemunho da sua reflexão sobre a gestão do tempo de aprendizagem: Não entendo esse negócio de ano letivo, tempos de 50 minutos. Aprendemos 24 horas por dia, nos 365 dias de cada ano (neste ano, até temos um dia a mais).

A Cecília sabia, por exemplo, que o horário de aprender deveria ser o de cada pessoa e o da comunidade. Que o ritmo de aprendizagem de cada aprendiz deveria ser respeitado, assim como os ciclos de vida da comunidade. Que não fazia sentido fixar horário de “entrada”, ou de “saída”. Na sua escola, cada educador estabelecia o seu tempo de ajudar a aprender e de aprender com os outros. O tempo era gerido autonomamente. Acordos eram elaborados por tutores e tutorandos, para se viabilizar uma gestão individualizada do tempo. E, em autonomia, os alunos aprendiam a gerir o tempo, mas também os espaços, os recursos… aprendiam.

Se essa gestão do tempo já era prática comum na escola da sua filha, a Carla não conseguia entender por que razão recebeu, via Internet, um “Horário do Primeiro Ano (adaptado para o período de isolamento)”.

Esse horário de trinta tempos letivos semanais tinha sido enviado pela secretaria a todos os alunos do estado. Estabelecia, por exemplo que, pelas 8 horas de segunda-feira, todos os alunos deveriam estar na aula de Biologia; às 10h30 de quinta-feira, na aula de História; às 12 horas de sexta-feira, na de Matemática… Generosamente, a secretaria também estabeleceu o horário de intervalo diário: entre as 10h15 e as 10h30. Esse seria o tempo em que, no aconchego do lar, a filha da Carla poderia ir fazer xixi, comer o “lanche” e conversar no facebook ou WhatsApp. Isso, se não ficasse de castigo e sem intervalo, claro!

Netos queridos, juro que é verdade! Isto aconteceu durante a peste de 2020. E os desvarios de secretarias instrucionistas não se quedaram por essas absurdas iniciativas. Se tiverdes paciência para ler mais umas cartinhas, outros disparates vos contarei.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXX)

Santa Cruz, 15 de abril de 2040

Naquele tempo, já muitos educadores estavam conscientes da necessidade de transformação do sistema econômico, do social, do político… do educacional. Já sabiam que escolas são pessoas, que aprendem umas com as outras, mediatizadas pelo mundo, em qualquer lugar. Dispensados do isolamento social, poderiam aprender dentro de um prédio (a que chamavam “escola”), mas também nas padarias, nas igrejas, nos lares, nos teatros e cinemas, nas bibliotecas públicas, nas usinas, nos campos e florestas, nas ruas e praças… nas pessoas, que são livros abertos.

Pessoas como a Cecília, que desabafava num e-mail: As pessoas fingem que acreditam em inovação e criam ferramentas com nomes bonitos, mas que, no fundo, é a famosa AULA. E é dela que as escolas e secretarias estão sentindo falta, quando enlouquecem com o currículo do 1° bimestre, de que não vão conseguir dar conta! No papel, que fica guardado na gaveta, está escrito que isso tudo que estão enviando para casa deveria ser dado no 1° bimestre!  Mas no meio do caminho havia uma pandemia…

O André completava o depoimento da Cecília: Acabamos de divulgar aos alunos da escola os livros elaborados pela secretaria municipal de educação. É uma apostila como todas as outras. Aí recebi uma mensagem de um aluno: Professor, é pra copiar no caderno?

Dá vontade de dar cabeçada na parede, mas aí eu lembro que não sou eu que fico ensinando aluno a copiar o que já está escrito em livros. Aí, minha vontade é bater… Melhor dizendo: dar um abraço bem apertado nos professores teimosos! No dia 14 de abril, o André deu muitos abraços, a mais de mil educadores “teimosos”, que o acompanharam numa “live”.

Poderia preencher várias cartas só com palavras do André. Palavras de homem bom, de homem lúcido, como estas, guardadas num dos meus velhos cadernos: É motivo de tristeza que, no ano de 2020, estejamos planejando ocupar a Lua e Marte, tenhamos carros e motos voadores, construamos edifícios com mais de um quilômetro de altura, tenhamos celulares com capacidade de processamento maior do que computadores caseiros e, ao mesmo tempo, eu tenha que explicar aos meus alunos que a Terra não é plana e que a maior parte dos vídeos, que eles vêem no youtube, são montagens e mentiras.

O advento de um vírus, havia desocultado (finalmente!) a falácia da escola da aula, tinha revelado uma triste evidência: passamos pela escola sem nada aprender de essencial. Temos doutores e mestres andando nas ruas, expondo-se ao contágio e contagiando. Temos Ph.D. entrando em curto-circuito com a quarentena, após uma semana de isolamento social. Ensinamos todo o conhecimento, que a humanidade conseguiu acumular. E não ensinamos às crianças coisas óbvias…

E o pai pergunta: E, agora? Meus filhos ficarão sem aula por 4 ou 5 meses? Eles precisam aprender as matérias, para passarem no vestibular com 18 anos!

E a mãe pergunta: Vocês vão passar trabalho para meu filho estudar em casa?

Se não passarmos, seu filho ficará sem aprender alguma coisa? O que você fez com essa criança, que a tornou incapaz de aprender, mesmo vivendo na era digital? O que você fez com você mesmo, para que essa criança tenha perdido a curiosidade? O que você fez com essa criança, para ela deixar de olhar a vida em silêncio íntimo e elaborar perguntas profundas sobre si mesma? É isso que todas as crianças precisam enfrentar, por catorze anos de suas vidas, para serem chamadas de “adultos”?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXIX)

Barueri, 14 de abril de 2040

No dia 14 de abril de há vinte anos, a Edilene falou-nos, como só ela sabe, da Escola do Projeto Âncora e da Escola Aberta, numa das “lives” de abril. A Amanda tinha preparado a “live” com perfeição, esperávamos que fosse mais um tempo de grandes aprendizagens. E assim foi: uma live esclarecedora. Mas, estou viciado na escrita e não resisto a enviar-vos uma cartinha, para vos falar da possibilidade de fazer uma educação diferente, De possibilidades e de… obstáculos.

Em 2011, correspondendo ao pedido do saudoso Walter, rumei a Cotia, para ajudar a criar a Escola do projeto Âncora. Ajudei a Cláudia e a Edilene a coordenar um extraordinário projeto. Os obstáculos a transpor eram imensos – a maldade humana, o assistencialismo, a ignorância – e o projeto foi destruído. Tão logo foi possível, fez-se a estória do desenlace, um livrinho escrito a muitas mãos, que descreveu o pérfido processo de aniquilamento do projeto.

O Âncora foi um dos 178 projetos que o MEC reconheceu como inovadores, em 2015. Diz-se que a inovação mata a inovação… e a visibilidade social matou os projetos. Em meados de 2020, poucos restavam. Quase todos foram extintos, ou se degradaram, deixaram de ser inovadores. Em breve, vos contarei o epílogo do projeto de maior duração: o da Escola da Ponte. Soçobrou, ao cabo de dezenas de anos de sofrimento e resiliência. Sempre mantive extrema admiração pelos professores, que por lá continuaram, quando da Ponte me afastei. Compreendi que resistiram quanto puderam. E lhes fiquei grato, por me terem ajudado a compreender a origem do drama. Esperançoso que era (e ainda sou), fiquei na espetativa de que retomassem caminhos de mudança e inovação.

Nos idos de 2001, dando notícia da precária sobrevivência da Escola da Ponte, eu me dirigia a uma neta de tenra idade –  que viria a tornar-se psicóloga – com estas palavras: Tudo o que é justo e verdadeiro se ergue das cinzas, como a Fénix. As gaivotas da nossa história continuaram a sobrevoar mares longínquos, em busca de novos sóis, animadas de uma coragem que permite reconstruir ninhos devassados, envolvidas numa verdade tranquila, acima da espuma dos dias. Se a eternidade me esperar para além dos noventa, ainda hei de fazer um “manual da sobrevivência dos projetos”, em homenagem àqueles que ergueram o Projeto Âncora, a Escola Aberta… Já escrevi a introdução, contando o início da Escola da Ponte.

Numa noite de 1976, destruíram a horta e o hospital dos animais, que as crianças cuidavam com imenso desvelo. Criminosos a soldo de políticos locais pintaram com o sangue das vítimas, na parede da escola, a inscrição: Morte ao professor. Havia sangue por todo o lado. Chorei a destruição, abraçando-me às crianças, que choravam abraçadas aos despojos dos animais assassinados.

Quando, por volta de 1984, conseguimos assegurar a todos os alunos o direito à educação, começamos a receber torpes ataques. Os detratores agiram de forma violenta, explícita no terrorismo verbal, via telefone e em tentativas de agressão física. Lançavam panfletos, na calada da noite, contendo acusações falsas. Publicavam boatos em jornais. Porém, o sofrimento maior foi termos descoberto que muitos desses ataques eram provenientes de escolas próximas. Apercebemo-nos de que o maior aliado de um professor era o outro professor. Mas, com mágoa, também descobrimos que o maior inimigo de um professor “diferente” era o professor da escola do lado.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXVIII)

Cassange, 13 de abril de 2040

Queridos netos,

Já vos falei do meu amigo Tiê e da sua infinita curiosidade. Muito eu aprendi, tentando dar resposta às suas perguntas, durante aquela semana de formação da península de Maraú. Nos seus três aninhos, o Tiê talvez nunca tivesse ouvido falar da Clarice Lispector, mas ela tinha sido um Tiê adulto: “Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever” – assim se pronunciava a escritora.

Aprendi com o Tiê e com a Clarisse a escrever perguntas, sempre que não me davam resposta. Há precisamente setenta anos, apercebi-me de que, dando aula, eu não ensinava e de que muitos dos meus alunos não aprendiam. Por isso, uma das perguntas, que insistentemente, faço, sem que me deem resposta, é esta: Se numa aula pouco, ou mesmo nada se aprende, por que razão os professores dão aula?

Encontrei a resposta nos livros da Montessori, do Steiner, do Freinet, do Dewey, do Lauro, do Anísio, da Nise, da Nilde, do Freire…

No decurso de um seminário. eu partilhava a mesa com a minha amiga Madalena Freire, quando um professor ensaiou uma resposta:

Eu dou aula, porque acho que eu ensino dando aula.

A Madalena interveio nestes termos:

O colega acha, mas os professores não podem achar, devem fundamentar. Você me perdoe, mas o achismo não serve de resposta. Importa-se de fundamentar?

O professor não fundamentou, porque não havia, nem há, como fundamentar a prática da aula.

No final do encontro, fui conversar com esse professor. Ficamos em contato até hoje. Durante trinta anos, conversamos e nos transformamos. Se eu deixei de dar aula, há quase setenta anos, ele deixou de dar aula, há cerca de vinte anos, para que os seus alunos pudessem aprender.

Há muitos, mesmo muitos anos, conheci um professor, que já “não dava aulas”, mas que se gabava de, no tempo em que as dava, ser considerado um “bom professor”, pelo facto de reprovar muitos alunos. Mas, também há muitos anos, o mestre Agostinho da Silva nos recordava que “a maior parte dos professores, que combatem métodos novos fazem-no porque os desconhecem, ou porque todos à volta se conservam na rotina de um próspero analfabetismo”.

Agostinho foi professor da Universidade de Brasília. A UnB sempre contou com mestres notáveis. Tal como o meu amigo Pedro Demo. Aqui vos deixo uma evidência do seu imenso saber:

Poucas coisas são mais inúteis do que aula: roubam o tempo do estudante, desmotivam-no ostensivamente, refletem autoritarismo grotesco, deturpam o sentido da aprendizagem e do conhecimento, e representam a vanglória mais tola do professor. Aula é o que mantém a escola presa ao passado fordista, como consta dos “Tempos Modernos” de Chaplin, repetitiva, monótona, linear, sequencial, insuportável, desumana. Não tem como objetivo cuidar da aprendizagem do estudante, mas de transmitir conteúdo, que frequentemente o estudante sequer entende (…) Esta mania vem da faculdade, onde foi, estritamente, “vítima de aula”, e, logo, chegando à escola, reproduz o que recebeu por reprodução (…) Urge achar soluções adequadas, para não invalidarmos, tão abusivamente, o futuro dos estudantes. Quem toma como compromisso fundamental da escola cuidar que o estudante aprenda, de maneira integral e comunitária, jamais coloca aula no centro.

Isto encontrei no meu velho caderno com o número nove na capa. Ao lado do texto, transcrito exatamente há vinte anos, fiz uma anotação: Hoje, irei ver e escutar o meu amigo Pedro, falando desse assunto no Instagram.

Quanta saudade eu sinto desse tempo de mudança!

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXVII)

Águas Claras, 12 de abril de 2040

No abril do nosso confinamento, Ignácio de Loyola Brandão publicou o livro “Desta Terra Nada Vai Sobrar a Não Ser o Vento que Sopra Sobre Ela”. O título fora extraído de um poema de Brecht sobre a Alemanha nazista. O livro começara a tomar forma, quando o imortal da Academia Brasileira de Letras leu num jornal que, no futuro, a ciência poderia produzir um homem sem cérebro, sem emoção. Felizmente – pelo menos até agora, na década de quarenta – o ser humano ainda possui e manifesta sentimentos. Mas sei que, nesse recuado tempo do vírus “corona”, o sistema de ensinagem produzia bonsais humanos, protótipos desse imaginado “homem do futuro”.

Nesse mês de abril, era evidente a normose instrucionista, “a vida normalizara-se naquela anormalidade”.  A frase de abertura do livro do Loyola Brandão fora escrita por Euclides da Cunha, na obra “Os Sertões”. No meu caderno número treze, registrei o modo como Loyola Brandão justificou a citação: “No momento em que a normalidade é o normal, com os índices de feminicídios, as milícias que comandam o Rio de Janeiro e as facções, isso não é o normal. Isso é uma anormalidade dentro do cotidiano. A gente vive uma situação de medo, de sobressalto. Nós estamos sendo conduzidos como na fábula do flautista que toca e conduz os ratos que vêm atrás para o precipício. A normalidade seria o respeito à lei”.

A normalidade seria respeitar a lei, diz-nos o escritor. Mas, as secretarias de educação obrigavam as escolas a desrespeitar a lei. O sistema de ensinagem havia sido interpelado por professores conscientes do genocídio educacional, que o instrucionismo causava. Mas, nesse diálogo de surdos, as secretarias excluíam e perseguiam quem ousava questioná-las. Não restava alternativa. Se as secretarias ostracizavam propostas fundamentas na lei, os professores passaram a ostracizar as propostas emanadas das secretarias, por estarem fora-da-lei. Na Páscoa do isolamento social, Loyola Brandão vinha confirmar a justeza da decisão tomada por esses professores – “Parece que a reação já começou com a desobediência civil, dizia. E lembrava aos professores, em particular, o exemplo de mestres como Gandhi.

Na Índia da primeira metade do século XX, Gandhi reagiu às injustiças perpetradas pelo Império Britânico. O monopólio britânico proibia os hindus de produzir o seu próprio sal e Gandhi decidiu desobedecer às “Leis do Sal”. Quando o colonizador ameaçou com represálias, Gandhi informou o vice-rei de que iniciaria uma desobediência civil em massa. E levou os indianos a desafiar o imposto salino cobrado pelos ingleses. A “Marcha do Sal” foi uma das iniciativas não-violentas, que contribuíram para libertar a Índia do colonialismo britânico. Gandhi era advogado especialista em ética política. Se vivesse nos idos de 2020, certamente estaria irmanado com os professores que desobedeceram a imposições e resistiram às ameaças … para cumprimento da lei.

O termo hebraico Pesach está na origem da palavra Páscoa e significa “passagem”. Simbolicamente, Páscoa é oportunidade para refletir sobre vida ressignificada. A Páscoa da Aprendizagem começou na Escola da Ponte, há sessenta e quatro anos. A Páscoa da Educação começou a ser celebrada há vinte anos, em pleno pico da pandemia. A Páscoa de 2020 foi um anúncio de ressurreição, o início de libertação do autoritarismo, para celebrar o amor e a vida. No exercício de uma fraterna desobediência, professores nasciam de novo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXVI)

Petrópolis, 11 de abril de 2040

No dia 10 de abril de 2020, recebi uma carta enviada pela Ana Clara. Nos seus 15 anos, a Ana “dava um soco no estômago” aos “auleiros presenciais e “virtuais”. Assim se dirigia a ”alguns professores” a jovem Ana:

O ensino sempre foi distante, só passou a ser mais ainda, de agora em diante. Com todos esses mortos, apenas separaram os corpos. Sigo sem saber por que só agora chamam de EAD. O real afeto na escola nunca foi como deveria ser. Eles preferem que os alunos vivam na ignorância, porque, mesmo face a face, o ensino é a distância!

Os estudantes são entupidos de matérias. E, dali em diante, as cabeças viram gritos e histerias, e a criança ainda é dita como pior do que deveria. Números marcados transformam estudantes em gado, é iniciado o processo de desumanização de todo aquele que não for capaz de atingir a perfeição. A consequência disso está nos índices de depressão! Tantas coisas acontecendo na era da informação. É por isso que escolhem a ignorância. Em busca da paz pro coração, tudo que todos menos precisam é de mais pressão.

Nesse tempo em que fiquei em casa, aprendi mais ouvindo Fábio Brazza do que assistindo vídeo aulas. E me dei conta de que não sou eu quem estou atrasada,

mas todo o sistema, que funciona de forma errada.

Hoje, presa aqui, eu só penso: se eu pudesse sair e não tivesse que ir à escola, 

o que será que eu faria lá fora? Viveria mil histórias? Voltaria, todo dia, com várias novas memórias? Ou entraria em pânico, porque, querendo ou não, eu não sei mais o que é viver sem pressão? Acho que, se hoje eu fosse livre pra ir embora, eu iria permanecer exatamente onde estou agora, porque não tenho mais a sede de conhecimento que tive outrora.

E olha pra mim! Essa pandemia veio em boa hora, pra mostrar para alguns professores que, atualmente, tanto faz se, eles forem embora… máquinas conseguem fazer o que hoje eles fazem, tanto que a aula continua a mesma, mesmo sendo por WhatsApp.

Enquanto alunos forem apenas personagens buscando passar de fase, não esperem que isso mude, e sim que tudo se atrase, porque, hoje, eu não lembro como se usa a crase, mas lembro de todas as ameaças de suspensões, caso eu me atrasasse. Todo esse dever não nos deixar ver que o esforço não é mútuo, se só o aluno é quem precisa aprender.

Buscam nosso máximo o tempo todo, mas e o resultado disso cadê? É um desespero que, quando adultos, todos fingem esquecer. E as respirações pesadas levam vidas embora, dentro das salas. Saímos da escola, corpos sem almas, sabendo quase nada do essencial.

A carta da Ana fala por si. Uma jovem de quinze anos demonstrava maior consciência da obsolescência da escola da aula do que a maioria dos docentes.

No mesmo dia, outra carta chegou, enviada pelo meu amigo Rafael Parente. Terminava com palavras sábias: “O EAD não pode ser compreendido como estratégia para substituir as aulas presenciais ou para sucatear a educação presencial, mas pode ser fundamental, neste momento, para a diminuição da desigualdade”.

Vinte anos decorridos, a carta da Ana Clara ainda suscita reflexão. Como o foi para professores de há vinte anos, que assim comentavam a carta: ”Vou ler isso todos os dias.  É preciso refletir e mudar. É preciso saber que a Educação é algo maior. É amor, mas é também vida, ciência. Cecília, sua filha é muito consciente, sensacional!  Mas, tendo você como mãe, não poderia ser diferente”.

Como outros professores, a Cecília, era “diferente”. E, com outros professores “diferentes”, fez a diferença.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXV)

Pau dos Ferros, 10 de abril de 2040

Para muitos dos vivos, a imposição do isolamento agia como prisão domiciliar. Sem saber como gerir a solidão, não suportando a solidão do outro, não partilhando as dores, muitos seres humanos se aperceberam de que sempre tinham estado sozinhos. E, do mais recôndito recanto dos lares, do mais profundo da alma humana, um insuspeito gérmen da compaixão e da solidariedade se revelava.

No tempo em que um vírus impôs o isolamento social, o vosso avô enviava e recebia mensagens, na intenção de ajudar a mitigar desavenças, a debelar conflitos, de que me chegavam notícia. Vinte anos antes, eu publicara um livrinho, que dava pelo título de “Sozinhos na escola”. Em 2040, ele se apresenta como premonitório. Em 2004, antecipava a denúncia, ainda agora apenas sussurrada, da solidão da sala de aula. Ainda possuo um exemplar velhinho, como eu, de onde respiguei este episódio:

O Miro percorreu a via-sacra de várias escolas, até chegar àquela, por recomendação de uma técnica de serviço social e de uma psicóloga. O seu calvário académico incluía várias passagens pelo ensino especial e por outros padecimentos. Um professor aproximou-se do jovem recém-chegado e propôs-lhe que escrevesse as suas primeiras impressões da nova escola.

Não sei, não sou capaz, não faço. E você não me pode obrigar!

O professor insistiu com jeitinho: Mas…

Mas eu não sou obrigado a fazer. Você não manda em mim. Você não é meu pai! Ponha-me lá fora. Na outra escola, quando me portava mal, punham-me lá fora. Marque-me uma falta e pronto!

O Miro não sabia que só estava carente de firmeza e carinho. O pai não poderia dá-lo, porque, há muito, abandonara a família. A mãe “já não tinha mão nele”. Professores, a julgar pelo condicionamento que nele se tinha operado, poucos teria encontrado pelo caminho. O Miro tinha passado sete anos sozinho em casa e outros tantos na escola, e deixara de acreditar ser possível aprender.

À quarta tentativa de persuasão, quando lhe pediram que fizesse algo de que ainda se lembrasse, o Miro pediu-lhe que o dispensassem da tortura da escrita e lhe “ditassem umas contas, mas só de dois números”, pois apenas se recordava (e mal) das contas de somar e de diminuir: Eu sou assim. No hospital, a psicólica até disse à minha mãe que eu sou atrasado da cabeça p´raí uns cinco anos. Eu sou burro…

Todas as escolas deveriam ser espaços produtores de culturas singulares, mas também espaços de comunicação. Sabemos que não é bem assim. As escolas são, quase sempre, espaços de solidão. O trabalho dos professores é um trabalho feito de solidão e a solidão dos professores é da mesma natureza da solidão dos alunos – professores e alunos estão sozinhos nas escolas.

Decorridos dois meses, o Miro já escrevia algumas frases, até já lia palavras em inglês! E foi a professora de Inglês que protagonizou um episódio que viria a influenciar o curso da recuperação do Miro.

Perante uma atitude menos correta do Miro, a professora repreendeu-o. Porém, apercebendo-se das nefastas consequências da reprimenda, num momento ainda tão frágil da reciclagem dos afetos, pediu desculpa ao Miro pelo exagero posto na repreensão.

Aqui, os professores pedem desculpa? – inquiriu o Miro, estupefato.

Claro! – respondeu a professora. 

O Miro reagiu com um esgar de espanto, deu uma volta e seguiu viagem, para que a professora não visse que pela sua cara de traquina inveterado passeava a manga da camiseta com que limpava uma teimosa lágrima.

A solidão do Miro sofrera um rude golpe… e a cura havia começado.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias dos Tempos da Velha Escola (LXIV)

Recanto das Emas, 09 de abril de 2040

No primeiro dia de abril, mais de dez mil pessoas morreram na Espanha, vítimas do vírus. No sexto dia desse mês, a China não registrou qualquer morte por COVID-19. No Brasil, ia sendo atingido o pico da pandemia. Estas são anotações contidas nuns cadernos, que ciosamente guardei no armário das velharias – estou velho e tenho por hábito guardar papéis.

O caderno número 5 – eu era bem metódico, como vedes… – contém registro de ocorrências desse mês e respetivas observações e inferências. Estão redigidos numa linguagem pouco adequada às finalidades destas carinhas. E, dado que nem todos os leitores estão familiarizados com os saberes das ciências da educação, recorrerei, em breves linhas, a metáforas inspiradas no COVID-19. Creio que, assim, talvez nos entendamos. Metaforizemos…

Também eu, de tenra idade, fui vítima do “vírus da ensinagem” (o designarei por inen-1900). Esse vírus havia surgido na Prússia militar do século XIX, na França dos conventos e casernas, e na Inglaterra da primeira revolução industrial, nas usinas da produção em série.

A epidemia alastraria pelo mundo e chegaria à América do Sul, trazida por um senhor chamado Lancaster, a convite de Simon Bolívar. E penetrou no Brasil, no tempo Imperador. Por aqui ficou, até hoje, contribuindo para reproduzir um sistema escolar e social iníquo.

O inen-1900 foi responsável por inúmeras catástrofes e flagelos. A escola da ensinagem engendrou degradação ambiental e guerras sem fim. Nas salas de aula, por onde passei, todos fomos infetados por esse vírus, através da fala do professor, quando nos encontrávamos a menos de dois metros dele. E pelos espirros pedagógicos do professor, quando a menos de seis metros de distância.

Outros professores me ajudaram na cura. Um padre e uma professora de francês me ajudaram a contrair o “vírus da mudança” (o muvi-68). Duas professoras da Escola da Ponte me inocularam o “vírus da aprendizagem” (o apvi-76). Professores, famílias e comunidades brasileiras me ajudaram a contrair o “vírus da inovação”. Metaforicamente o chamei de invi-20, pois se tratava de uma mutação benigna do vírus da ensinagem.

Por que foi o vosso avô procurar os cadernos? – perguntareis. Para que a memória não me traísse. Na página do dia 8 do quinto caderno, está escrito que a Cláudia utilizou o WhatsApp – lembrais-vos desse software? – para convidar o “Grupo de Trabalho das Comunidades de Aprendizagem” para um encontro virtual. Era nossa intenção partilhar a reflexão sobre a iniciativa da secretaria de educação “Escola em Casa”. E ver de que modo poderíamos auxiliar a secretaria a garantir que os jovens aprendessem, enquanto o isolamento social durasse.

O GT das comunidades tinha sido criado pela secretaria de educação. A origem do projeto remontava a 2015, quando a secretaria de educação nos pediu – a mim e à Cláudia – para criar duas comunidades de aprendizagem: uma na regional do Paranoá, outra na de São Sebastião. Isso fizemos, gastando muito tempo, muita paciência e muito dinheiro. Foi trabalho voluntário e não recebemos sequer um real da secretaria.

Em outra carta, vos direi o que sucedeu, após o fraterno convite enviado pela Cláudia.  Também vos falarei desse projeto e de como a corrupção intelectual e moral se tinha instalado no sistema educacional da ensinagem. Preciso contar-vos e com precisão, tudo o que aconteceu nesse distante mês de abril. O registro destas memórias poderá evitar que tempos sombrios regressem.

Por: José Pacheco

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXVIII)

Piracanga, 08 de abril de 2040

O Tiê não parava de perguntar. Ainda não havia chegado à idade de “ir à escola”. Dizem estudos que, à entrada no Fundamental, metade das crianças já não fazem perguntas. No final do Fundamental, a cifra cai para menos de dez por cento. Nas escolas de Ensino Médio, são raros os jovens que interrogam. E, nas universidades, quantos alunos fazem perguntas?

Fui professor do Fundamental. Quando entrava na sala, dizia: Bom dia, meus amigos!

Respondiam: Bom dia, professor!

Quando trabalhei na Universidade, entrava na sala, fazendo idêntica saudação: Bom dia, meus amigos!

Em silêncio, os jovens universitários escreviam nos seus cadernos: “Bom dia, meus amigos”.

Quem os havia posto assim? Quantos professores se interrogam sobre as origens deste drama?

Recordar-te-ás, certamente, querida Alice, das cartas que este avô te enviou, quando nasceste: Recorria a personificações, metáforas e outras figuras de linguagem. Quarenta anos depois, excelente profissional de Psicologia que és, contigo poderei usar de uma linguagem técnica, científica. Mas, com o Tiê, não.

Perguntou: Vovó o teu cabelo é branquinho… por quê?

Por que será? – respondi com a pergunta, que dispara a busca de resposta…

Num sei, vovô…

Brinquei com o Tiê. E, com a minha ajuda, ele encontrou a resposta. Para a Alice psicóloga, a conclusão é simples: contrariamente àquilo que a näo-diretividade ingénua postula, a criança não faz o que quer – a criança quer aquilo que faz, porque faz sentido. Já percebeste que estou a falar de Vygotsky…

Pois fica sabendo que encontrei doutorados em socio construtivismo, que davam aula. Diziam aos formandos que os alunos deveriam ser o centro do processo, enquanto davam aula, centrada no… professor. Das duas, uma: ou eram esquizofrênicos, ou analfabetos funcionais – leram Vygotsky, mas nada entenderam. Eram os “porquenins”, seres do nem sim, nem não. Em Brasília, encontrei uma subespécie: os “porquessins”. Se lhes perguntássemos, por exemplo, por que havia aula, eles respondiam: Porque sim. E… pronto! É assim, porque é assim, porque eu mando que seja assim.

Mancomunados com porquessins e porquenins, os “porquenãos” impunham que se ensinasse a voar a todos como se de um só se tratasse, como se cada ser não fosse um ser único e irrepetível. Muitos professores não ousavam sair da caixa preta da sala de aula, com medo de que algum porquenim espreitasse e fosse contar pecadilhos a um porquenão. E os obstinados porquenãos continuaram no fazer, sem saber explicar por que faziam. Era assim… e pronto!

Aos porquenins – ora de acordo com uns, ora com outros, conforme a ocasião e como lhes dava mais jeito – o Darcy deu o nome de áulico. Os áulicos eram semelhantes aos papagaios, aves que repetem e não refletem. Os áulicos eram surdos, insensíveis a uma interpelação fundamentada, criaturas horríveis.

Mas, como diria um outro rouxinol (de nome Pessoa), se deixasse de haver seres horríveis, o mundo ficaria mais pobre, só porque teriam deixado de existir. Por isso, estendíamos mãos solidárias aos porquenins, aos porquessins e porquenãos, na intenção de os ajudar a compreender e a decidirem ser éticos.

Foi o amor, sempre presente no canto das almas sensíveis, que comoveu as almas empedernidas dos porquenãos e as redimiu do pecado da ignorância e da maldade. A doce paciência das almas sensíveis ajudou os pássaros doentes a não terem medo da luz diurna, a não fechar os olhos à claridade. Convenceu porquenãos e porquenins da inutilidade da sua azáfama de pássaros rotineiros.

Irei contar-vos como tudo aconteceu.

Por: José Pacheco

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