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Estórias da Velha Escola (XXVII)

Joanópolis, março de 2041,

Hoje, será a vez de vos falar de dois professores que “davam a quarta classe”. Um era moço e inexperiente. A outra era mulher na casa dos sessenta de idade e levava de vantagem quarenta anos de brilhantes avaliações de desempenho, que lhe conferiam fama de boa professora. Fazia alarde da auréola e gabava-se de que qualquer aluno que levasse a exame só poderia de lá sair aprovado e com distinção.

De tão rigorosa e cumpridora, também cumpria a percentagem estabelecida de reprovações. Em consonância com os ideólogos do regime, postulava que “nem todos podiam dar doutores”. E, do alto da experiência, dava como exemplo o caso do Toino Bica que, já entrado nos doze, passava as aulas a dormitar na “fila dos burros”.

A afetividade também era conhecimento construído através da vivência. Aceitar o ser humano como um ser afetivo, que pensava e sentia simultaneamente, implicaria um outro olhar sobre as práticas, que não poderiam ser restringidas à dimensão cognitiva. As escolas deveriam entender mais de seres humanos e de amor, do que de conteúdos e técnicas educativas, mas contribuíam em demasia para a construção de neuróticos, por não entenderem de amor, de sonhos. E o meu amigo Rubem assim resumia o seu saber e sentir: As rotinas e repetições têm um curioso efeito sobre o pensamento: o paralisam. A nossa estupidez e a nossa preguiça nos levam a acreditar que, aquilo que sempre foi feito de um jeito, deve ser o jeito certo a fazer.

Evoco estes autores porque, em meados da década de 1970 do século passado, embora fosse de confecção em cada escola, ainda era tempo de “exame de quarta classe”. Pelo final de junho, a professora antiga já tinha o exame preparado, mas teve para com o jovem colega uma gentileza inédita: O colega não quer acrescentar qualquer coisa à prova?

O colega quis. O poema do Torga, que encimava o teste, estava semeado de fabulosas imagens e falava de amor. E a meia dúzia de perguntas escolhidas pela velha e experiente professora somente visavam respostas diretas, do tipo: Onde estava o x? O que tinha feito o y? Quem tinha visto o z? Para não tornar o interrogatório demasiado longo, o jovem professor apenas acrescentou uma questão.

Como todas as provas que se prezam, esta começou pela leitura e interpretação do texto. Os alunos enfronharam-se nas ditas. Mas, volvidos alguns minutos, um após outro, todos os alunos da velha e experiente professora suspenderam a escrita. Ora coçavam a cabeça, ora manifestavam outros sinais de impaciência e até de angústia.

O professor novo e inexperiente apercebeu-se de que haviam esbarrado na pergunta número sete. E não ousavam passar-lhe à frente, porque a senhora professora era exigente e tinha avisado que não poderiam deixar qualquer das perguntas para trás, sem resposta.

Quase todos os alunos do professor moço e inexperiente já estavam a acabar a redacção de vinte linhas e tópicos obrigatórios, quando algumas lágrimas já assomavam nos olhos suplicantes de alguns dos óptimos alunos da velha e experiente professora. O professor não se conteve. Foi junto de cada um e sussurrou-lhes uma qualquer mensagem ao ouvido, que os deixou aliviados e lhes permitiu desencalhar o raciocínio… e a sensibilidade.

Acrescente-se que a sétima das questões era imperativa e rezava assim: “Depois de leres este bonito poema, diz o que é, para ti, o amor.”

Com Amor, o vosso avô José

 

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XXVI)

Aljezur, outubro de 2039

Muitas vezes, escutei duas perguntas e respetivas respostas, dadas pelos alunos, quando mostravam a escola aos visitantes:

Onde é o gabinete do diretor?

Aqui não tem.

Mas, onde está o diretor?

Está com os alunos. Onde deveria estar?

Oficialmente, eu era o diretor da Escola da Ponte. Há uns sessenta anos, passava oito horas no trem (perdoai que em brasilês eu me expresse), que me levava ao ministério, para prestar esclarecimentos requeridos pelos inspetores. Eu falava alhos, eles respondiam bugalhos. Dito de outro modo: eu lhes dizia por que não dava aula, porque não havia turma, nem carga horária; eles falavam de aula, de turma, de carga horária. O mesmo diálogo de surdos, que acontecia, sempre que eu conversava com diretores de ajuntamentos de escolas. A grande maioria dos diretores estavam longe da prática pedagógica, há muitos anos. Lidavam com papéis, quando deveriam trabalhar com alunos.

No facebook (devereis recordar-vos desse velho recurso da Internet) de um mês de outubro de há cerca de vinte anos, o amigo José Matias Alves falava-nos de “lideranças tóxicas”, um tipo de liderança das organizações escolares. Aconselhava a existência de uma liderança transformacional, que protegesse as escolas da ameaça da balcanização, operada por forças que pululavam entre o palco e os bastidores do quotidiano de ensinar e aprender.

O José elaborou um enunciado descritivo do padrão das lideranças tóxicas: centralizavam o poder e afirmavam-no de várias formas e feitios; reservavam e controlavam a informação, para saberem mais do que os outros; desconfiavam das capacidades dos outros e não perdiam oportunidades para o evidenciar; preservavam as distâncias e cultivavam o cerimonial da subserviência; construíam dispositivos de controlo sobre rumores e boatos organizacionais; instituíam formas tendencialmente vassálicas de relação; fundamentavam o poder na autoridade legal, com o argumento “eu é que sou o diretor”; eram permeáveis à prepotência e ao amiguismo, destruindo qualquer hipótese de construção de comunidades educativas; cumpriam as orientações superiores, desvalorizando a legitimidade democrática que as colocou nesse lugar; tinham dificuldade de escuta, não construíam laços, envenenavam relações, semeavam a discórdia.

As organizações educativas que tinham a desgraça de serem governadas por esse perfil de liderança passavam dificuldades. Prevenida pelo amigo José, a Ponte protegeu-se dos riscos de liderança tóxica. Celebrou com o ministério um contrato de autonomia. Sucessivos relatórios de avaliação externa confirmavam a excelente qualidade da educação que na Ponte se fazia. Mas, ministros de má memória não respeitaram o acordo, impuseram novas regras, ameaçaram com o desemprego dos professores. Os professores cederam perante a intimidação, porque o cansaço era de muitos anos. A escola ficou ilhada, no outro lado do rio. E o contrato de autonomia foi para o brejo.

Entretanto, educadores resilientes lograram devolver autonomia às escolas e dignidade ao ato de ajudar a aprender. Os tempos são outros…

Com Amor, o vosso sempre e resiliente avô José.

 

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XXV)

Aveiro, novembro de 2039

No mês de Novembro de há vinte anos, voltei a Aveiro, porque educadores éticos me chamaram. Naquela altura, eu ainda podia atravessar o oceano, para os ajudar. Nessa viagem, encontrei o país da educação entretenido com mais uma tentativa de reforma de um obsoleto modelo de ensino. A intenção do Secretário de Estado era bem fundamentada e generosa, mas o projeto definhava. Nos tenebrosos meandros de um monstro burocrático, que dava pelo nome de Ministério da Educação, obscuros interesses se impunham. E a euforia dava lugar a cedências, à aceitação de imposições, à deturpação do discurso e das práticas, nada que eu já não tivesse visto, nos mais de cinquenta anos de professor de escola pública.

Analisei as fichas de avaliação do chamado “projeto de flexibilização curricular”. Deparei com itens como: “% de carga horária a gerir livremente”, ou “carga horária (minutos) por ciclo/nível e ano”. Eram contas de merceeiro, que denotavam um determinado conceito (e prática) de currículo. Impunemente, meirinhos ministeriais continuavam a contrariar o disposto na lei: “primado dos critérios de natureza pedagógica sobre os critérios de natureza administrativa e à possibilidade de adoção de soluções organizativas diversas”.

Eu já vinha do tempo do ministro Veiga Simão, que vira a sua reforma ser reformada. Após o Abril de 74, participara da chamada “animação pedagógica”. E a animação foi sufocada por ação de burocratas do tempo da velha senhora, ainda incrustados em tenebrosos interstícios ministeriais. Na década de oitenta, novo impulso e renovada esperança: o PIPSE prometia mudança e não recusei o meu contributo. Mas a euforia deu lugar ao desânimo. Até que um projeto de “gestão flexível” surgiu na década seguinte, reacendendo as cinzas de anteriores projetos. Tudo em vão. Imposições de natureza administrativa deitaram por terra os argumentos de natureza científica. Até que, em finais dos anos 90, fui incumbido de dar “parecer” sobre uma “proposta de reorganização curricular”. Com mais dois companheiros do Conselho Nacional de Educação”, foi elaborado o “parecer”, que questionava a introdução do “estudo acompanhado”, da “direção de turma”, a “área de projeto” e aulas de “educação cívica”, meros paliativos e tentativas de desresponsabilização curricular.

No culto do curricularmente correcto, os fazedores de opinião refugiaram-se num discurso de conveniência, os estudiosos remeteram-se para a teorização de teorias e os professores consentiram múltiplas manipulações. Mais uma vez, a montanha parira um rato. O que ficou de “inovador”, no final do século XX, foi dar aulas de 90 minutos, uma dose dupla de tédio. No século XXI, algo semelhante se anunciava como “inovador”: passar de trimestre para semestre… A “gestão flexível” do currículo quedava-se reduzida a um mero jogo de somas e subtrações de tempos letivos.

Um despacho ministerial com data de 6 de Setembro de 1975 rezava assim: as modalidades organizativas deverão ser diversificadas, deve ser combatida a tendência para um ensino meramente livresco, deve atender-se à dupla perspectiva da educação do indivíduo e do cidadão. Quase meio século decorrido, creio ser pertinente perguntar: como se poderá flexibilizar o currículo e reorganizar a educação, se não cuidamos de refundar a Escola?

Voltarei ao assunto, porque sei que vos interessa. Por agora, apenas vos envio o amoroso abraço deste velho, mas resiliente avô…

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XXIV)

Vila Céu de Mapiá, outubro de 2039

Há, mais ou menos, uns trinta anos, duas mães me perguntaram se poderíamos acolher os seus filhos na Ponte. Compreendemos a preocupação daquelas mães. Uma delas, professora universitária, tomara consciência dos malefícios da velha escola. E assim nasceu a primeira experiência de “homeschooling”, como lhe chamaram na década de 1980.

Na década anterior, havíamos passado do ensino centrado no professor para a aprendizagem centrada no aluno, com ganhos de excelência acadêmica e inclusão social dos alunos. Muitas matrículas nos eram solicitadas. Porém, o domicílio dos novos alunos distava dezenas de quilômetros da “domus” Escola da Ponte. E, conforme rezavam os normativos, as matrículas deveriam ser feitas na escola da área de residência.

Naquele tempo, a Internet ainda era miragem. Para evitar que as crianças fossem forçadas a longas viagens e para estabelecer contato, tínhamos o telefone fixo. Não havia regulamentação de homeschooling, restava-nos a transgressão fundamentada no direito humano a uma boa educação. Até que uma lei foi publicada. E os dois jovens passaram a desenvolver os seus estudos, em casa… ouvindo aula.

O que aprendemos com a experiência? Que o homeschooling não é solução para os males que afetam o sistema educativo. Entre ouvir aula em casa, ou ter aula na escola, preferíamos a aula na escola, dada por professores qualificados e competentes. Aprendemos que o “ensino domiciliar” era um “salve-se quem puder”, estratégia de quem podia “salvar-se”, porque tinha recursos para tal.

Trinta anos decorridos, a situação se repetiu… no Brasil. Em 2018, participei na mesa de abertura de um seminário sobre homeschoolig, realizado em Brasília. Fui receptivo ao convite, porque, em 2016, havia acompanhado a “Global Home Education Conference”, tendo ficado deveras preocupado com o conteúdo de algumas as intervenções, sobretudo de ditos “especialistas”, para os quais as ciências da educação eram ciências ocultas e que acreditavam – era de crença que se tratava – que se poderia aprender sozinho, com o auxílio de um dador de aula caseiro, ou da Internet.

No Brasil, acompanhei o processo de descolarização dos filhos de um amigo. Ele sabia que aprendemos uns com os outros, na atribuição de sentido, na produção de conhecimento, criando vínculos. Para garantir uma boa educação para os seus filhos, não os matriculou numa escola, fê-los sujeitos de aprendizagem, no lar e em contextos comunitários. O elevado nível de proficiência alcançado pelos filhos do meu amigo permitiram-lhes ganhar bolsas de estudo no MIT. Mas, por ter optado por uma educação integral, integrando escola, família e comunidade, o meu amigo foi condenado por… “abandono intelectual dos filhos”.

Naquele tempo, compreendemos que o “ensino domiciliar” era mero paliativo de um modelo educacional obsoleto e pretexto para prática de trabalho infantil, ou instrumento de catequese fundamentalista. E agimos, porque o prefixo “multi” tem origem no latim multu. Juntamo-lo ao vocábulo “domiciliar”, para que se entendesse que a educação acontecia em múltiplos espaços. Raramente acontecia num prédio a que era costume dar o nome de “escola”. Mas acontecia nos lares, nas bibliotecas públicas, nas igrejas, nas empresas, na Internet, nos campos e florestas, nas ruas e praças… E, para que acontecesse, não carecia de decreto. Não fazia sentido legalizar o “ensino domiciliar”. Fazia sentido falar aprendizagem… multidomiciliar.

Acolhei o amoroso abraço do vosso avô José

(continua)

Por: José Pacheco

 

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Estórias da Velha Escola (XXIII)

Paranoá, maio de 2041,

A uns trina anos atrás, em todo e qualquer congresso, quando estava prestes a intervir, escutava os pedidos de sempre:

Pode dar-me a sua “apresentação”? Qual é o power point que o senhor vai usar? 

Eu não uso power point – respondia.

Mas insistiam: Todos os palestrantes usam. E o que é que o senhor vai dizer? 

Não sei. Ainda ninguém me fez perguntas.

O técnico voltava as costas e ia instalar o power point de outro palestrante.

Quando colocado num palco, tentava desfazer o simbólico desnível, descendo do pedestal, transformando a palestra numa oportunidade de diálogo. Começava por perguntar:

O que quereis saber?

Sucedia um já esperado silêncio. Sabia que aqueles admiráveis educadores haviam passado por cursos de ouvir respostas a perguntas que jamais fizeram. Sabia que davam aulas feitas de respostas a perguntas que os seus alunos não faziam. Compreendia que tivessem deixado de perguntar. E eu falava sem dizer nada, até que que a primeira pergunta surgisse. Depois, a conversa fluía. Naquele tempo, a introdução ao currículo oficial estava repleta de termos como: habilidades, direitos de aprendizagem, educação integral, competências. Mas, em tempos de pós-verdade e de crise ética, como diria o amigo António Nóvoa, a sofisticação do discurso contrastava com a pobreza das práticas.

“Aula” era a palavra mais frequente no discurso, no pressuposto de que uma “flexibilização curricular” pudesse ser concretizada em sala de aula. Os especialistas e legisladores ignoravam as três dimensões curriculares – a da subjetividade, a da comunidade e a universal – dado terem optado pela importação de modismos curriculares. Acontecia “transbordamento curricular” (mais uma vez, citando o amigo Nóvoa…) ao invés da definição de um conjunto de aprendizagens consideradas essenciais. Para quê “aprender” “mesóclises, dígrafos e piroclásticas”? Onde estava contemplado tudo o que ia além do cognitivo? Eu perguntava aos professores:

Quantas vezes precisastes de utilizar a raiz quadrada no decurso das vossas vidas?

A resposta invariável:

Nunca.

Então, por que razão se terá de ter aula sobre raiz quadrada, fazer teste e perceber que quase nada aprendemos? Acaso algum dia precisemos de utilizar a raiz quadrada, em escassos minutos de Internet a aprenderemos.

O vosso avô bem avisava que, com as “flexibilizações” em curso e as pseudo-inovações nada mudaria. Mas quase ninguém lhe dava ouvidos… nas escolas, as aulas eram enfeitadas de projetos e tecnologias digitais. Um laptop para cada aluno, a troca de um quadro negro por uma lousa interativa, a adoção de práticas escolanovistas e de outros arcaísmos pedagógicos. E o direito à educação continuou a ser negado a milhões de jovens, ao longo de vários anos.

No final de um congresso, a última pergunta a mim dirigida foi mais um desabafo:

Eu concordo com o que você fala, mas eu não posso deixar de dar aula.

Eu sei colega – retorqui – E deve continuar dando aula. É aquilo que o ensinaram a fazer. Eu valorizo esse saber fazer, aquilo em que você é competente.

Você não entendeu! Eu quero deixar de dar aula, porque aprendi outros modos de ensinar e de aprender.

Então…?

Então…? – respondeu, visivelmente emocionado – É que, na minha faculdade, todos os semestres, eu sou obrigado a apresentar um cronograma de aulas e sou obrigado a… dar aula.

Fez-se um silêncio semelhante ao do início da “palestra”. Então, que me diz? – insistiu o professor.

Devolvi a pergunta ao auditório. Ninguém reagiu. Eu também nada disse. A tristeza e a indignação me emudeceram.

Acolhei o amoroso abraço do avô José.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XXII)

Planaltina, setembro de 2019

Naquele recuado tempo, a nossa escola acolhia todos aqueles que outras escolas rejeitavam. Chegavam “desmotivados”, violentados. Certo dia, chegaram mais dois jovens, que as escolas da região diziam não saber como ensinar.

O mais velho agredia-se com auto-mutilação. O seu corpo era todo uma cicatriz.

Não demorou a procurar um objeto cortante. Dirigiu-se à cozinha, mas não conseguiu pegar a faca, que viu em cima da banca. A “comissão de ajuda” estava atenta.

Sempre que algum “aluno difícil” (como os designavam) aportava àquela espécie de hospital das almas, um grupo de alunos se voluntariava para constituir uma “comissão de ajuda”. Era o valor solidariedade posto em ação…

Irritado, por não poder cortar-se, foi até ao banheiro e urinou no cesto do lixo.

No dia seguinte, havia reunião de assembleia. Lá estava o novo aluno, rodeado pelos colegas da “comissão”, olhando à sua volta, sem saber o que se passava. Era a primeira vez que participava da assembleia.

O Pedro foi o primeiro a pedir a palavra. E disse:

Amigos, nesta semana, um de nós urinou no cesto do lixo.

O novo aluno sobressaltou-se. Iriam acusá-lo? Castigá-lo? Todo mundo sabia ter sido ele o autor da façanha. Olhou à sua volta. Ninguém olhou para ele. E o Pedro continuou:

Quem pode ajudar um de nós a não voltar a fazer isso?

Toda assembleia ergueu o braço. O novo aluno, também. Compreendeu que ninguém o iria acusar, ou punir. Estavam ali para o ajudar. Ele era “um de nós”.
O mais novo dos recém-chegados vinha acompanhado pela mãe:

Ó senhor professor, tenha cuidado! O meu filho morde em todo mundo. Ele foi expulso da outra escola, porque mordia os colegas e até mordeu a mão da professora. Ela até teve de ir ao hospital…

Fique tranquila, minha senhora. Isso não irá acontecer aqui – repliquei.

Ai, vai, vai, senhor professor! Estou muito preocupada, não vá ser expulso pela terceira escola…

Sim – respondeu a mãe do mordedor – o meu filho já foi expulso duas vezes. Já não sei o que mais posso fazer por ele. Nem a psicóloga pode ajudá-lo.

A meio da manhã, quis saber do recém-chegado. As crianças disseram-me para falar com o André.

O André, 15 anos de vida de filho de prostituta, um metro e oitenta, tinha chegado à Ponte meio ano antes. Havia deixado um professor em estado de coma, na escola de origem. Mas já era um ser humano maravilhoso, como todos os seres a quem é dada a oportunidade de ser.

Então, André, disseram-me que cuidaste do nosso novo aluno.

É, professor. Ele andava para aí, feito bobinho, tentando morder todo mundo. Chamei-o. Mandei-o sentar-se junto de mim e falei-lhe ao coração.

E como foi? O que lhe disseste

Disse-lhe que não poderia fazer aquilo. Que eu era pior do que ele, quando vim para cá, mas que agora sou um homem, que respeito os outros e os ajudo

E então…?

Então, professor? Mal acabo de lhe explicar como somos, ele pegou-me na mão, para me morder?

E então…?

Então, professor? O senhor desculpe, mas acertei-lhe um tapa. Ele tremeu, deitou uma lagriminha. Eu puxei-o para mim, dei-lhe um abraço. E perguntei:

Vamos ser amigos? Ele disse que sim. E vais voltar a morder? Ele disse que não. Está resolvido, professor.

Não aprovei o tapa. Mas que foi um tapa amoroso, lá isso foi.

Recebei o amoroso abraço do vosso avô Zé.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XXI)

Óbidos, junho de 2040,

Hoje, consegui pôr a funcionar um velho computador. Revendo a Ester nuns vídeos (antigamente, vídeo era um filme em formato digital), a memória me leva a falar-vos, mais uma vez da escola onde o vosso pai aprendeu a ler e a ser. E da origem do projeto “Fazer a Ponte”.

A Maria Ester era uma professora experiente, amorosa, como todo o professor que o é. Mais de vinte anos, de escola em escola, até chegar à Ponte. Enquanto eu, a Maria José e a Maria Luísa dávamos os primeiros passos dos mais de quarenta anos de um projeto, a Maria Ester, a Maria das Dores e outras professoras “esperavam para ver”. Até que a amorosidade venceu a dúvida e ambas aderiram a um sonho tornado realidade. Nos últimos anos de vida profissional, a Ester trocou a solidão da sala de aula pelo trabalho em equipe. E já éramos cinco.

O projeto “Fazer a Ponte” foi obra de muitos professores, que despertaram para a necessidade de assumir um compromisso ético com a educação. E por que evoco a memória da Ester? Porque a Ester, que deu aula durante mais de vinte anos, zangou-se com um pai de um aluno, que exigia que o seu filho tivesse aula…

Quando um professor me perguntava como poderia ensinar um aluno a construir portfólios de avaliação, por exemplo, eu respondia:

Dando aula.

Perante a réplica do professor – Mas, eu poderei continuar a dar aula? – acrescentava:

Se és competente a “dar aula”, é isso que terás de continuar a fazer, valorizar o que te faz sentir seguro e disponível para mudar.

E a mudança acontecia. Porém, numa das minhas andanças pelas escolas, deparei-me com um professáurio:

Eu já cá ando há muito tempo. Dou boas aulas. E quem não aprende vai para as aulas de recuperação, ou para o especial!

Então, se bem entendi, do modo como o colega trabalha, nem todos aprendem…

Claro que não! Nem todos podem aprender!

E você vai continuar a trabalhar desse modo?

Quem é você, para me dar lições de ética? – retorquiu, visivelmente agastado.

Nem precisei de lhe explicar…

Como outras professoras, a Ester rumou do “tradicional” para um modo de trabalhar que a todos garantisse o direito à educação, porque, para além de ser competente dando aula, decidiu ser ética. E até teria motivo para continuar dando aula… Eis uma mensagem de uma mãe de aluno do “tradicional”:

Lembro-me do exato momento em que descobri como se lê, mas não me lembro das aulas, ou melhor, não me lembro das aulas das outras professoras, pois lembro com nitidez e muito carinho (e até fico emocionada quando lembro), as aulas da Dona Margarida. Hoje, pensando nela, sei que o que a diferenciava era a relação de amor e respeito com o outro, o carinho como tratava os seus alunos, a forma mágica que impunha às suas explicações da matéria. Nunca mais nos vimos, mas ela é uma lembrança preciosa que guardo no meu coração.

Por volta dos anos oitenta, a Aurora enviou-me um e-mail (não sei se vos recordais desse tipo de mensagem, mas é do tempo da vossa juventude):

A Ponte é respeitada pelas pessoas que estão verdadeiramente empenhadas na educação dos seus filhos. O que eu mais gostaria de ensinar aos meus filhos é que o infinito está onde nós quisermos.

A Aurora era mãe de duas crianças e tentava ajudar os professores da escola dos seus filhos na busca de caminhos novos. Há pais e mães que reforçam a mesmice e outros que apoiam professores que arriscam rupturas e interpelam inércias.

Com Amor,

O vosso avô José

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XX)

Muriaé, setembro de 2039.

Queridos netos,

Decorria o mês setembro de 2019… Se Paulo Freire ainda estivesse entre nós, faria 98 anos. Mas, nesse aniversário, quem recebeu um presente fui eu. Exatamente, no dia em que a minha amiga Alessandra me enviou um saboroso texto, que celebrava a memória de do insigne Mestre, como se ele estivesse nos falando: Não existe tal coisa como um processo de educação neutra. Educação, ou funciona como um instrumento que é usado para facilitar a integração das gerações na lógica do atual sistema e trazer conformidade com ele, ou ela se torna a ‘prática da liberdade. O educador tem o dever de não ser neutro.

A minha amiga tinha consciência da quota parte de responsabilidade que aos educadores cabia pela situação política de então. Ser humano sensível e educadora atenta a tempos decadentes, Alessandra acreditava ser possível a humanização da escola. mas, entristecia com situações com que se deparava na escola: Na reunião de professores, escutei tanto a expressão “falta de interesse”. Essa tristeza embaça nossa visão, deixando de enxergar a responsabilidade que temos em meio a esse caos. Terminamos o dia cansados, desmotivados e sem esperança na possibilidade de mudar. Isso me faz pensar que desejar a felicidade já não basta, do ponto de vista intelectual, desejo a mim e a todos nós a LIBERDADE (assim mesmo escreveu, em maiúsculas!). Meus jovens alunos usam muito a expressão “zerar a vida”, conhece? Significa conquistar algo muito importante e esperado. Ora pois, irei zerar a vida!

Era imenso o seu desejo de ser feliz na profissão e de oferecer o melhor de si àqueles que com ela conviviam e aprendiam. Havia compreendido que não se trata de dar aula bem, mas sim de ser um professor bom, incomodado, decente, sensível, ético. Como todos os professores deveriam ser. No decorrer de um encontro de formação, essa inesquecível professora havia perguntado se toda a sua conduta estava errada, ao que respondi: Não! Seu trabalho não está de todo errado. Mas há muitas outras coisas certas que talvez você não esteja fazendo. Ela sabia o que seria preciso fazer… e com palavras suas concluo esta carta:

Os furiosos destes novos tempos e especialmente deste novo Brasil não sabem, mas doar beneficia tanto o doador quanto aqueles que recebem. Sempre acreditei na necessidade de se criar vínculos para conquistar o respeito, a amizade, e claro, a aprendizagem. Mas uma questão me tirou a paz. Se meu trabalho é tão bom e elogiado, se a minha relação com os alunos e a equipe é prazerosa, por que há alunos que não aprendem? Enfim, como lhe disse pelo Skype, não tenho ideia ainda sobre o que acontecerá nesta jornada, mas claramente sei o que não quero. Não quero ficar imersa neste contexto de coisas irrelevantes e medíocres. Se não posso mudar a minha escola, quero mudar a minha sala de aula. Se estiver comigo, eu consigo.

Acompanhei-a por muitos anos. Com outros educadores, num tempo em que havia quem pugnasse por “tirar Paulo Freire das escolas”, quando Freire nunca nelas tinha “entrado”. Atravessamos tempos sombrios, ajudando a levar Freire para o chão das escolas. Éramos freirianos, graças a Deus!

Na última viagem a Portugal – digo última, porque já me faltam forças para viagens transatlânticas – vos ofereci a obra do Mestre, que eu mais admiro: Pedagogia da Esperança. São escassas as páginas, mas abundantes as mensagens esperançosas, nele contidas. Lede o livrinho. Sobre ele conversaremos, se quiserdes.

Com Amor, o vosso avô José.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XIX)

Lagos, junho de 2039

Queridos netos,

No final de década de 20, era preciso reagir perante a insanidade das práticas de algumas escolas. Por que não questionar a aula? Seria tabú?

O professor auleiro (neologismo criado pelo meu amigo Pedro Demo) não ensinava aquilo que dizia; o professor transmitia aquilo que era, contribuía para a reprodução e perenização de uma cultura pessoal e profissional feita de solidão.

Escutei um auleiro dizer que ainda “ensinava pelo método fônico” e que nas suas aulas, “quem aprendia, aprendia, quem não aprendia ia para uma classe de reforço”. O auleiro ensinava “do modo que antes se ensinava, do mesmo modo que fora ensinado”: todo mundo ao mesmo tempo, o tempo de uma aula. Sozinho, o docente estabelecia o “ritmo da aula”, em detrimento do ritmo de cada aluno. Ao cabo de alguns meses, sugeria, que os alunos que “não acompanhavam o ritmo da aula” expressão bizarra!), recebessem aulas de “recuperação”. O esforçado auleiro não sabia, mas ignorava os estilos de inteligência de cada aluno e desprezava o repertório linguístico de cada criança.

Os seres humanos poderiam aprender a ler numa diversidade de metodologias – havia métodos de base silábica, os analítico-sintéticos, os globais de palavras, contos, ou de frases, havia abordagens fonomímicas e fotossintéticas – mas o método fônico continuava sendo quase hegemônico. E, entre o fônico e a aula, muitos milhões de seres humanos sofriam de analfabetismo literal e funcional.

Continuava-se a enfeitar o obsoleto modelo de ensino com aulas de apoio, ou de reforço, com games, “qualidade total”, cursos de “planejamento de aula” e até “capacitações para dar aulas com alegria”. Insanas cosméticas eram ensaiadas: o trimestre era substituído por semestre, livros didáticos de papel eram substituídos por manuais digitais. Na sociedade do espetáculo, medidas demagógicas prolongavam a agonia da escola da aula. A mídia mostrava reportagens de sessões solenes, nas quais secretários de educação entregavam laptops às criancinhas. Por mais inverosímil que, hoje, vos pareça, vos juro que era o que acontecia naquele tempo.

Oito décadas atrás, o meu professor ordenou que, de memória, eu recitasse um poema, que se incrustou na memória de longo prazo. Terminava assim: Que os adultos, Senhor, / Sofram tormentos sem fim. / Mas as crianças, Senhor, / Por que lhes dais tanta dor? / Por que padecem assim? Sempre que evocava estes versos, me interrogava: se, dando aula, se condenava milhões de seres humanos ao analfabetismo, por que razão se continuava dando aula?

Precisávamos cultivar uma paciência idêntica à do Jó, de que nos falava a Bíblia. Mas, por que permitia o Senhor que as crianças padecessem assim?

Em 2039, ainda encontramos resquícios desse absurdo ritual: professor sozinho, no frontal anônimo de aula igual para todos, ignorando que cada aluno apela a diferentes estilos de inteligência e tem ritmo de aprendizagem diferente dos restantes. Por isso, sugeri que se embalsamasse um auleiro e o conservássemos numa sala de aula do museu da pedagogia, para que se pudesse explicar às gerações vindouras esse estranho ritual, esse nefasto hábito.

Com amor,

O vosso avô José.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XVIII)

Monsanto, outubro de 2039

Netos queridos,

No Portugal de há cerca de vinte anos, uma lei abria caminhos de mudança. A
portaria 181 de 2019 propiciava a concepção de uma nova construção social
de educação. O “plano de inovação”, que essa lei propunha que se elaborasse,
justificava-se por fazer cumprir os princípios e finalidades da educação nacional
e os objetivos do ensino básico e secundário, conforme expresso na
Constituição e na Lei de Bases. Assumia-se o princípio de que era preciso
rever os conceitos de educação e de aprendizagem, bem como reconfigurar as
práticas escolares.

Menos de uma semana decorrida sobre a publicação da portaria, li uma caterva
de “planos de inovação”, com uma sensação de dejá vu. A redação era
irrepreensível, sem erros ortográficos, nem de pontuação. Porém, de inovação
esses planos nada continham. Guardei alguns no meu museu particular e
comentarei o seu conteúdo, colocando em itálico as citações.

O texto era pródigo em “lugares comuns” do discurso pedagógico: práticas
pedagógicas inovadoras; desenvolvimento de competências do século XXI,
como o pensamento crítico, a comunicação (…)atender aos diferentes ritmos e
necessidades dos alunos; promover o trabalho autónomo e diferentes estilos
de aprendizagem centrados no aluno… Os “planos” estavam repletos de jargão
científico e de citações de autores consagrados: o professor gere o currículo,
estabelece o papel do aluno no processo de ensino-aprendizagem; o papel do
professor na definição de estratégias de ensino-aprendizagem diversificadas e
do uso da tecnologia de uma forma crítica e inteligente; o professor partilha
com os seus pares estratégias, recursos e práticas; como profissional reflexivo,
comprometido e empenhado com a sua profissão.… e por aí seguia um
relambório, que confirmava que a sofisticação do discurso contrastava com a
miséria das práticas.

Em algumas escolas da “flexibilidade curricular” passava-se de trimestre para
semestre, utilizando uma bolsa de horas para criar mais uma disciplina,
colocando mais uma hora aqui e menos uma hora ali, como quem fizesse
contas de mercearia. E alguns dos “planos de inovação” apelavam à
gamificação, o que sugeria que a escola se transformasse num imenso casino.

Por essa altura, o Low-Performing Students, da OCDE dizia-nos que não havia
país participante do PISA (era um ranging de países, com referência aos
resultados obtidos em provas) que pudesse afirmar que todos os seus alunos
de 15 anos de idade alcançavam um nível de linha de base de proficiência em
matemática, leitura e ciência. Reconhecia-se que o modelo instrucionista – o da
escola da aula – era incapaz de a todos assegurar o direito à educação.

Cingapura, o primeiro lugar do PISA, extinguia os rankings. E na Catalunha, os
colégios jesuítas extinguiam as aulas. Era sabido que classificação não era
avaliação e que inovação não combinava com sala de aula, mas era afirmado
nos ditos “planos de inovação”: todas as salas de aula podem ser inovadoras.
No início deste século, o amigo Nóvoa dizia: no futuro, não haverá salas de
aula. Mas os “planos” falavam de míticas salas de aula do futuro. E, entre
práticas fósseis e tímidas aproximações ao paradigma da aprendizagem,
decorria o projeto da “flexibilidade curricular”. Por esse caminho, se poderia
perder mais uma oportunidade de mudança. Do que aconteceu vos darei
notícia em próxima carta.

Com amor, o vosso avô José

Por: José Pacheco

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