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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXVII)

Icaraí, 25 de agosto de 2043

Foram tantas e tão profundas as transformações operadas entre agosto e dezembro de vinte e três, que delas será difícil fazer uma síntese. Tentarei. E vos peço que me perdoeis, queridos netos, se a leitura se tornar cansativa. Tenho como intenção deixar para gerações vindouras a descrição de anónimos gestos de amorosidade e coragem. 

Foi a minha amiga Maria Paula quem o disse e escreveu num recadinho do velho facebook:

“”A mudança não vive apenas no amor, mas também na coragem”.

Nos últimos meses de vinte e três, cultivamos estratégias que permitissem ao estudante expressar a sua singularidade e desenvolver projetos de seu interesse, com impacto na comunidade. 

Instalamos dispositivos de integração curricular, para produção de conhecimento multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. Debatemos a função social da escola, tentando romper com a concepção conservadora de ciência, currículo e conhecimento, questionando práticas, compreendendo que a educação é construção coletiva. E reconfiguramos práticas escolares, conferindo-lhes fundamento na lei e numa ciência prudente, com referência ao paradigma da aprendizagem e da comunicação.

Possibilitamos uma participação ecológica, em equipes constituídas por psicólogos, terapeutas, sociólogos e outros agentes educativos. Apoiamos a realização de estágios no contexto de práticas inovadoras, propiciando a reelaboração da cultura pessoal e profissional dos professores. 

Introduzimos a prática da tutoria, dispositivo central na passagem do paradigma da instrução para o da aprendizagem e o da comunicação, garantindo pleno acesso a educação integral, a aprendizagem para além do domínio cognitivo, contemplando o desenvolvimento no domínio pessoal e sócio moral.

Redefinimos o papel do professor, na transição entre o modelo “tradicional” e uma profissionalidade assente na prática da mediação pedagógica, assegurada por “designers educacionais”, através de projetos de produção de vida e de sentido para a vida. 

No âmbito de uma avaliação formativa, contínua e sistemática, implementamos a elaboração de portfólios e criamos uma plataforma virtual aprendizagem. Evidenciamos o desenvolvimento de habilidades e competências individuais e de equipe, tanto por meio de trabalhos finais como rascunhos, de natureza variada, para refletir diferentes tipos de desempenho e não apenas aplicações diretas de conhecimentos.

Efetivamos a autoavaliação através de relatório crítico, inventários de atitudes, registros de observação, registos de incidentes críticos, listas de verificação etc. Isomorficamente, acontecia uma avaliação alinhada com a aprendizagem.

Em suma: passamos do consumo de informação proveniente do discurso do professor ou da leitura de livros didáticos para a produção de conhecimento (currículo) e a partilha de saberes, gerando competências. 

Para tal, introduzimos estratégias voltadas para tornar a instituição educativa espaço de produção de conhecimento e cultura, que conectasse os interesses dos estudantes, os saberes comunitários e os conhecimentos acadêmicos, para transformar o contexto e lhe conferir sustentabilidade.

Respeitada a diversidade, na prática de uma gestão curricular diferenciada, a escola se consituiu em lócus de humanização e oportunidade de inclusão.

No encontro formativo realizado no 26 de agosto de há vinte anos (11:00 de Brasília / 15:00, de Portugal https://meet.google.com/jrj-bfyu-hji), tudo isso foi conversado, “explicado”, criticado…  

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXVI)

Escola Ayrton Senna (Niterói), 24 de agosto de 2043

Netos queridos, para que possais compreender o alcance da mudança operada nos idos de vinte e três, irei manter também nesta cartinha um registro mais ou menos didático, começando por descrever aspectos a serem desenvolvidos no exercício de um singular currículo, um currículo de caráter uno e múltiplo.

A partir de necessidades e desejos de cada ser humano, integravamos conteúdos, competências e capacidades de uma base curricular, visando estimular talentos, cultivar dons do sujeito aprendente.

Acompanhamos os projetos de vida de cada ser humano único e irrepetível. No desdobramento do currículo da subjetividade era respeitada a especificidade do seu repertório linguístico e cultural, os estilos de inteligência predominantes e o seu ritmo de aprendizagem. 

O currículo da comunidade partia de necessidades, desejos, problemas da população do território de contexto, promovendo-se a integração comunitária da escola. O conhecimento produzido no decurso dos projetos (“evidências de aprendizagem”) era vertido em ações, fomentando desenvolcimento sustentável.

Na prática de um currículo da consciência planetária, o processo de autoconhecimento se harmonizava com necessidades e problemas da sociedade contemporânea e do planeta, tendo em consideração os dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as quatro dimensões da sustentabilidade (social, econômica, ecológica e visão de mundo).

Eram desenvolvidas habilidades socioemocionais, assegurando, através do fomento de competências transversais, o pleno desenvolvimento pessoal e social do ser humano.

Nos encontros realizados na Casa Reviver, na CAPUerj, no SESC do Rio, nas escolas (na “Ayrton” fiz a fotografia que junto a esta cartinha) e em organizações do território do Morro do Estado, fomos colhendo informações sobre o potencial educativo da comunidade, um elevado potencial humano nos educadores e a sua decisão de agir. 

Um projeto local sustentável procedia da conceção de um currículo voltado para a formação integral da pessoa, no reconhecimeento da multidimensionalidade da experiência humana – afetiva, ética, social, cultural e intelectual (e até mesmo espiritual) e implementando três dimensões curriculares – a da subjetividade, a da comunidade e a da consciência planetária – de forma integrada e integral.

Nesse tempo, ainda havia quem acreditsse que uma “educação integral” seria passivel de concretização em sala de aula. Havia um certo consenso em torno da utilidade do prolongamento da jornada escolar e na criação de contraturnos de “desculpabilização curricular”. Também havia quem tivesse fé nas virtudes das “aulas invertidas”, nos “ensinos híbridos”, na utilização acéfala do digital e em outras pedagógicas inutilidades. Eram realizados congressos, seminários, encontros vários, nos quais a definição precisa, (fundamentada!) do conceito estava ausente. 

Eu lamentava a participação nesses eventos de educaores que eu admirava, porque as práticas de educação integral eram incompatíveis com a manutenção da escola da sala de aula.

À margem (e até mesmo marginalizados) desses eventos, propiciávamos condições da prática de educação integral, na superação de lógicas fragmentárias, integrando as contribuições da diversidade de instituições e agentes educativos locais, religando a educação escolar com a familiar e com a social, para que a aprendizagem acontecesse a par do desenvolvimento do pensar, com a formação do caráter e o exercício da cidadania.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXIV)

Niterói, 22 de agosto de 2043

Num documento emitido por uma secretaria de estado da educação, eu li:

“Quando a comunidade se constitui como parte atuante da escola, com voz e participação na construção coletiva do projeto político-pedagógico, surge o sentido de pertencimento, isto é, a escola passa a pertencer à comunidade, que, por sua vez, passa a zelar com mais cuidado por seu patrimônio; a escola começa a sentir-se pertencente àquela comunidade e começa a criar, planejar e respirar projetos de interesse de sua gente, da sua realidade.”

Como era “normal”, nada disso encontrei nas escolas desse estado, e foram muitas aquelas que conheci por dentro. Só encontrei extraordinários educadores que, na solidão da sala de aula, operavam “milagres”. E encontrei na obra de Philip Roth (“A Mancha Humana”) o retrato desses educadores:

“Aqui só há essas crianças, aquelas a quem não é possível chegar e a quem não se chega, e como eu sou muito emotiva no que diz respeito aos meus alunos e ao meu ensino, isso afeta todo o meu ser… todo o meu mundo. 

E a escola, a direção… não presta, pai. Temos uma diretora sem a mínima visão do que pretende e temos uma misturada de pessoas a fazerem o que julgam ser o melhor. Mas que não é necessariamente o melhor. 

Quando aqui cheguei, há doze anos, foi formidável. A diretora era, de facto, boa. Deu uma volta completa à escola. Mas agora tivemos vinte e um professores em quatro anos. O que é muito. Perdemos uma quantidade de gente boa. E, há dois anos, passei para Recuperação de Leitura, porque as aulas tradicionais me estavam a consumir. Dez anos do mesmo, dia após dia. Não podia suportar mais.”

Fomos ao encontro dos educadores prisioneiros de sala de aula. E, nas salas de aula, partimos do que eram para quilo que desejavam ser. Partilhamos um “Plano de Inovação”, para reconfigurar práticas educativas, que não se enquadravam na conceção de novas construções sociais de aprendizagem. 

Concebemos práticas integradas, na confluência dos paradigmas da instrução, da aprendizagem e da comunicação, religando instituições (Família, Sociedade e Escola), unindo Arte e Cultura, Saúde e Educação, em projetos de educação integral, numa nova construção social, que a todos garantiu o direito à educação. Promovemos o crescimento do educando em todos os aspetos: físico, mental, intelectual, emocional, afetivo, psíquico, para que ele pudesse atuar e transformar o seu meio, de forma ética, na perspetiva do desenvolvimento sustentável do ser humano e da comunidade em que se integravava. 

Cocriamos protótipos de comunidade de aprendizagem, a partir de círculos de aprendizagem, de turmas-piloto e de “comunidades de referência”.

Ajudamos a autonomizar, legal e cientificamente, projetos com potencial inovador. 

Desenvolvemos processos formativos transformadores e disseminamos novas práticas de desenvolvimento curricular.

Nesse agosto de vinte e três, a resiliente Cecília não se cansava de distribuir gentileza e entusiasmo: 

“Mais uma semana começa e com ela trago a vontade. Vontade de fazer, de produzir, de aprender, de agradecer, de colaborar, de evoluir… Vontade de estar ao lado de quem me faz bem e de fazer bem a quem está ao meu lado! 

Que venha uma semana de bonitezas, gentilezas e harmonia!”

Também eu enviava convites para os “encontros de sábado” aos professores que, como a Cecília, ainda estavam vivos: 

Novas Construções Sociais de Aprendizagem e Educação. 

Início: 12 de agosto de 2023. 

11:00 às 12:00, no horário de Brasília / 15:00 às 16:00, no horário de Portugal.

https://meet.google.com/jrj-bfyu-hji 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXIII)

Lagoa das Amendoeiras, 21 de agosto de 2043

O Senhor Wilson nos levou até Mendes. Por lá ficamos três dias, aprendendo. O Senhor Orlando de lá nos trouxe. E a Vovó Ludi tivera ensejo de um primeiro contato com a Equipe de Educação Humanizada e com a equipe de uma secretaria de educação fadada para ficar na história. 

A Maria Paula não estava sozinha. A Adélia, o André, o Luís, dezenas de secretários de educação brasileiros e diretores de agrupamento portugueses partilhavam a decisão de não mais esperar, agiam. Tal como a Ponte agira, meio século antes, de um modo que António Nóvoa deixara claro, num solidário artigo:

“A Escola da Ponte não se constituiu em mais um “fait-divers”. 

Exatamente! A Ponte sempre incomodou os acomodados, por ser um verdadeiro analisador da realidade educativa. Não se tratava de colocar mais um remendo num andrajoso modelo educacional, mas do resgate do significado da expressão “Escola Pública”. A Ponte afirmava a possibilidade da excelência académica com inclusão social. Reafirmava a possibilidade de a todos assegurar o direito à educação… em autonomia. O exercício de autonomia era condição sine qua non de mudança e de inovação. 

Recusamos o faz-de-conta da autonomia que o ministério oferecia. Desde a primeira hora do “Fazer a Ponte” reivindicamos o estatuto de “viveiro de futuro” (expressão usada por um dos muitos estudiosos que, nas décadas de setenta e oitenta à Ponte acorriam). Mas, somente ao cabo de 28 anos, a nossa escola foi, oficialmente, reconhecida como autônoma. 

Netos queridos, dissestes ter gostado de algumas cartinhas “fofas” (expressão vossa) e esperançosas. Lamento ter de vos dar a conhecer, nesta cartinha, uma realidade para além da “fofura”, pois foi bem dura a labuta daqueles que, como o vosso avô, arriscaram inovar – inúmeros obstáculos enfrentamos.

Darcy Ribeiro realizou um diagnóstico dos obstáculos cruciais enfrentados por uma verdadeira Escola Pública. Para o Mestre, o maior dos obstáculos seria a nefasta ação de um certo tipo de intelectual: o áulico, corresponsável pela legitimação “cientifica” de trágicas decisões de política educacional.

Os áulicos infestavam ministérios, certas secretarias e outros lugares mal-frequentados. Presidiam a comissões de “especialistas”, exibiam-se em gongóricas e anestesiantes palestras, nos palcos de inúteis congressos.  Prosperavam, vivendo à sombra do poder, produzindo ideias irrelevantes, planos inconsequentes, contribuindo para destruir qualquer esboço de inovação. Manifestavam peculiares sintomas de esquizofrenia, pois diziam que o aluno deveria estar no centro do processo de aprendizagem, enquanto praticavam ensinagem, em aulas centradas… no professor. 

Talvez nem fosse esquizofrenia, mas o comportamento antiético de quem, sendo conhecedor dos maléficos efeitos de práticas fundadas no paradigma da instrução, contribuía para as manter. Em assessorias e coordenações de projetos da iniciativa do sistema, os áulicos legitimavam paliativos de um esclerosado modelo educacional, pecando por omissão, cumprindo o vil papel de evitar que mudanças acontecessem.

Estávamos conscientes dos obstáculos a ultrapassar. Sabíamos que, se o maior aliado de um professor era outro professor, também sabíamos que o maior inimigo de um professor ético, era… outro professor. Mas, a crise ética era, também, tempo de oportunidades. E nada era mais concebível do que o inevitável aparecimento de um instinto de verdade honesto e puro. Foi por essa altura que aconteceu o que vos irei contar nas próximas cartinhas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXII)

Mendes, 20 de agosto de 2043

Ainda andarilhando por terras darcinianas, que percorri, faz agora, precisamente, vinte anos, vou relendo “O Povo Brasileiro”. Estou crente de que o câncer consumiu o último sopro de vida de Darcy e o impediu de ir além. Redescubro nessa obra “inacabada” velhos motes de eternizadas causas. 

“A distância social mais espantosa do Brasil é a que separa e opõe os pobres aos ricos. A ela se soma a discriminação que pesa sobre índios, mulatos e negros. A luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi – e ainda é – a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional.”

Em “O Povo Brasileiro”, Darcy nos conduz pelos caminhos da formação de um povo e de uma nação. “Brasil” é uma palavra que pertence à toponímia utópica de tempos medievais, designando uma terra da felicidade imaginada. Mas, não foi esse país sonhado que Darcy descreveu, quando a sua pátria dormia distraída, sem perceber que era subtraído em tenebrosas transações.:

Como vos disse, nas cartinhas imediatamente anteriores a esta, Darcy tentara, nos idos de oitenta, criar condições de se fazer um país de todos, através da garantia de uma boa educação para todos. Porém, nos idos de vinte, a Lei de Bases, que fez aprovar nos idos de noventa, continuava sendo letra morta. De imbecilidade em imbecilidade, se ia adiando a agonia do velho sistema de ensinagem.

O governo de um estado determinou que diretores das escolas assistissem, semanalmente, a uma ou a duas aulas dadas pelos seus professores. E que produzissem relatórios sobre o que observassem nas salas de aula. O objetivo anunciado seria o de “fortalecer o protagonismo e autonomia do educador em sala de aula” (sic). 

Em pleno século XX, ainda havia quem desse aula, em sala de aula. E “especialistas” saídos das catacumbas da educação do século XIX consideravam importante que a secretaria esclarecesse o que seria feito com os relatórios,

“Porca miséria!” – diria o compadre de Cense (em outra cartinha, dele vos falarei). E o que restava de instrucionismo se refletia na decisão de o mesmo estado não aderir ao programa nacional de livros didáticos e oferecer apenas conteúdo digital. Após pressões várias, decidiram imprimir e encadernar livros digitais.

De disparate em disparate, esse “cortejo de horrores” competia com o inútil debate sobre o “novo ensino médio”. Aprendizes de feiticeiro insistiam na reciclagem de uma distopia. Quando alguém queria saber o que o vosso avô “pensava sobre o assunto”, respondia que nada pensava, apenas perguntava: 

“O que é o “ensino médio”? Por que existe “ensino médio”? Em que século estais?” 

Nada respondiam e deixavam de perguntar a minha opinião, sabe-se lá porquê!

Os ingénuos autores de uma “reforma” acreditavam que o sistema melhoraria quando, “pelo menos um período por dia fosse dedicado ao desenvolvimento de atividades interdisciplinares”. Só “um período por dia”! Ou “quando houvesse espaço para que professores trabalhassem por projetos em algumas disciplinas”. Só em algumas disciplinas! Ou, ainda, quando “no último ciclo, os alunos fossem protagonistas do próprio aprendizado”. Porque, na opinião desses “especialistas”, somente no último ciclo aconteceria aquilo a que chamavam ”emancipação social e cidadã dos alunos” (sic). 

Pobre Darcy! Imaginava-o, dando voltas no seu túmulo, no cemitério de Botafogo. Sabia que se confessara ateu, mas, se alguma influência tivesse junto de Deus, eu lhe pedia que Lhe pedisse para perdoar áulicos, especialistas e governantes, porque eles não sabiam o que faziam.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXI)

Mendes, 19 de agosto de 2043

Estávamos em agosto de vinte e três. Mais um processo de auto-formação-com-o-outro começava. Encontrávamo-nos nas manhãs de sábado (nas tardes, em Portugal), mas o tempo entre encontros era, também, de formação, porque a mudança, como diria Ardoino no seu “Propos actuels sur l’éducation”, não poderia ser promovida somente de fora, ao nível das superestruturas e dos decretos institucionais, se não fosse, ao mesmo tempo, no interior, pelas vozes daqueles que a ela aspiravam e que a iriam, finalmente, exercer. 

Certo é que, numa formação de caráter isomórfico, foram operadas profundas transformações, muitas “turmas-piloto”, muitas escolas, universidades, agrupamentos de escolas, secretarias de educação e educadores empreenderam caminhos novos, a mítica “escola do futuro” aconteceu no presente. Pois, como diria o meu saudoso amigo Steve Stoer, seria inútil formular projeções sócio históricas, porque não havia na história dos profissionais da educação um futuro pré-determinado. O amanhã seria o resultado aproximado de opções tomadas no hic et nunc do chão de escola.

Sempre fui avesso ao uso do jargão científico. Abrirei uma exceção, para citar palavras de um jovem centenário de nome Edgar, que, há cerca de vinte anos, legitimava as nossas opções formativas: 

“Como nossa educação nos ensinou a separar, compartimentar, isolar e, não, a unir os conhecimentos, o conjunto deles constitui um quebra-cabeças ininteligível. As interações, as retroações, os contextos e as complexidades que se encontram na man’s land entre as disciplinas se tornam invisíveis. 

Os grandes problemas humanos desaparecem em benefício dos problemas técnicos particulares. A incapacidade de organizar o saber disperso e compartimentado conduz à atrofia da disposição mental natural de contextualizar e de globalizar.

A inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva e reducionista rompe o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa o que está unido, torna unidimensional o multidimensional. É uma inteligência míope que acaba por ser normalmente cega. Destrói no embrião as possibilidades de compreensão e de reflexão, reduz as possibilidades de julgamento corretivo ou da visão a longo prazo”

Na França dos “sete saberes necessários à educação do futuro”, o Mestre Morin apontava caminhos que um visionário de nome Darcy tentou percorrer. Em Mendes se partiu de um tempo distópico para o anúncio e consolidação da utopia sonhada por Darcy. A Escola Pública de Anísio e Darcy ressurgia, num país que exilara a geração de ouro dos pioneiros do escolanovismo. Ao seu labor, juntávamos contribuições do paradigma da comunicação. E a primorosa equipe da secretaria de educação se preparou para ser um dos polos de referência de uma apenas sonhada nova construção social de aprendizagem.

No “Encontro de Mendes” de 83, visava-se concretizar diretrizes educacionais, num processo amplamente participado. Concluiu-se que a “escola pública” se desenvolvera alheia a realidade locais, que era uma “grande peneira de alunos”, e que se “culpabilizava” os professores pelo insucesso causado pela escola da sala de aula. 

No novembro de 1983, Mendes acolheu o Mestre nascido em Montes Claros. Em Brasília partiu para junto dos companheiros Florestan e Anísio, sem ter concretizado os seus desígnios. No novembro de há vinte anos, educadores românticos a Mendes acorreram, para celebrar a darciniana utopia – mais um ENARC, mais um tempo de fraterna partilha de dificuldades e êxitos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXX)

Mendes, 18 de agosto de 2043

Fora em Mendes que a caminhada de Darcy recomeçara, nos idos de 1983. E, foi na Mendes de vinte e três que se celebrou a indignação de Darcy e se esboçou um projeto com a participação de centenas de educadores. Quarenta anos depois, no rescaldo do encontro de Mendes, vieram à memória palavras da minha amiga Tina:

“Mendes é uma referência em Educação Humanizada. Com apoio do prefeito Jorge, a dedicação da secretária Paula e o empenho do Observatório da Aprendizagem e de gestores das unidades escolares, já é possível ver a transformação de educadores e educandos.”

E as palavras da Valéria:

“Era uma vez, uma escola em Mendes que recebia crianças de muitos Mundos.

O amor, a sensibilidade e a escuta são temperos que moram nessa escola. Lá, as crianças cuidam e também são cuidadas entre si. O acolhimento, trazendo uns para os outros, a confiança e o aconchego moram nesse lugar. A empatia, a valorização de todos e a perceção de cada um são parte dos crachás que todos levam em seus corações.

Ali, as pessoas compartilham seus medos, em busca de apoio e segurança. Todas as conquistas são valorizadas, cada aluno é único e cada professor também. A humanização bateu na porta e do seu jeito já acontece nesse lugar.

João Gurito… escola de gente pra gente!”

Foi forte o impacto desses dias de são convívio e intenso trabalho. E muitos os testemunhos recolhidos, que provavam a vitalidade dos projetos das doze escolas de Mendes. 

Na “Hilda”, o Rayan sinaliza para a professora colegas que precisam de ajuda. E os leva para a “sala do contra turno”, onde se entreajudam. Na liberdade do fazer escolhas, trocam o “Posso Fazer” pelo “Já Fizemos”.

Na “Odete” e entre múltiplos prodígios, a Daniele psicóloga intensifica a criação de vínculos, enquanto a estagiária de psicologia confessa: “nada que nos ensinam na faculdade serve na prática”.

De escola em escola, colecionamos belas surpresas, fortes emoções. 

A Ludovina alfabetizadora se emociona, quando escuta a exclamação de uma criança: “Tia, estou lendo!”

A Priscila se emociona quando escuta um menino pedindo que ela fosse sua mãe e que o levasse para a sua casa, nesse fim de semana. Quando a Priscila lhe perguntou o que mais gostara, o menino respondeu: “Tomar banho de chuveiro”. Fora a primeira vez. Daí, a prece escutada pela Priscila: “Tia, eu quero morar na escola. Não quero ir embora!”

Na “Freitas”, a Kelly advogada dizendo que a sua vida passara da carência para a abundância, quando saiu do Rio para o Interior, numa imersão de autenticidade, confessando fragilidades (que eram de todos), dando largas à emoção. 

A sensibilidade da Valéria e do Mauro operava milagres, dava à luz “boniteza que a gente não enxerga” Aqui, acontecem coisas boas. Muitas vezes os alunos ensinam os professores. Eles dizem o que têm no coração” 

E a Maria Paula não conseguindo deter copiosas lágrimas. E eu as contendo. Enfim! Na “Semedo”, vozes caladas falavam. E voltávamos a evocar Darcy.

Atormentado pelo torpor das metástases, o Mestre ainda conseguiu traduzir “tudo o que o Brasil poderia ser e ainda não era”. A escrita de “O povo brasileiro” é reflexo do convívio com as comunidades do Xingu, uma mistura de experiências colhidas na espiritualidade africana, na sabedoria e tecnologias sociais de portugueses, italianos, alemães, japoneses, judeus, árabes e outros povos, um criativo caldo cultural, um enorme e sincrético potencial historicamente “entravado pela classe dominante medíocre que impede o desenvolvimento da civilização brasileira”.

Na Mendes de vinte e três, chegava o tempo de “desentravar”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXIX)

Mendes, 17 de agosto de 2043

Me encantei com o encantamento da Tamires. Em cúmplices rodas de conversa, tímidos alunos se revelaram crianças abertas a surpresas, que “se abriam e queria apresentar trabalhos”. Que sorriam perante as folhas de alface, que haviam semeado na horta. Crianças de fala suave, respeitando sinais de pedido de palavra. Crianças que, presenciando uma professora molhada pela chuva, lhe fizeram uma promessa:

“Vamos juntar um dinheiro para comprar um carro para você.”

A recém-chegada Adriana mostrava-se surpreendida:

“São muito questionadores. Eles cobram direitos, mas também cumprem deveres. E, quando surge um problema e eu o vou resolver, já está resolvido. Eles já o resolveram. Eles se respeitam uns aos outros. Eu também trabalho em outra escola. La é diferente. Não vou nem falar! Levarei estas práticas para lá.” 

O Bruno, que “não é professor do terceiro ano, que é professor da escola”, diz ser possível efetuar mudanças:

“Todas as armaduras têm uma brecha” 

Pois tinham. E, num final de tarde, em Mendes, depois de colhidos deliciosos testemunhos de meigos atos, de um breve encontro emergiu uma deliberação: voltaríamos a praticar Darcy.

A clarividência do Darcy conduzira-o à conclusão de que a crise da escola era um projeto engendrado por pessoas, cujos ações iam na contramão da história. Esse malfadado projeto de escola e de sociedade engendrara uma “crise da educação, que não era uma crise, mas um projeto”. 

As obras do Mestre Darcy sobre a identidade da América influenciaram estudiosos latino-americanos críticos da visão eurocêntrica presente nos estudos sobre os povos originários do Brasil e do sul. Darcy afirmava que, nos trópicos, havia uma outra forma de se viver e de sentir a vida. A Educação do sul não era o atraso, mas o futuro do mundo.

No último dia de janeiro de vinte e dois, eu fora até ao lugar onde Darcy, quarenta anos antes, lançara o seu projeto de Educação Básica. Fui ajudar a Maria Paula e os professores de Mendes a celebrar o legado de Darcy. 

Reiteramos a promessa de voltar ao lugar do “Encontro de Mendes”. 

No fevereiro de vinte e dois, o sonho de Darcy já começara a tomar forma. Começara a demolição do aparato instrucionista. E a Maria Paula preparou o melhor de encerrar o ciclo de visitas às escolas, que iriam participar do projeto: a inauguração de um “Observatório da Aprendizagem”. 

Sala cheia de cidadãos de Mendes, de educadores, de amigos. A prefeitura fez-se representar pelo subprefeito Jiló. Esteve presente o Presidente do Conselho Municipal de Educação, vereadores e convidados. O breve discurso do jovem nonagenário Célio foi comovente. Observei a reação da Aline, as lágrimas de emoção verdadeira, que lhe caíram pelo rosto. Senti a presença de Freire, estava na companhia de educadores sensíveis, amorosos, corajosos. Freire estava bem acompanhado. Ali, havia verdade. 

Senti que valera a pena ter ido até lá. E prometi voltar. A Maria Paula tinha reunido uma equipe capaz de colocar a educação de Mendes no século XXI. Ali, se construiria comunidade. Ali, se tentava unir o que um sistema obsoleto de ensino havia desagregado. Celebrar Darcy não poderia consistir apenas em dissertar sobre o Mestre e sobre a sua obra. Seria, antes, atualizar e cumprir o seu projeto. 

Na assunção desse princípio, nas duas margens do Atlântico, algo imparável acontecia: o questionamento de “verdades eternas”, a indagação da origem de “instaladas culturas”. Por que não produzir teoria na prática (ou na práxis, melhor dizendo)?

Entre agosto e dezembro dos idos de vinte e três, praxeologicamente, agimos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXVIII)

Mendes, 16 de agosto de 2043

Era uma vez, pessoas, um lugar e algo mais… A maioria das estórias começa assim. 

Estávamos em Mendes, mais uma vez, solidariamente correspondendo ao convite da Maria Paula, amiga e secretária de educação que juntava a força do amor à solidez da coragem. 

O Mauro, a Valéria, coletando estórias admiráveis; a Tina estabelecendo e fortalecendo laços; a Vovó Ludi observando. tentando encontrar modo de ser útil; uma extraordinária equipe da uma secretaria ímpar; e este vosso avô, recontando estórias e a recolher belezura.

Foram dias memoráveis. Já lá vão vinte anos, mas é indelével o registro que fiz desses dias de felizes reencontros. Avultavam saudades do futuro, que, junto a um ciep, foram suavizadas com a inabalável decisão de praticar Darcy. 

Estava na presença de educadores aceitadores de abraços, amorosos e desejosos de melhorar a vida das crianças, de professores redescobridores de infâncias perdidas, que se entregavam à faina de doar seres humanos humanizados aos mundos que se iam abrindo.

Netos queridos, em breve, voltarei a falar-vos de prodigiosos dias passados em Mendes. De lá saímos seguros de que: aquilo que constava dos projetos político-pedagógicos ganharia raízes. 

O mesmo me havia sido pedido em Maricá. Para lá me dirigi, na intenção retomar um projeto interrompido. Dois anos antes, me entregaram um Termo de Referência, documento em que me era solicitada ajuda para a instalação de uma rede de comunidades de aprendizagem. Eis o que constava desse documento e que iria servir de referência para outros municípios. :

“Projeto de inovação educacional (…) proposição de Diretrizes de Política Pública, para Implementação de uma rede de protótipos de Comunidades de Aprendizagem em nove escolas da Rede Pública Municipal, tendo como mote a construção coletiva do projeto político pedagógico, com viés holístico, democrático e emancipador do cidadão, envolvendo a comunidade e a escola.

Na comunidade de aprendizagem, os estudantes terão sua curiosidade estimulada e provocada. Conteúdos atitudinais e procedimentais serão ferramentas que surgirão dos valores construídos pela comunidade escolar, com o objetivo de criar e fortalecer ações críticas e criativas entre todos os personagens que convivem nos ambientes de aprendizagem.

A organização do trabalho na escola centrar-se-á num sistema de relações que, simultaneamente, atenderá as necessidades do educando e da comunidade no desenvolvimento de atividades de construção de projetos de vida das crianças e jovens, contribuindo para que eles aprendam a ser, conviver, conhecer e fazer. Porque o entender que a educação extrapola os muros da sala de aula, sendo realizada na vida vivida, em diversos momentos e múltiplos lugares, é necessária a ressignificação do próprio ambiente escolar: a escola deixa de ser o único espaço educativo para se tornar uma articuladora e organizadora de muitas outras oportunidades educacionais no território da comunidade.

Na transição para práticas fundadas no paradigma da comunicação, os educadores participarão do desenho de novas construções sociais de aprendizagem, cujos critérios de avaliação poderão ser, por exemplo, ganhos de aprendizagem, adequação da escola aos tempos e ritmos da comunidade de que faz parte ou evidências de desenvolvimento local sustentável.”

Este documento era idêntico a muitos outros, burocraticamente elaborados pela administração educacional e nunca postos em prática. Mas, este o seria, no formato de uma nova construção social de aprendizagem.  

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXVII)

Mendes, 15 de agosto de 2043

Numa manhã de agosto de há vinte anos, a Dani e o Gregory nos levaram até ao CapUERJ. No final do encontro, manifestamos disponibilidade para colaborar na elaboração do novo PP-P do Colégio de Aplicação. E a ele voltaríamos, para estreitar laços com projetos, que estavam nascendo em Niterói e que requeriam uma formação de professores à medida de “uma escola do século XXI”, como dissera a Mônica, no final da sua alocução.  

Entre a Universidade e as escolas, iniciativas várias geravam “viveiros do futuro” – Morin dixit, e o cito sem aspas.

Numa instituição de formação inicial, eu pedi aos jovens candidatos a professores que não fossem fofoqueiros, que não me aparecessem com trabalhos semelhantes a teses engordadas com a costumeira lengalenga do “fulano disse”, do “beltrano disse” etc. Porém, nesta cartinha, abrirei uma exceção a esse cânone, para novamente citar o amigo Nóvoa, quando apontava para uma “nova da educação como espaço público”, no quadro de autônoma práticas. Antes de voltar a Anísio, reli o Nóvoa, citando António Sérgio. Ele nos falava de autonomia e de cidadania, pelo que recomendei a sua leitura a todos aqueles que reiniciaram um irreversível processo de autonomização, naquele agosto de boa memória.

“Sérgio coloca a eterna questão: por onde começar? Será possível uma reforma escolar no ambiente atual, ou estará ela dependente de uma prévia revolução no espírito nacional? 

Reconhecendo a dificuldade da resposta, conclui que “aquele impulso vitalizante, que a sociedade não dá à escola porque ela própria o não contém somos levados a fazê-lo sair da constituição da própria escola”. Nada que se não firme em um esforço pessoal criador e disciplinado. Nada que não resulte das exigências normais de uma comunidade de trabalho, de justiça e de cultura. 

A escola é caracterizada pelo valor pedagógico da autonomia e, por isso, sugere:

“Não vos canseis com os problemas de compêndios e programas: cumpre revolucionar os próprios métodos, o ambiente social em que a criança vive”.

Gerações sucessivas de educadores se bateram contra o Estado burocrático que transformava “a carneirada escolar em carneirada administrativa”, que, como Adolfo Lima, sempre reclamaram uma maior liberdade organizativa para as escolas, que, como Rui Grácio, não se cansaram de denunciar as incoerências de um Estado ao serviço dos mais fortes (…) quem nunca se satisfez com uma centralização burocrática do ensino, defendendo a autonomia no quadro de formas democráticas de participação e de governo da escola.

Como conseguir que as famílias e as comunidades sintam que a escola lhes pertence sem que, ao mesmo tempo, fechem os seus filhos numa escola à parte? Como conseguir que a educação responda aos anseios e aos desejos de cada um sem que, ao mesmo tempo, renuncie à integração de todos numa cultura partilhada?”

A solidária “resposta” estava contida na dúplice exortação freireana produtora de uma educação humanizadora: a coragem que da assunção de uma autonomia consciente, responsável; e o amor, primeiro valor da matriz axiológica positivista.

Por que não constava da bandeira brasileira a palavra Amor? Ordem sem Amor era violência, Progresso sem Amor era deterioração ambiental, desumanização. Uma educação amorosa era incompatível com a organização autoritária da vida.

No CapUERJ, me atrevi a lembrar a necessidade da definição de valores, quando concebessem o seu PP-P. Porque o exercício de autonomia era uma prática relacional, produção de vínculos, em tudo oposta a uma profissão solitária, individualista.

 

Por: José Pacheco

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