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Estórias da Velha Escola (VII)

Guarulhos, maio de 2039

No tempo em que éreis jovens, o vosso avô cumpria a sua diáspora e era frequentador assíduo de aeroportos, como aquele de onde vos envia esta carta.

Guarulhos foi palco de peculiares episódios. Certamente, ser-vos-á difícil de acreditar, mas, naquele tempo, imperava o medo de atentados. Para voar, o vosso avô era revistado, obrigado a tirar o cinto e a despir o calçado. Descalço e segurando as calças, passava por uma máquina, rezando para que o alarme não soasse e fosse sujeito a desconfiados olhares e apalpações. A via sacra continuava na área de embarque, onde, raramente, os voos partiam no horário previsto de partir.

Certa vez, foi o Virgílio que se atrasou e perdeu o voo. Encontrei-o, esbaforido, inconsolável, quando tentava encontrar um voo alternativo:

O taxista não teve culpa. Hoje, voltaram as aulas e era o horário de entrada na escola. O trânsito estava infernal! Engarrafamentos…

E por que é que todas as escolas começam à mesma hora? – repliquei.

O Virgílio não tugiu, nem mugiu. Mas lançou-me um olhar assassino. E a conversa ficou por aí…

Ele era funcionário do ministério da educação. Já lhe havia dirigido essa pergunta, inúmeras vezes. E muitas outras, que aguardavam resposta:

Por que há férias escolares, intervalos, trimestre, semestre, ano letivo? Por que razão uma aula dura 50 minutos? Por que são duzentos os dias letivos, se nós aprendemos nos 365 dias de cada ano?

Por mais inverosímil que possa parecer, crede que assim era, antigamente. Felizmente, o tempo dos atrasos e do medo pertence ao passado. E do passado recupero outro episódio.

O Egídio, adepto confesso da imposição de cadências uniformizadoras e horários-padrão, tomou consciência da diversidade rítmica quando menos esperava e como, a seguir, se verá.

No intervalo de um congresso, careceu de satisfazer uma elementar necessidade fisiológica. Dirigiu-se ao banheiro. A célula fotoelétrica funcionou e fez-se luz. Foi até ao fundo do corredor, encostou-se ao mictório e deu início à aliviação. Para não sair a meio da palestra, a contenção urinária havia sido longa e as águas a verter eram mais que muitas.

Subitamente, a luz foi-se. Sem deter a micção, o Egídio ergueu um braço e acenou, voltou a acenar e… nada! O banheiro manteve-se imerso na mais profunda escuridão. Ao trocar de mãos, para acenar com o outro braço, escapou-se-lhe a coisa, e os urinários fluidos verteram-se, calças abaixo, numa torrente morna, que não tardou a sentir fria e desconfortável, até aos sapatos. O Egídio sacudiu-se. Depois, hirto e sofrido, empreendeu o regresso, percorrendo o longo corredor às apalpadelas, praguejando de cada vez que introduzia as mãos tateantes em humidades não-identificadas.

Acabou o périplo encaixado entre dois lavatórios e embatendo frontalmente contra uma traiçoeira parede, que as trevas ocultavam. Meio tonto da pancada, continuava a acenar com a sinistra. Contornou o obstáculo, com a mão direita colada à dorida fronte. E, ao contornar a fatídica parede, o automático, que estava ajustado para o tempo-padrão de uma urinação normal, disparou novamente. E fez-se luz!

Curioso e inteligente como qualquer professor, ao cabo de uma breve pesquisa, o Egídio apurou que os toques de campainha tinham sido introduzidos nas escolas do século XIX. Já ninguém se recordava dos objetivos visados na longínqua introdução desse dispositivo. Mas, decorrido mais de um século, a sineta manualmente acionada do tempo dos avós dos professores continuava a soar a mando de um computador.

Recebei um beijo do avô

 

Por: José Pacheco 

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Estórias da Velha Escola (VI)

Cotia, janeiro de 2040

O episódio aqui descrito ocorreu no tempo do WhatsApp e do Facebook, que, há uns vinte anos, eram modos de as pessoas inventarem fofocas e conversarem sobre insignificâncias. Talvez já não vos recordeis desses apetrechos da era em que imperavam as chamadas tecnologias digitais de informação e comunicação. Estávamos no tempo das ditas “novas tecnologias”, mas, na verdade, eram tecnologias digitais rudimentares. Não raras vezes, utilizadas para manipular, ou criar dependentes de ágeis polegares.

Recordo-me de te ver, querido Marcos, às voltas com sites de design, na Internet. E da Alice pesquisando numa plataforma digital disponibilizada pela faculdade de psicologia. Foi numa empresa de produção dessas plataformas que o episódio incluso nesta carta se desenrolou. O dono da empresa quis conversar comigo e foi até Cotia, à Escola do Projeto Âncora. Conversamos:

Professor, você tem aqui um belo projeto. Trabalham com plataforma de ensino?

Não. Nós criamos uma plataforma, mas de aprendizagem – respondi. 

De aprendizagem? E essa plataforma tem o currículo todo, os conteúdos?

Não. Aqui, os jovens não consomem currículo. Eles constroem currículo, conhecimento, a partir de projetos.

Que tipo de projetos os professores preparam para os alunos?

Não preparam. Constroem com os seus educandos.

E têm lousa digital nas salas de aula?

Não há salas de aula. Nem lousas digitais.

Como? Então… – E a conversa ficou densa, carente de explicitação. Para a suavizar, perguntei:

Quais são as vantagens de uma plataforma de ensino?

A vantagem é que os alunos podem escolher o que querem estudar.

Dá-me um exemplo, por favor.

Por exemplo, em determinado dia, um aluno escolhe estudar… raiz quadrada.

E por que razão ele escolhe estudar raiz quadrada nesse dia?

Após alguns segundos, com ar de quem reflete, respondeu:

Nunca tinha pensado nisso.

Pois não… Naquele tempo, os alunos consumiam um currículo “pronto-a-vestir”, servido por uma “base curricular”, em plataformas digitais. Aulas invertidas e híbridas quase dispensaram o professor. Mais tarde, os educadores compreenderam que tinham feito um grande disparate.

Os pais queixavam-se de ver os filhos amarrados a computadores, a videojogos, esquecendo que, quando bebés, ao invés de chupeta, lhes tinham posto nas mãos um computador, para que não gritassem, para que se calassem. As “novas tecnologias” transformaram-se em panaceias do modelo escolar. Apenas serviam para o consumo acéfalo de conteúdo, sem resquícios de cooperação, na dependência de vínculos afetivos precários estabelecidos com identidades virtuais.

A Internet era generosa na oferta de informação. Tudo o que um professor pudesse “ensinar” estava disponível, de modo mais atraente, num computador. Os professores mantinham-se ancorados em práticas obsoletas, servidas em lousas digitais, ou replicando aulas congeladas no YouTube. O modo como utilizavam a Internet fomentava imbecilidade e solidão. As escolas tinham-se enfeitado de informação sem cuidar da comunicação, sem lograr desenvolver autonomia e senso crítico.

Nesses recuados tempos, a democracia viveu tempo sombrios. A sociedade padecia de medo, egoísmo, fundamentalismos. Foi, então, que educadores atentos se aperceberam da sua quota parte de responsabilidade. E, no início dos anos vinte, a crise cedeu lugar a novas práticas sociais, o espectro de novas inquisições se desvaneceu. Chegara o tempo de usar o digital ao serviço da humanização da escola.

Com amor,

O vosso avô José

 

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (V)

Petrópolis, novembro de 2039

Netos queridos,

Passei muito tempo no chão das escolas, ajudando educadores e aprendendo com eles. Com os jovens e não para os jovens, construía roteiros de estudo do currículo da subjetividade. E logo surgiam as inevitáveis perguntas, que me davam a conhecer indícios de necessidades, desejos, sonhos, que pudessem dar início a projetos de vida.

O que queres saber?

Os jovens nada respondiam.

O que queres aprender?

Quase sempre, tinha o silêncio por resposta. E insistia:

O que queres fazer?

Por vezes, respondiam que “queriam fazer matemática”, ou “língua portuguesa”. Mas, quando lhes perguntava o porquê da escolha, encolhiam os ombros e nada acrescentavam.

Então, passava ao terceiro pilar da educação:

O que queres ser? – Não acrescentava “quando for grande”, porque perguntar isso a uma criança constitui insulto. Invariavelmente, recebia por resposta:

Eu posso dizer aquilo que quero fazer? Eu posso dizer o que eu quero ser?

Ao cabo de alguns anos de escutar respostas a perguntas que jamais fizeram, os jovens tinham desistido de perguntar.

Cumprido o tempo de matar a curiosidade em sala de aula, já no tempo em que as crianças ousavam perguntar, vivi uma peculiar situação. Um jovem interpelou-me:

Professor Zé, é verdade que um ser vivo é um ser que nasce, cresce, se reproduz e morre?   

Há muito tempo, havia deixado de dar aula, de dar respostas sem escutar perguntas. Mas, durante muitos anos, eu havia dado aula sobre ser vivo. No início dessas aulas, escrevia no quadro negro a data e o sumário, seguidos da definição do conceito, exatamente, o que aquela criança havia dito. Fiquei feliz por ter aprendido sem que eu lhe tivesse ensinado…

Alguma dúvida, meu querido?

Eu não concordo.

Não concordas com o quê?

Com isso, com o que está no livro.

Respirei fundo, disfarcei a surpresa e a contrariedade.

Por quê? Posso saber?

Pensa um pouco, Professor Zé! – exclamou o mocinho – Se um ser vivo é aquele que nasce, cresce, se reproduz e morre, então eu não sou um ser vivo, porque ainda não me reproduzi, nem morri. E tu também não és um ser vivo…

Logo uma jovem se meteu na conversa:

Também tenho uma dúvida. Escolhi um ser vivo, para o estudar. Foi o bicho-da-seda. Aprendi como se faz a seda. Mas, antes, tive de tirar folhas da amoreira, para dar de comer aos bichinhos. Quando os bichinhos fizeram os casulos, já não foi preciso pegar folhas da amoreira. E a amoreira também deixou de ter folhas. Eu li num livro que as árvores respiram pelas folhas. Então, por onde respiram, quando não têm folhas? Asfixiam? É isso?

Era, também, um tempo em que os professores escutavam. Fazendo jus aos ensinamentos de Dewey e Kilpatrick, envolvemo-nos num projeto. E todos – alunos, professores, vizinhos e familiares – pesquisaram, aprenderam o que era um ser vivo.

Trinta anos decorridos, numa escola de Petrópolis, vi multiplicarem-se idênticas situações, por via do afã de uma maravilhosa educadora de nome Cecília e da sua equipe de projeto.  A Cecília era uma professora que se surpreendia:

Organizaram a folha, contavam nos dedos as letras e iam escrevendo suas palavras. Me solicitaram, vez ou outra, para tirar uma dúvida na escrita, ou dúvidas gerais, tipo “Tia, inhame é legume?” Fiquei um tempo acompanhando o jogo e o envolvimento delas com a brincadeira e com a escrita (…) é bom demais quando se vê sentido nisso. Usar a escrita com autonomia para se divertirem me encantou!

Havia sentido, significado, vínculos, aprendizagem… havia projeto.

Acolhei o abraço do vosso avô José.

 

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (IV)

Lisboa, outubro de 2039

No tempo em que o vosso avô andava de escola em escola, tentando descolonizar mentes jovens, cansava-se de ler textos encimados pela palavra “redação”, formatados em vinte linhas de lugares-comuns. Textos que diziam que a Primavera era uma estação do ano, que os passarinhos faziam ninhos, as flores nasciam nos campos e a temperatura subia nos termómetros.

Naquele tempo, o dia começava, invariavelmente, com a aula de educação físico-motora. Sob a orientação do professor, os alunos cumpriam o ritual diário de voltar a pôr em grupos as carteiras, que a colega do turno da tarde voltaria a colocar todas alinhadas, em filas, voltadas para o quadro negro e para a mesa da professora. Concluído o exercício de musculação, era o tempo de leitura:

Eu gosto muito da Primavera. A Primavera é uma estação do ano, que começa no dia… E daí por diante, até ao inevitável: Depois da Primavera, vem o Verão, que é outra estação do ano muito bonita.

Lido o textinho, perguntei:

Quem escreveu este texto?

De imediato, se ergueram todos os braços e se baixaram, no meio de grande embaraço. Não satisfeito com a reação e sem delongas, passei à leitura do segundo texto, que era clone do anterior, e repeti a pergunta:

Quem escreveu este texto?

Alguns alunos ainda esboçaram um levantar de braço, mas suspenderam o gesto. Ao cabo de uma dezena de leituras, a perturbação inicial deu lugar ao riso. Os alunos tinham percebido a mensagem. E eu propus um novo jogo de escrita, a que todos aderiram sem reservas.  Dessa vez, ditei as regras, de acordo com o Freinet do “texto livre” me havia ensinado. Já que todos gostavam de escrever sobre a Primavera, assim se faria, mas não poderiam recorrer a qualquer das frases colocadas no quadro negro:

Eu gosto muito da Primavera; A Primavera é uma estação do ano; As andorinhas, as flores… etc.

O silêncio tomou conta da sala, um silêncio estranho. Mas, jogo era jogo e teria de ir até ao fim.

Durante alguns longos minutos, os alunos entreolhavam-se, cotovelos assentes nas carteiras, cabeças entre as mãos, gestos de impaciência… até que um deles, após um trejeito no rosto, decidiu escrever algo. O colega do lado espreitou, encolheu os ombros como se dissesse “olha a grande novidade!” e fez par com o primeiro.  Pouco a pouco, juntaram-se os restantes, cada qual na sua vez, que o “ritmo individual”, apesar de não se constituir em conceito cientificamente assumido, era de uma cruel evidência para aqueles que ainda creem que a pedagogia é a arte de ensinar tudo a todos como se fossem um só.

Findo o inesperado jogo, os textos foram recolhidos. Seguindo os mesmos cuidados da primeira sessão de leitura, li o primeiro dos textos e perguntei:

Quem escreveu este texto?

Apenas um braço se ergueu, decidido. Um só braço, uma só mão autora.

Disfarcei como pude a emoção e li o segundo dos textos.

Novamente, um só erguer de braço, sem hesitações, um gesto único, convicto. E assim foi acontecendo até à derradeira leitura daqueles textos… livres.

 

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (III)

São Lourenço de Minas, setembro de 2039

Queridos netos,

Rubem Alves propunha que a educação fosse romântica. E eu propus que fosse, também… conspiradora. Assim, nasceram, no distante ano de 2004, os “Românticos Conspiradores”. Em 2013, os RC publicaram o “Terceiro Manifesto da Educação”. e deram origem à CONANE – Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação. é bom lembrar…

Quatro anos antes, o Rubem visitara a Ponte e isto escrevera no seu livro “A Escola Com Que Sempre Sonhei”: Quero uma escola que compreenda como os saberes são gerados e nascem. Uma escola em que o ponto de referência seja o corpo da criança que vive, admira, se encanta, se espanta, pergunta, enfia o dedo, prova com a boca, erra, se machuca, brinca. Uma escola que seja iluminada pelo brilho dos inícios.

Muitos adultos parecem ter perdido a capacidade de ver o mundo com olhos de inícios e, desse modo, justificam o fecho ao imprevisível. Acredito que não vos deixareis possuir por essa maleita e que conserveis indelével nos vossos olhos a alegria da descoberta. Como a alegria que emana da Angélica, que me trouxe até São Lourenço, para participar de um encontro dos “RC”. Ou como a alegria que a escola do Nelson – a Escola da Ponte – lhe proporcionava.

Certo dia, desapareceu a merenda de duas mochilas. E uma comissão de ajuda se constituiu, para apurar razões e ajudar a resolver o problema. Discretamente, me informaram de que teria sido o Nelson o autor do delito.

Aproveitei uma pausa nos trabalhos do dia e convidei o Nelson para uma conversinha, num cantinho recatado. Abracei-o e nem precisei de lhe dizer o que sabia. Contendo o choro, o Nelson confessou o furto:

Professor Zé, eu tenho fome. A minha mãe não tem que nos dar de comer.

Com um restrito e discreto grupo de professores e vizinhos, cuidamos de que nunca mais a fome açoitasse o estômago da mãe e dos irmãos do Nelson. Mas outros açoites o Nelson recebia…

Chegava pontualmente atrasado à escola. Todos os dias, o professor se sentia tentado e no direito de o interpelar, de lhe perguntar das razões do invariável atraso. Até que, não resistindo à tentação, mas com muito jeitinho, arriscou a pergunta:

Por que chegaste só agora?

O Nelson explicou e o professor ficou a saber que, na noite da véspera e mais uma vez, o pai havia “arreado uma coça na mãe”, que ela até tinha ficado “com pisaduras nas pernas e um olho deitado abaixo”. No meio da confusão, o Nelson, como o mais velho de três irmãos de diferentes pais, fizera uma retirada estratégica, refugiara-se com o resto da família num tugúrio de zinco e tijolo sem reboco, até passar a refrega.

Explicou e o professor ficou a saber como o Nelson conseguiu, já noite adentro e com o pai ausente no “café de senhor Tião”, ajudar a mãe “a ligar a perna e a dar o biberão ao Tiaguinho”. E concluiu:

Acordei com muito sono, professor, porque a Carlinha, a minha irmã do meio, não nos deixou dormir. Chorou a noite toda. E, como nós não temos dinheiro para pagar a eletricidade, não temos luz. Tivemos de esperar pela luz do sol…

E por que foi que a Carlinha chorou tanto? – perguntei.

Os ratos roeram-lhe uma orelhinha.

O Nelson apercebeu-se de que eu estava com dificuldades de achar palavras para preencher o silêncio, que então se fez. E acrescentou:

Mas não importa, Professor Zé. A minha vida é muito triste. Mas, quando eu venho para a escola, sinto cá dentro uma coisa… Olhe, parece mesmo alegria!

Que a vida ilumine os vossos caminhares e, também, os preencha da alegria de viver.

Com amor,

O vosso avô José. 

 

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (II)

Tavira, agosto de 2039

Netos queridos,

Pretendo falar-vos de tempos velhos, para que não se apaguem da memória dos homens. Falar-vos-ei dos conturbados tempos vividos num Brasil doente, que o meu amigo Joelmir assim descrevia, nos idos de 2019: Vivemos o vazio deixado pelo apodrecimento do velho paradigma – que já não nos serve, não por ser velho, mas por negar violentamente a vida humana e não humana – e o parto inconcluso de um novo paradigma, em andamento, que nos permitirá vencer o medo e reaprender a amar. Em outras palavras, vivemos tempos de desesperança e medo, porque o contrário do amor não é o ódio, mas o medo. O ódio é, tão somente, reflexo, decorrência do medo. A questão central aqui é: chegamos a um nível tal de adoecimento [individual e coletivo] e de imperativo da cultura do medo, que nosso maior desafio no século XXI passou a ser reaprender a amar. E eu me perguntava: Qual será a nossa quota parte de responsabilidade? Como teríamos contribuído para esses tempos de desesperança e medo?

O meu amigo Rui Canário dizia-nos que, quando analisávamos o mundo em que vivíamos, quando assistíamos à degradação do ambiente natural e das relações humanas, raramente nos apercebíamos de que tais fenômenos eram consequências de uma determinada escolarização da sociedade. E de que seria necessária e urgente uma nova escola, para um novo mundo.

Nesse tempo, o paradigma da comunicação emergia, mas as escolas a ele se mantinham alheias. A universidade ainda sobrevivia na ilusão da ensinagem, desconhecendo que não se aprende o que o outro diz, mas que se aprende o outro. Sucediam-se as teses sobre o paradigma da comunicação. Paradoxalmente, os seus autores continuavam dando aula, reproduzindo práticas fósseis, incompatíveis com o paradigma que, teoricamente, adotaram.

A quase totalidade das escolas radicava as suas práticas no paradigma da instrução. Já vivíamos num tempo de sociedade em rede, mas a análise social mantinha-se cativa de raciocínios lineares. Até à Terceira Revolução Industrial, dispunhamos de sequências lógicas. Depois, sobreveio o simultâneo, a sobreposição. Na era da pós-verdade,  através das redes sociais, assistíamos a um sutil processo de desumanização. Pejadas de comentários abjetos, acentuavam a degradação moral e ética. Nunca de tantos instrumentos de comunicação nós dispunhamos e nunca tão solitários nos sentíamos.

Um dos desafios da escola era o de tentar compreender as origens e suster o suicídio infantil e juvenil. No Brasil havia aumentado 40% em 10 anos. O suicídio era a segunda razão de morte de jovens no mundo. Em países dos primeiros lugares do PISA, eram frequentes os suicídios e a auto-mutilação. Muitos jovens perderam a vida em ataques a escolas, em Susano, no Realengo… Adultos encharcavam-se em medicamentos, crianças se lobotomizavam com Ritalina. O humano estava em crise.

Mudanças operadas no tecido social provocavam uma sutil inversão de valores,  enquanto as escolas se enfeitavam de computadores e de pseudo-inovações. Mas, no Portugal contemporâneo desse trágico Brasil, um amigo de nome João fazia milagres. Na escola do vosso pai, na do António e em muitas outras, professores competentes decidim ser éticos. E uma nova Educação nascia…

Disso vos falarei em próxima carta.

Com amor,

O vosso avô José

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (I)

Brasília, julho de 2039

Querida Alice,
Quando nasceste, enviei-te cartas com data de 2007. Nelas, eu te descrevi a escola do início de século, augurando uma escola acolhedora na idade de ires à escola. Dois anos decorridos, idênticas mensagens eu enviei ao Marcos. Retomo, agora, o exercício epistolar, iniciado na primeira década do vigésimo primeiro século, para que saibais como era a escola no tempo em que o vosso avô nela se iniciou (em meados do século vinte) e como ela era, cinquenta anos depois, no início dos anos vinte. Quase quarenta anos decorreram sobre o tempo em que viestes ao mundo. Creio ser tempo de enviar novas cartas aos meus netos, quando uma nova humanidade desperta, já distante do início de milénio e das atrocidades cometidas em finais da segunda década.

É confusa esta “viagem no tempo”? Pois ficai sabendo que o tempo não existe, nem estabelece os rumos da humanidade. Foram seres humanos amorosos que, em amorosos atos, geraram impulsos de humanização. Foram educadores esperançosos e éticos que marcaram o tempo da mudança, rumo à idade da educação, que os futuristas dizem ser a década de 40. Por isso, vos contarei uma estória em cada carta, memória de amorosos gestos de há noventa anos. Também descreverei episódios ocorridos há vinte anos, no tempo em que a universidade vos acolheu, para que cumprísseis o vosso projeto de vida.

Nesta carta, escolhi falar-vos de alguém, que, em meados da década de setenta do passado século, erguia comunidades. Com ela aprendi o dom da gratuita oferenda. O seu labor foi quase contemporâneo da publicação do “Escola de Comunidade” do Lauro brasileiro e muito anterior ao enunciado de princípios concebido pelo Ramon da Catalunha.

A Tita, sem ser missionária também não era demissionária. Era professora apenas. E, sem querer saber se Julho era mês de férias, levava à praia crianças e adultos, que nunca tinham visto o mar. E a Fátima, sua companheira de muitas “colónias de férias”, escrevia:
Chegámos à praia felizes por sentir a areia nos pés. Bem depressa cada um se começou a despir, indiferente aos olhares de espanto de gente que nunca tal coisa viu. Os Torres, de cabelos rapados onde ainda se notavam sinais das lêndeas esmagadas pela tesoura da poda, tinham um ar de presidiários famintos da vida e do ar que lhes oferecíamos. Também eles queriam mostrar os seus fatos de banho.

Ó, meu Deus! Que vergonha! Aqueles meninos só têm cuecas! – E, envergonhada, a gentil senhora mandou o filho levar-lhes um fato usado. Ficaram felizes os Torres. E ei-los a correr alegremente para o mar, dispostos a acabar com a raça das cuecas velhas do pai.

Os Almeidas eram tantos! Nove na mulher e quatro na amante. Tinham um distinto ar de ciganos matreiros a quem a vida ensinara a vencer. Naquele tempo, não era preciso mostrar serviço, não havia a preocupação de separar o letivo do não-letivo, de apartar os cognitive skills dos non cognitive skills, nem de fazer contas de merceeiro às trinta e cinco horas letivas obrigatórias. E a minha amiga Tita já sabia que a profissão de professor não é um ato solitário, mas deverá ser solidário, em comunidade. Também sabia que as escolas só funcionam com projetos plurais e que até o Gama, quando viajou para as Índias, foi acompanhado. Porque ninguém dobra sozinho os cabos das tormentas que a vida de uma escola enfrenta.

Com amor,
O vosso avô José.

(*) “Para Alice, com Amor” e “Para os filhos dos filhos dos nossos filhos”.

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Planos de inovação

Um “plano de inovação” justifica-se por fazer cumprir os princípios e finalidades
da educação nacional e os objetivos do ensino básico e secundário, conforme
expresso na Constituição e na Lei de Bases portuguesa. Assume-se o princípio
de que é preciso rever os conceitos de educação e de aprendizagem, bem
como reconfigurar as práticas escolares. E, sobretudo, aproveitar a
oportunidade de mudança, que a portaria 181 de 2019 propicia, para conceber
uma nova construção social de educação.

Menos de uma semana decorrida sobre a publicação da portaria, chegou ao
meu WhatsApp uma caterva de propostas de “planos de inovação”. Li vários,
com uma sensação de dejá vu. A redação está irrepreensível, sem erros
ortográficos, nem de pontuação. Porém, de inovação esses planos nada
contêm. Comentarei o seu conteúdo, colocando em itálico as citações.

O texto é pródigo em “lugares comuns” do discurso pedagógico: práticas
pedagógicas inovadoras; desenvolvimento de competências do século XXI,
como o pensamento crítico, a comunicação (…) permite atender aos diferentes
ritmos e necessidades dos alunos; promover o trabalho autónomo e diferentes
estilos de aprendizagem centrados no aluno…

Os “planos” estão repletos de jargão científico e de citações de autores
consagrados: o professor gere o currículo, estabelece o papel do aluno no
processo de ensino-aprendizagem; o papel do professor na definição de
estratégias de ensino-aprendizagem diversificadas e do uso da tecnologia de
uma forma crítica e inteligente; o professor partilha com os seus pares
estratégias, recursos e práticas; como profissional reflexivo, comprometido e
empenhado com a sua profissão.… e por aí vai o relambório, que, mais uma
vez confirma que a sofisticação do discurso contrasta com a miséria das
práticas.

Em algumas escolas da “flexibilidade curricular” passa-se de trimestre para
semestre, utilizando uma bolsa de horas para criar mais uma disciplina,
colocando mais uma hora aqui e menos uma hora ali, como quem faz contas
de mercearia. E alguns dos “planos de inovação” apelam à gamificação, o que
sugere que a escola se deva transformar num imenso casino.

As aceleradas mudanças sociais e inovação tecnológica, face aos dados da
pesquisa no campo da neurociência e da inteligência artificial, ou da sutil
convergência entre a teoria da complexidade e a produção científica radicada
no paradigma da comunicação, exigem que reconheçamos a necessidade de
operar profundas e urgentes rupturas paradigmáticas, no campo da educação.

Low-Performing Students, da OCDE diz-nos que não há país participante do
Pisa, que possa afirmar que todos os seus alunos de 15 anos de idade
alcançaram um nível de linha de base de proficiência em matemática, leitura e
ciência. Reconhece-se que o modelo instrucionista – o da escola da aula – é
incapaz de a todos assegurar o direito à educação.

Inovação não combina com sala de aula, mas é afirmado nos ditos “planos de
inovação” que todas as salas de aula podem ser inovadoras. O amigo Nóvoa
diz-nos que, no futuro, não haverá salas de aula, mas os “planos” falam-nos de
míticas salas de aula do futuro. E, entre práticas fósseis e tímidas
aproximações ao paradigma da aprendizagem, decorre o projeto da
“flexibilidade curricular”. Temo que, por esse caminho, se perca mais uma
oportunidade de mudança. Oremos…

Por: José Pacheco

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Pensamento, palavra, ação

Em Portugal, foi publicada uma portaria, que aponta para a possibilidade de surgirem práticas inovadoras e cria condições de melhoria do sistema educativo. Logo os costumeiros críticos reagiram sob a forma de artigo publicado em jornal. E (claro!) começando por denegrir o projeto que melhor representa a mudança necessária e urgente: a Escola da Ponte.

Ao longo de mais de quatro décadas, foram muitos os torpes ataques desferidos contra ela. Houve quem tivesse de se retratar e pedir desculpa pelo que publicou em jornais, mas a escola desistiu de reagir aos vomitar de ódio na rádio, em jornais e mesas de botequim. Eu também havia decido ignorar a verborreia dos críticos e os insultos debitados em comentários nas redes sociais. Mas, sarcástico, um articulista afirmou serem as minhas concepções controversas, românticas e lunáticas (sic). Nesse tom continuou num chorrilho de besteiras apoiado por comentários deste tipo: como professor e, por isso mesmo, habilitado para opinar sobre o assunto. Como se o fato de o articulista ser professor lhe outorgasse o direito de detratar e caluniar sem fundamento.

O autor do artigo é professor de História e da sua bibliografia apenas constam obras sobre religião. Presumo que, para esse professor, as ciências da educação ainda sejam ciências ocultas e que continue “dando aula”. Na sua memória de longo prazo, repousam vagas noções de psicologia e de outras disciplinas, que lhe foram “ensinadas” na formação inicial e que não constituem saber. Desapossado do saber, preconceituoso na palavra, equivocado na ação, considera-se proprietário da consciência e da moral dos outros e autorizado a falar do que não sabe e do que não faz.

Muitos autores apelaram à necessária harmonia entre pensamento e palavra, bem como à coerência entre palavra e ação: o pensamento é o ensaio da ação (Freud); pense como um homem de ação, atue como um homem de pensamento (Bergson); a palavra é a sombra da ação (Demócrito); não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão (Freire). E, na peça Man and Superman, Bernard Shaw escreve: “those who can do; those who can’t, teach”, expressão irónica bem ao seu estilo, que a cultura popular traduz por “quem tem competência que se estabeleça”. “Quem sabe faz, quem não sabe ensina”.

A expressão correspondente poderia ser: quem sabe faz, quem não sabe considera-se especialista e no direito de criticar o que não entende. Quem não sabe ensinar desiste do árduo chão da escola, faz um doutoramento qualquer, vai dar aula na universidade, publica papers, faz formação de professores, ganha a vida fazendo palestra de power point, vendendo cursos e… criticando o que não consegue entender.

É longo o cortejo de alarvidades debitadas na comunicação social por pessoas que se arrogam no direito de intervir em domínios em que são meros diletantes. Recusam escutar argumentos contrários às suas crenças. Metem no mesmo saco o experimentalismo (que faz dos alunos cobaias de laboratório) e propostas que, concretizadas, contribuem para garantir a todos o direito à educação. Prestam um péssimo serviço à Educação, pois reforçam preconceitos, contribuem para confundir a opinião pública e até mesmo para deturpar e destruir o árduo trabalho de quem sabe e de quem faz.

Lamento ter de redigir este género de texto. Apresso-me a concluí-lo, com um pedido: que repensem atitudes. E um convite: que aceitem dialogar.

Por: José Pacheco

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Educação com base em valores

Entre os dias 24 e 26 de maio, um educador português teve oportunidade de participar na Global Education Conference, que decorreu no sul da Índia. Coube-lhe a difícil missão de representar o Brasil e a América do Sul. Missão difícil, por ser estrangeiro e a educação do Brasil não ser para amadores…

Projetos de uma Educação com Base em Valores – era esse o tema central do congresso – foram apresentados por países como: Estados Unidos, Israel, Laos, Austrália, Índia, Malásia, Costa Rica, Tailândia Reino Unido… e Brasil. O projeto apresentado pelo representante de Cingapura foi reflexo do excelente desempenho dessa ilha-Estado do Sudeste asiático no PISA. Cingapura ocupa o primeiro lugar nas três disciplinas avaliadas pelo PISA: Ciências, Matemática e Leitura. E outros projetos de idêntica valia foram dados a conhecer.

O propósito de uma educação com base em valores é formar o caráter, isto é, a unidade entre pensamento, palavra e ação. Foi o que Freire repetiu à exaustão, apelando a que a intenção e o gesto do educador fossem coerentes. Inspirados na obra desse mestre, em meados da década de 1970, numa pequena escola do norte de Portugal, professores (freirianos, graças a Deus!) definiram uma matriz axiológica e decidiram instituir práticas coerentes entre pensamento, palavra e ação.

Esses educadores desenvolveram uma práxis fundada no paradigma da aprendizagem. Num tempo em que o “protagonismo juvenil” ainda não fazia parte do discurso pedagógico, concretizaram, na prática, valores como a autonomia moral e intelectual do aluno. Esse projeto foi referência e inspiração de outros projetos.

Trinta anos decorridos, o iniciador desse projeto viajou pelo mundo, conheceu centenas de projetos, visitou milhares de escolas. Até que o Brasil lhe mostrou o quanto estava equivocado. Aprendeu que aprendizagem, para além de ser significativa, não está centrada no professor, nem no aluno, porque ninguém aprende sozinho. No Brasil, aprendeu que a aprendizagem está centrada na relação.

Em regiões de extrema pobreza e violência, identificou novos valores e encontrou caminhos de transição para o paradigma da comunicação. Aprendeu que escolas não são edifícios, que as escolas são pessoas e que as pessoas são os seus valores. Quando esses valores são transformados em princípios de ação, dão origem a projetos. E, porque os projetos humanos são coletivos, o estabelecimento de vínculos amorosos viabiliza e consolida o trabalho em equipe.

Hoje, esse educador colabora com escolas, que desenvolvem uma educação com base em novos valores. A viagem à Índia permitiu-lhe perceber que, apesar de o Brasil ocupar os últimos lugares do ranking mundial de educação em ciências, leitura e matemática, o Brasil é o berço de uma nova educação.

Os projetos apresentados no congresso tinham por referência valores caraterísticos do modelo educacional da primeira revolução industrial: individualismo, competição, egoísmo, exacerbada auto-estima. O projeto representante do Brasil refletia cooperação, empatia, reconhecimento do outro, solidariedade. E o representante do Brasil se interroga: por que vão os brasileiros visitar projetos dos Estados Unidos e do Japão? Por que copiam projetos da Finlândia? Talvez porque não saibam que há muitas finlândias dentro do Brasil.

Finlândias humanizadas…

Por: José Pacheco

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