Open post

Estórias da Velha Escola (XVII)

São José do Rio Preto, novembro de 2040,

Queridos netos,

O burro do Manuel Pândego merece mais uma referência nestas cartas, porque ele não era apenas justo, ele era sábio. E um sentimental, como, mais adiante, iremos ver.

Se há quem afirme ser a pedagogia uma arte e uma ciência, juntemo-lhes o quanto baste de ternura, sem a qual o ato de educar não passa de um ritual sem sentido.

O burro do Manel Pândego admirava a doçura que a professora Joana punha nos gestos e compreendia que das zangas dos catraios não restava azedume que o tempo não curasse. Pelo facto de (na qualidade de burro) lhe ser vedado o acesso à sala de aula, quedava-se pela observação de aprendizagens que a escola produzia, sem que se apercebesse de que as produzia e sem cuidar de avaliar a produção. Ainda que fosse considerado burro, entendia – bem melhor do que os que tal não se consideram! – que uma brincadeira de crianças pode ser geradora do maior desenvolvimento cognitivo, social, afetivo, emocional… Tanto quanto a esperteza de um burro pode discernir, reconhecia num improvisado futebolum espaço de socialização por excelência.

O recreio estava prestes a acabar e o jogo estava empatado. Mais empurrão menos chapada, as equipas concordaram que a canelada que o Tónio Melro dera no Pita Borrada era digna de ser sancionada com pénalti. E remate do Neca Gaio era golo certo. A claque rejubilava. A professora Joana já chamava para dentro. O ambiente estava de cortar a respiração…
O Neca Gaio tomou balanço e encheu o pé num tiro certeiro. Mas a trajetória da bola foi gloriosamente travada pelo Eurico. Para que se respeite a verdade dos factos, acrescente-se que a defesa não foi nada convencional. A bola, desviada pela Mafalda, foi-lhe ao nariz…
A Mafalda era a única rapariga da turma com estatuto de futebolista. Era muito requisitada por ambas as equipas para ocupar a posição de zagueira. Jogava sempre à defesa (no futebol como no resto…). Interpretando à letra a táctica que diz ser o ataque a melhor defesa, se deixava passar a bola, não deixava passar o adversário. Foram muitos os joelhos esfolados e respectivas expulsões acompanhadas de queixinhas à professora.

Temendo as represálias da mestra, a Mafalda manifestava o maior dos arrependimentos. Para quê? A professora Joana a acolhia na ternura dos seus braços e trocava a reprimenda por um abraço. Nem uma palavra de reprovação, apenas um olhar fofo de esperança. A Mafalda – considerada pelos vizinhos como “durona e arrapazada” – acabaria por perceber que o amor e a paciência operam milagres. Foi a primeira a socorrer o Eurico, sem se importar que o seu lencinho ficasse manchado de sangue.

Enquanto a turma regressava ao afã habitual, o Eurico era acolhido pelas mãos carinhosas da professora Joana, que o curava das lesões do corpo e do espírito. Testemunha discreta de pequenos dramas, logo que ficou sozinho, o burro deixou escapar algumas lágrimas, que deslizaram pelo pêlo encharcado.

O Manel Pândego justificava o frequente lacrimejar do burro com o facto de o pasto ser desabrigado e facilmente o velho animal se tomar de resfriado. Enganava-se, mais uma vez. A lágrima que aflorava ao canto do olho era pura emoção, reflexo da estima que nutria pela pequenada e, em particular, pela professora Joana.

Que aquilo não era apenas uma escola sabia o burro (um verdadeiro doutor!) que, por nunca poder chegar a lugares de decisão, sabia da realidade educativa próxima muito mais que os que sobre ela decidem à distância.

Recebei um beijo do vosso avô José.

Por: José Pacheco

Open post

Estórias da Velha Escola (XVI)

Vila Nova de Gaia, outubro de 2040,

Netos queridos,

Hoje, falar-vos-ei de um burro muito especial…

Na falta da generosidade do Homem, o Manel Pândego aproveitava a generosidade da Natureza-Mãe para atestar a pança do burro, motor do seu carrinho de ganha-pão. Ao fim da tarde, espetava uma estaca entre as ervas, onde atava uma corda que poucas largas dava ao animal.

Procurando dar tempo à terra para que novos tufos verdes despontassem, talvez sem o saber, o Manel Pândego aplicava uma das leis básicas da Economia, promovia um desenvolvimento sustentado à escala do universo do burrico. Mas a alimária não lhe ficava atrás em esperteza, que nestas coisas da Economia e do Desenvolvimento, os ditos irracionais dão, muitas vezes, lições aos que, por terem nascido homens e não asnos, se julgam mais inteligentes.

A lógica do senhor Manuel era a de que, através da rotatividade do pasto, a erva em redor teria tempo para voltar a despontar. Enganava-se. No seu afã de sobreviver, o burro desenhava círculos concêntricos em torno da estaca, deixando rasa a verdura, indo tão longe quanto lhe era permitido. E, logo que o senhor Manuel virava as costas ao animal, na falta de um relvado a sério, a criançada ocupava o terreno ao lado, no “muda aos três e acaba aos seis”.

Quando a bola ia fora, o jogador encarregado do lançamento de linha lateral nunca perdia a oportunidade de sacar de um seixo e mirar no pobre do burro, para o afastar da linha limite da grande área. Por via da desleal concorrência, o pobre do burro via-se confinado à meia-lua e a uma consequente redução drástica da ração diária.

O Pedro era um dos matulões da equipa. Lançamento que fizesse para o molho de jogadores junto à baliza adversária, se desviado a tempo, era golo certo. Mas o burro estorvava-lhe a corrida de balanço. Naquele dia, antes que a chuva aparecesse, já o animal tinha sido mimoseado com uma chuva de pedrinhas de impacto certeiro e eficaz.

A partida foi interrompida aos quatro a três, devido à forte carga de água que se abateu sobre o improvisado estádio. Os jogadores ainda aguentaram as primeiras pingas, mas a bátega engrossou e as equipas regressaram ao balneário que, o mesmo é dizer, ao alpendre da escola.

Só a pretexto da debandada, o animal procedeu a uma breve e pacífica “invasão de campo”. Mas a chuva amainou e eis que regressavam as equipas ao terreno de jogo com o Pedro à frente do magote.

Em escassos segundos, o burro – que era paciente mas não era estúpido – tinha-se desviado do caminho de acesso ao “balneário”. Pastava junto à linha de fundo com a corda frouxa e rente à terra. À passagem de um Pedro em imparável correria, o burro do esticou o pescoço e a corda surgiu súbita e incontornável, a três palmos da grama. O Pedro ainda ensaiou um salto acompanhado de um golpe de rins, mas acabou por aterrar de cabeça junto à marca de grande penalidade.

Terá o burro agido por receio de atropelamento? Terá esticado a corda por instinto? Por burrice? Não creio.

Diz-se dos burros que são pacientes. Mas, na minha opinião, com aquele súbito puxão, o burro do Manel Pândego quis mostrar ao Pedro um cartão amarelo. Ou (para escapar à gíria futebolística) fez ver ao Pedro que, disciplinarmente, há momentos em que a corda estica…

Num breve parêntesis, faça-se a moral implícita na parábola: que até os burros percebem a diferença entre autoritarismo e autoridade e sabem quando esta deve ser exercida; que, no domínio dos afectos, mais vale um burro sensível e atento que muitos manuais de formação pessoal e social.

Com amor, o avô Zé.

Por: José Pacheco

Open post

Estórias da Velha Escola (XV)

Ceilândia, setembro de 2039

Netos queridos,

Para compreenderdes as vicissitudes por que a Educação passa no vosso tempo, tereis de conhecer as do passado. Há exatos vinte anos, encontrei no youtube (recordais-vos desse velho site de compartilhamento de vídeos?) uma entrevista com o António Nóvoa. Nessa entrevista, assim se manifestava o amigo António: “Palestras? Seminários? Isso serve pouco!”

Naquele tempo, ninguém duvidava da sabedoria do António. Ninguém poderia pôr em dúvida a competência profissional e a autorizada palavra desse mestre. Ele era o representante de Portugal na Unesco e, talvez, a voz teórica mais coerente e consistente no campo da educação. E o que nos dizia o António nessa entrevista?

Afirmava que o modelo educacional centrado no professor, na aula, na turma, deveria acabar. Que seria necessário estabelecer uma nova relação com o conhecimento e definir outro papel do professor. Este não deveria ser mais o professor individual, solitário, em sala de aula, mas integraria um coletivo, trabalhando em equipe. Dizia que a informação estava em todo o lugar: na biblioteca, na Natureza, nas pessoas, na Internet, mas de forma caótica, desorganizada, semeada de fake news… que seria necessário desenvolver senso crítico, autonomia moral e intelectual, ensinar a pesquisar, a aprender. O papel do professor já não deveria ser o de transmitir informação, mas o de ajudar a dar sentido ao conhecimento, para que os alunos dele se apropriassem.

Não aquela coisa de… dar aula! – exclamou o António, ao referir-se ao “panorama da formação no Brasil, muito problemático, tal e qual no mundo” (sic). Seria preciso colocar o foco na formação profissional dos professores:

Há universidades que têm uma formação extraordinária… do ponto de vista teórico. Mas, não têm um espaço de formação de professores, onde se produza a profissão.

Sábias palavras! A Universidade deveria estar ligada à profissão e às escolas. Os três ou quatro primeiros anos da vida de professor eram os mais importantes, definiam a sua profissionalidade. Por isso, a formação continuada deveria ter como locus principal a escola, na produção de novas práticas. E o mestre acrescentou:

Não é preciso reinventar a roda! Temos de evoluir de uma lógica de disciplinas para uma lógica de problemas da Terra, das cidades, respeitando as dimensões estruturantes das disciplinas. Não adianta ir a cursos, seminários, acções de formação. Tudo isso é um negócio imenso, que existe no mundo, que existe no Brasil, também. É um negócio que serve de muito pouco para a formação dos professores. A gente ouve umas pessoas falar de umas coisas, mas pouco adianta. A formação de professores não é ir ouvir palestras. Isso de pouco serve.

Sei que acreditais no que o vosso avô vos diz. Mas, se no reino do virtual ainda restar cópia da entrevista:

Formação Continuada De Professores – Palestras, Seminários? Isso Serve Pouco 

Talvez porque a entrevista não fosse conveniente a podres poderes, não “viralizou”. Não convivira aos donos dos “sistemas de ensino” que as famílias, a sociedade e as escolas se apercebecem da falência do sistema de ensinagem e da possibilidade de se criar um de aprendizagem.

Isso acontecia, vinte anos atrás. Se, hoje, os vossos filhos aprendem o necessário para viver uma vida decente, devem-no ao porfiar do António e de esperançosos, éticos e anônimos educadores daquele tempo.
Recebei o amoroso abraço do avô Zé.

Por: José Pacheco

Open post

Estórias da Velha Escola (XIV)

Vargem Grande Paulista, setembro de 2039,

E aqui estamos, vós em Portugal e o vosso avô já regressado aos brasis, para assistirmos ao desfecho do episódio narrado na missiva anterior.

A Licinha e as companheiras estavam quase a desistir. A praga do pai do Chico Melro – que era o opinion maker da aldeia – arrastava os restantes para uma conclusão lógica e em tudo oposta às intenções das professoras. Isto é, sem livro de leituras ou de fichas, as criancinhas nunca haviam de chegar a doutores. As novas professoras deveriam seguir o exemplo da Dona Ofélia, mestra de gerações, que nunca se esquecia de rezar as orações que encimavam as páginas do livro único de leituras e de mandar fazer leitura continuada, enquanto corrigia as lousas e as sebentas. Ela é que sabia. E todos naquela sala lhe haviam passado pelas mãos (em sentido literal, aliás…).

Quase vencidas pelo pai do Chico Melro, as professoras ainda esboçaram uma terceira tentativa. O derradeiro e rebuscado argumento utilizado era o do desperdício que significa comprar vinte ou trinta livros todos iguais, se os alunos poderiam beneficiar do acesso a diferentes leituras, se comprassem livros de histórias, ou temáticos.

Se esta é uma ideia difícil de dar a entender a “especialistas”, era missão quase impossível de passar a pais. Mas, como se virá a concluir, tal como os professores, os pais dos alunos das nossas escolas eram seres inteligentes. E se tudo lhes fosse explicado de modo que entendessem, acabariam por perceber que as coisa não têm de ser como sempre foram.

Então, a Licinha interpelou a mãe da Ritinha, que já dormitava na última fila de carteiras:

Ó senhora Adélia, a senhora comprou a “Caras” desta semana?

Com certeza, minha senhora, mas em que é que isso vem ao caso?

Diga-me quantas pessoas são lá em casa.

Ora bem, somos eu, o meu Carlos, quatro filhinhos, o meu sogro (fora a minha sogra que Deus a tenha em eterno descanso…), mais os meus pais que ainda são vivos, graças a Deus, minha senhora. Mas olhe que não a estou a perceber…

Eu já lhe explico. Então, são nove pessoas ao todo, não é?

É, sim, minha senhora.

E a Dona Adélia só comprou uma revista?

Então, quantas havia de comprar? – retorquiu a Dona Adélia.

Não comprou nove, pois não? – atirou a Licinha, triunfante.

Agora é que você me lixou! – concluiu a D. Adélia.

Entendi, minha senhora. Você é professora, você é que sabe… – disse o pai do Chico Melro.

A assembleia não tugiu nem mugiu. E dali se foi a Licinha, ao encontro da Dona Glória.

Quando me perguntavam qual era o principal obstáculo à mudança nas escolas, respondia que o maior obstáculo era eu. O maior obstáculo era a minha cultura, era a cultura pessoal e profissional dos professores, que deveria ser somada à representação que as famílias e a sociedade tinham de escola.

Se os pais amavam os seus filhos e para eles desejavam o melhor, se os professores amavam os seus alunos e para eles queriam o que de melhor houvesse, a reelaboração cultural aconteceria.

Recordais-vos da carta anterior? Da troca de colheres mal não viria ao mundo e a Dona Glória poderia continuar essa troca até a último dos seus dias. Mas, o desfecho desse episódio poderia ser metaforicamente explicado. No dia seguinte, a professora Licinha mudou de tática: ao sair de casa, deixou a xícara com o café sobre a mesa da cozinha, sem a colher do açúcar e… sem a colher do café.

Em próxima carta, tentarei fazer uma moral da história. Mas podereis fazer a vossa moral…

Com Amor, o vosso avô José.

Por: José Pacheco

Open post

Estórias da Velha Escola (XIII)

Quinta do Conde, setembro de 2039,

Netos queridos,

Há uns vinte anos, andei por aqui, na companhia da Teresa e da Paula, duas maravilhosas educadoras, com quem também aprendi a criar comunidade. A recordação dessa boa companhia leva-me a contar-vos outra estória. Há por aí quem considere que os professores são criaturas em estado de graça, enquanto outros tendem a considerá-los uns desgraçados. Nem oito, nem oitenta. Os professores não são anjos nem demónios. São, como as outras pessoas, seres aprendentes. Se aprendem ou não, isso depende da vontade e da circunstância, como adiante iremos ver.

A Dona Glória trabalhava a dias em casa da Dona Licinha e era muito bem tratada. Não havia dia algum que a patroa lhe não deixasse sobre a mesa da cozinha o pagamento do serviço, uma chávena, um punhado de bolachas embrulhadas num guardanapo, o açucareiro e uma colher. Sob a colher, um papelinho com a recomendação de que não deixasse de a utilizar e não metesse no chá a colher que iria encontrar dentro do açucareiro. A professora Licinha bem porfiava na recomendação. Porém, quando voltava a casa, encontrava a colher do açúcar completamente envolvida no produto, numa placa dura que dificilmente descolava com a lavagem.

Só quando, por via de uma súbita enxaqueca, voltou para casa a meio da tarde, é que a professora Licinha descobriu que a Dona Glória não sabia ler. E, com o cuidado devido à situação, inteligente e atenta (como qualquer professora), a Licinha reflectiu sobre o episódio. E pensou que talvez tivesse alguma relação com um problema que vinha defrontando na escola.

Na escola da Licinha, as professoras tinham decidido dispensar os alunos do uso dos manuais. As queixas sucediam-se. A Dona Augusta, que era a auxiliar de acção educativa, servia de porta-voz à crispação dos pais:
Como é que podemos ajudar os catraios nos trabalhos de casa, se não temos livros para eles lerem a lição? Como é que os miúdos podem aprender se não tiverem livros?
Os mais atrevidos (ou assertivos, como agora se diz) iam mais longe no comentário crítico:
Estas modernices ainda vão acabar mal…
O ambiente naquela escola já não era dos melhores. E as professoras estavam prestes a ceder ao senso comum, de modo a não pôr em risco a sua sobrevivência profissional:

Que se lixe a pedagogia! Se os pais nos deram o seu dinheiro, deixemo-nos de modas. A ideia de comprar livros do Torrado, da Matilde e da Sophia fica para depois. Vamos mas é fazer a vontade aos pais. Compramos os manuais… e pronto!

A Licinha propôs que se fizesse uma reunião com os pais dos alunos, para resolver a situação. Os pais tinham correspondido ao convite. O horário correspondia aos seus interesses e ainda acabava a tempo da desobriga da missa vespertina. Mas a reunião não estava a decorrer do modo mais auspicioso. Às tentativas de persuasão da Licinha e companheiras, o pai do Chico Melro ripostava:

A senhora que me desculpe, mas não concordo com o que a senhora disse!

As professoras bem argumentavam que os manuais continham erros grosseiros, que o peso das mochilas era um perigo para as costas dos meninos etc. Bem insistiam num discurso de código restrito que lograsse chegar à compreensão dos pais, mas o pai do Chico Melro não desarmava:

Está tudo muito bem, as senhoras é que têm estudos e eu só fiquei com a terceira mal feita. Mas… os catraios aprenderem sem livros? Onde é que já se viu?

(continua na próxima carta)

Por: José Pacheco

Open post

Estórias da Velha Escola (XII)

Cacela Velha, maio de 2041

Querida Alice e querido Marcos,

O prometido é devido… Começo esta missiva, explicando-vos (ou fazendo-vos recordar) o que era o facebook. Talvez já não vos recordeis de o terdes usado na vossa juventude.

No início do século, precedendo um tempo de pós-verdade, alguns estudantes de Harvard inventaram uma “rede social”. Nela, os usuários criavam perfis, trocavam mensagens privadas e públicas, fofocavam. Mais tarde, ela foi usada por gente sem escrúpulos semeadores e replicadores de fake news. Poderosos “sistemas de ensino” aproveitavam essas rudimentares tecnologias digitais de informação e comunicação, para congelar e vender inúteis “videoaulas”. E foi nesse tempo que surgiram as famigeradas startups…

Na época chamada de “bolha da internet”, entre o fim do século XX e o prelúdio do século XXI, o termo startup começou a ser usado por grupos de pessoas criativas do campo do empreendedorismo e do capitalismo selvagem. Mas a intervenção dessas startups no campo da educação foi desastrosa, quando contribuíram para confundir inovação com paliativos do modelo instrucionista.

Gurus do digital, empresários e outros debutantes da educação apropriaram-se do termo “inovação” e o deturparam, apoiados por autores de teses sobre inovação, sofisticações teóricas aprovadas por bancas constituídas por quem nunca inovara e legitimadas por instituições que raramente inovaram. Adulterado o conceito, converteram-no em slogan para fins mercantis, curandeirismo, espécie de magia branca, capaz de impressionar as massas, como diria o mestre Lauro. Mas, nesses tempos sombrios, havia quem resistisse, pelo que vos darei exemplo de boa utilização da Internet.

Charles Péguy foi um escritor francês, que faleceu em 1914, na Batalha do Marne. Num dos seus cahiers, escreveu: As escolas existem, disse Deus. Penso que é para desaprender. Inspirado nesse aforismo, há cerca de vinte anos, o meu amigo José publicou no seu facebook um texto com o título “Uma radical desaprendizagem”. Encontrei-o num velho arquivo de computador. Não “viralizou”, porque não convinha a quem, sob o manto diáfano de pseudo-inovações, mantinha a escola e a educação no domínio da ensinagem. Mas não resisto a reproduzi-lo:

Milhares de páginas registam o que é preciso ensinar. O que o preciso aprender. Milhares de horas se despendem na prossecução destes objetivos. Mas antes disso há um vasto programa que é preciso realizar. O de desaprender: os modos de ver, de olhar, de respirar, de pensar, de tocar. O de raspar a tinta com que nos embotaram os sentidos, como dizia Caeiro. Pois, o que é aprender senão desaprender, mudar uma rotina, um hábito, uma crença?

Desaprender o modo magistral de dar aulas. Desaprender uma relação pedagógica fundada no medo. Desaprender a indiferença, a alienação. Deitar fora milhares de conteúdos que não servem para nada. Resistir à tentação de criar novos territórios disciplinares de clausura. A escola precisa de se libertar da imensa quinquilharia que a atormenta. Desaprender os modos tradicionais e formais de prestar os serviços públicos de educação. Ser cada mais pública no sentido de responder às necessidades, às expectativas, às urgências das pessoas. Liberta do jugo e da asfixia das credenciais. Da certificação obsessiva. Desaprender para ousarmos construir uma casa de humanidade.

Naquele tempo, como vedes, havia gente digna, avisada e que avisava.

Com amor (e continuando a desaprender para aprender),
O vosso avô José.

Por: José Pacheco

Open post

Estórias da Velha Escola (XI)

Curitiba, agosto de 2039

Há cerca de vinte anos, li esta notícia: Vestibular na Índia levou 23 jovens ao suicídio.

Venkatesh lutava para segurar as lágrimas, enquanto tirava a carteira para mostrar a foto da irmã. Em 18 de abril de 2019, o dia em que ela descobriu que tinha sido reprovada no vestibular, Thota, de 18 anos, se matou.

Vennela tomou veneno. Chorando, a sua mãe lembrava: Ela continuava repetindo: “como eu pude falhar?”

A competição para entrar no ensino superior na Índia era feroz. E os exames eram cruciais para garantir um lugar em boas universidades, que eram vistas como um caminho seguro rumo a um emprego bem remunerado.

Assim se despedia uma das jovens suicidas: Eu só queria fazer as coisas certas, mas é como se eu fosse uma completa incapaz. eu choro por todas as músicas, livros e filmes q eu amo e q nunca mais vou ver. eu sinto muito, eu sinto mt deixar vcs. eu odeio viver, é só isso.

Não era apenas na Índia que o drama se desenrolava: o dia de volta às aulas era o que mais tinha suicídio de jovens no Japão. De 1972 a 2013, 131 alunos em média tiraram a vida no dia 1º de setembro.

No mesmo ano, a notícia encimada por esta frase denunciava uma muralha de silêncio: Mais uma aluna da UnB tira a própria vida. A estudante era extremamente simpática, muito inteligente, uma pessoa querida, tomou um uma overdose de comprimidos.

Naquele tempo, os professores do Ensino Superior queixavam-se dos baixos índices de proficiência dos alunos do ensino “inferior”. O Ensino Secundário projetava a culpa no Básico. O Básico atirava culpas para a Educação Infantil, que responsabilizava as famílias, não podendo as famílias responsabilizar o Criador…

O exame de acesso à universidade era mero instrumento de darwinismo social e de morte. Já, então, era tempo de trocar um ensino pretensamente superior (superior em quê?) por uma aprendizagem igualitária. Mas ainda levaria muito tempo e muita morte até que esse inútil e nefasto exame fosse erradicado.

Felizmente, há cerca de duas décadas, uma nova geração surgia, cuidada por seres humanos sensíveis, capazes de buscarem a perfeição possível e que viam com olhos que veem muito para além da aparência das coisas. Assim escrevia a Amanda no seu facebook (um dia, vos explicarei o que era uma “rede social”):

Ontem ganhei o meu melhor presente. Meu afilhado nasceu e tive a honra de poder participar e registrar essa chegada tão pura e emocionante. De longe, o momento mais sublime que já presenciei. Te apresento o mundo, Lucas. Com todo meu amor, te recebo de braços e coração abertos, para cumprir meu papel de madrinha da maneira mais singular que puder! Te desejo um feliz início de ciclo, recheado de conquistas e alegrias. Que você desfrute de todas as doçuras da vida, aprenda com os tropeços e jamais tenha medo de sonhar e voar alto. Para tudo, estarei aqui. Te guiando e protegendo, entre erros e acertos, mas acima de tudo, te amando incondicionalmente.

A modernidade remetera-nos para uma ética individualista. Mas, seres sensíveis como a Amanda ajudaram educadores a exercitar a consideração positiva incondicional, de que falava Carl Rogers, a praticar a confirmação do Martin Buber e o amor incondicional postulado pela Alice Miller. O Lucas está na universidade, sem passar por inúteis e nefastas provações, pois, há já muito tempo, os vestibulares foram extintos.

Com Amor, o vosso avô José.

Por: José Pacheco

Open post

Estórias da Velha Escola (X)

São Paulo, agosto de 2039

Netos queridos,

Encontrei o seguinte texto na revista O Ocidente:
“O Governo pugna pelo bom carácter civil, moral, do ensino. O aluno cheio de maldade não obedece à palavra e tem a certeza da impunidade. O professor quer restabelecer a ordem e não consegue, porque a onda de insubordinação cresce. Os mestres quase nada ensinam à falta de disciplina que não há. As crianças que são bem comportadas e desejam aprender pouco aprendem. Que interessante é uma escola bem disciplinada! Mas onde a há que deixe de ser perturbada por algum de entre muitos que, saindo do seu tugúrio [leia-se: “periferia”, “favela”] vem incorporar-se na comunidade limpa e asseada e eivá-la dos vermes da destruição moral, corrompendo pelo mau exemplo os corações bem formados, as consciências limpas.

Esta notícia foi publicada em maio de… 1887.

Também li o depoimento de um anônimo, escrito no início da década de 1950: Tínhamos que estar com respeito e atenção. A professora mantinha a disciplina com uma palmatória. E, quando a professora já estava cansada, mandava um dos alunos bons bater nos colegas que soubessem menos. E, se batessem devagar, ela batia neles e batia a nossa cabeça contra o quadro. O anônimo autor deste depoimento dá a entender que, por via dos métodos em voga, andavam “tolhidos de medo, era medo por todos os lados, tinham medo de ir para a escola e medo de ir para casa”.

Dado que o professor não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é e porque a aprendizagem é antropofágica – não aprendemos o que ouvimos, mas aprendemos o outro – muitos alunos se transformaram em adultos medrosos e egoístas. Dado que a aprendizagem acontece por imitação e pelo exemplo, políticos e outros bonsais humanos, que ignoravam a existência de uma educação humanizadora, impuseram a escola da violência simbólica, a escola “militarizada”, a mesma de que foram vítimas.

Há vinte anos, não nos surpreendíamos quando, no fim de uma sessão da Câmara, o chão do plenário ficava coberto de lixo, víamos o chão do auditório juncado de copos plásticos e outros detritos, ali deixados por ilustres deputados.

A escola hegemônica e “militarizada”, que tínhamos, ia semeando ignorâncias e outras violências. Ela fora concebida no início da Primeira Revolução Industrial, correspondendo a necessidades sociais da Prússia Militar: treinar jovens para a guerra, jovens obedientes a um regime disciplinar inquestionável, respeitadores de uma hierarquia imposta. A escola nasceu “militarizada” e os professores do século XIX não sabiam que a autoridade não rimava com autoritarismo. Que a escola não deveria preparar para a cidadania, mas que se aprende cidadania no exercício da cidadania, no exercício de uma liberdade responsável, na autodisciplina, na verdadeira disciplina, que não resulta de imposições e submissões, mas pressupõe o exercício do diálogo, a desocultação de perversos modos de relação.

Um século após a publicação do texto na revista O Ocidente, no ano de 1988, uma “Proposta Global de Reforma” dizia-nos que o adestramento não define a educação e que a educação é incompatível com a organização autoritária da vida. Mas, há cerca de vinte anos, num tempo de pós-verdade, assistimos a um “regresso ao passado”, assistimos a novas “militarizações”.

O pesadelo cessou, felizmente. Hoje, libertos de “militarizações”, os tempos são outros… Disso vos falarei em próxima carta.

Com amor,
O vosso avô José.

Por: José Pacheco

Open post

Estórias da Velha Escola (IX)

Sintra, abril de 2040

Hoje, falar-vos-ei dos conturbados do tempo em que o vosso avô se iniciou na arte e ciência de aprender e de ajudar a aprender.

Já lá vão mais de setenta anos, andei por terras do meu amigo António. Quando ele me permitiu partilhar a sua “sala de aula”, pude testemunhar a relação de respeito e autoridade, que ele mantinha com os seus alunos. O respeito, que permitia garantir o direito à aprendizagem. A autoridade, que dispensava atitudes autoritárias. O António fez-me evocar outros professores…

Conheci um, que me afiançou que, no primeiro dia de aulas de cada ano lectivo, “dava toda a corda à turma”, esperava que a desordem se instalasse e que o líder da desordem se revelasse. Então, “parava a romaria e aplicava no mariola uma sova monumental, que era remédio santo para todo o ano”.

Tal e qual me disse esse professor de “pedagogia musculada”. Mas, foi-me concedido o privilégio de reconhecer a distância que vai da violência “disciplinadora” desse professor de antanho à ternura dos braços de uma Ana, que viveu por dentro o quotidiano de um bairro degradado. Entre outros dramas, conheceu o de uma criança por todos considerada “violenta”, hóspede quase permanente de um “quarto escuro”, onde cumpria longas horas “de castigo”. Porém, nem o negro isolamento domava a juvenil fúria. Em sucessivas vagas, a soco, a pontapé, à dentada, forçava a fuga das companheiras, abreviava o seu regresso ao “quarto escuro”.

Recém-chegada, a Ana depressa se apercebeu daquele círculo vicioso de violência, “crime e castigo”. Poucos dias decorridos, aproveitando um momento de distracção da endiabrada rapariga, prendeu-a nos seus braços. A pequena ainda esperneou, sem conseguir escapar ao amplexo. Resignada, julgou chegado mais um momento de recolher à punitiva escuridão. Tremeu, quando a Ana a beijou na face. E já quase não opôs resistência. Sentiu o abraço como abraço. Mas não demorou a procurar mais sarilhos. Voltou – qual pássaro sem ninho – ao aconchego dos braços e ao afago dos lábios da paciente Ana. Algumas idas e vindas depois, o íman do afecto prendeu-a definitivamente. A pedagogia do abraço vencera a da punição.
A vida dos professores está recheada de acontecimentos dignos de narrar e, como não há duas sem três, aqui deixo registo de outra peculiar experiência, protagonizado por um “professor primário”.

O dia começou num vaivém entre vinte e tal crianças a chorar e meia dúzia de ansiosas e renitentes mães, coladas ao umbral da porta, ora espreitando a descendência pelos interstícios, ora penetrando, para assoar o nariz do herdeiro, ou dar-lhe um beijo de despedida. Era o primeiro dia de aulas.

Respeitosamente, o professor Rui encaminhou as ansiosas progenitoras no sentido da saída. Ao cabo de uma longuíssima meia hora, logrou encostar a porta: “com licença, desculpe, faz favor, minha senhora, sim, sim, pode ficar descansada, claro, pois, é natural, coitaditos, não é? As gotas, pois, não me esquecerei, pois, dá-me licença, se fazem favor, sim, minha senhora, não me esquecerei, com certeza…” Com mão firme e beijinhos nas crianças, conseguiu fazer descolar da porta os dedos da última mão da última mãe, deitou um olhar àquela que seria a sua “primeira classe” e respirou tão profundamente quanto a ansiedade lho permitia.

Cuidou de acalmar os pequenitos que, a todo o momento, ameaçavam retomar o choro. Depois da tempestade, parecia ter chegado o merecido sossego. Era assim, o dia-a-dia de um “professor primário”, feito de paciência e de beijos.

Recebei um beijo à moda da Ana e do Rui, mas do vosso avô José.

 

Por: José Pacheco

Open post

Estórias da Velha Escola (VIII)

Porto, fevereiro de 2040

Queridos netos,

Pedi à Eliza que me emprestasse palavras para esta carta, excerto de um e-mail de há trinta anos:

Não imaginas a minha alegria de ser compelida a ler, mesmo quando os olhos se fecham involuntariamente e a cabeça e o corpo clamam por repouso.  Obrigada, muito obrigada, por reacender a chama no meu coração de educadora. As pessoas sempre fugiram de mim, quando eu era criança, por perguntar demais e nunca estar satisfeita.  Hoje, faço questão de responder a quaisquer perguntas que meus três filhos (e 200 alunos) façam. Converso muito com eles, não me canso de responder a tantas perguntas que fazem. E, quando não sei, o digo, e vamos procurar juntos. Com a minha filha viajo no tempo e no espaço. É incrível o elevado grau de entendimento e espiritualidade destas crianças, muito mais evidente do que o dos adultos! Adoro instigá-las a questionar sobre o que veem, leem, ou pretendem conhecer. É fantástico, maravilhoso o brilho nos seus olhos, quando fazem alguma conexão com algo que já sabiam, ou que finalmente faz sentido.

Era frustrante ver essa chama apagar-se, a cada ano que passavam, dentro e fora de um prédio a que chamavam “escola”, apesar de haver maravilhosos professores dentro dos prédios. Ou a ocupar seu tempo com banalidades e passatempos inúteis, em sites de relacionamento artificial, em joguinhos que as faziam esquecer da própria vida, consumindo o que um mundo materialista oferecia como sendo verdadeiro. Há trinta anos, a Eliza questionava professores e pais: o que estamos a fazer de nossas vidas?

Por saber que a chama se apaga e a memória dos homens é curta, reabri a gaveta onde guardo os recados dos alunos e folhas de diário. Encontrei alguns registos dos idos de 76: Todas as manhãs, o Arnaldo já chega cansado de duas horas de trabalho. Antes de rumar à escola, o Rui foi ao lavrador buscar o leite, levou os irmãos menores ao infantário, fez os recados da Dona Alice, arrumou a casa toda. O Carlos falta quase todas as tardes. O pai manda-o distribuir por toda a vila as folhas que dão notícia dos falecimentos da véspera, ou tem que carregar as alfaias dos funerais.

O tempo amareleceu as folhas dos cadernos onde as crianças deixaram ficar pedaços de vida. Aos nove anos, o Fernando disse o que queria ser quando fosse grande, escreveu os projetos do seu futuro, para sempre destruídos num estúpido acidente de bicicleta, que ele comprara com os primeiros salários de tecelão. Outros não chegaram a adultos, por se deixarem envolver nas teias que o tráfico tecia. Houve, também, quem abandonasse a escola e optasse pelas lições que a escola da vida oferecia. Outros diziam querer mudar de vida

E o que me diziam os pais?

O senhor professor que me diz? Eu acho que o Jorge já tem idade para ir com o tio para as feiras. Se não vai, só me apanha vícios, más companhias.

Ela já não anda aqui a fazer nada. E olhe que o que ela gosta mesmo é da costura. O senhor fecha os olhos… e eu nem me importo que me cortem no abono. Assim, sempre sei que ela está vigiada e já vai ganhando algum para a casa.

A Gracinda? Que quer, Professor Zé? A gente é pobre e ela já anda, vai para oito meses, na confecção do Senhor Carlos. Ele ainda não lhe pagou, mas diz que, se continuar assim, lhe dá dez contos por mês, não tarda nada. Mas, se ela disser alguma coisa, ainda vem parar-me à rua! Ela, agora, até faz sábados e, às vezes, até domingos. Mas que quer que lhe faça? Quando há uma encomenda urgente, também trabalha à noite, mas só quando lhe pedem...

E, assim, entre a escola e vida, se construíam e destruíam destinos.

Com amor,

O vosso avô José.

 

Por: José Pacheco

Posts navigation

1 2 3 143 144 145 146 147 148 149
Scroll to top