Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXX

Cabo Frio, 25 de fevereiro de 2044

Quando um mandante do ministério ordenou que eu retirasse das paredes dispositivos de relação, perguntei por que deveria obedecer à sua ordem. Respondeu que aquilo era “tudo uma palhaçada”, que “voltasse para a sala de aula” e que eu deveria obedecer às ordens de um “superior hierárquico”, a velha e já conhecida cantilena autoritária.

Com todo o respeito, lhe disse que o faria, se ele me dissesse porquê.

Repetiu a cantilena autoritária.

Com todo o respeito pela hierarquia, pedi-lhe que fundamentasse a sua ordem.

“Fundamentar?” – replicou, incrédulo com o atrevimento de um “inferior hierárquico”.

“Sim, senhor inspetor. Diga-me em que modelo pedagógico se filia, qual a proposta teórica, quais os autores dessa proposta, quais os pedagogos que recomendam não utilizar os dispositivos que nós usamos”.

Devo lembrar que, nesse tempo (estávamos em 1976), eu já tinha quatro pais, companheiros da primeira equipe de projeto, e que acabara com salas de aula. 

O inspetor tentou “dar a volta” à discussão. Amainou o tom de voz e perguntou quais eram “as minhas teorias”.

Disse~-lhe que não eram minhas. Eram de Mosconi, Biasutti, Freud e outros. Evoquei contribuições de âmbito psicanalítico.

“Freud? Já ouvi falar!… mas o que dizem os outros?”

“Com todo o respeito, recomendo ao senhor inspetor que os vá ler”.

Furibundo e com a ameaça de me instaurar um inquérito disciplinar, desandou.

Nesse tempo, eu já me havia protegido contra as investidas dos meirinhos ministeriais. Eu agia dentro da lei, enquanto o ministério agia à margem da lei. Eu sabia fundamentar aquilo que fazia, e os inspetores do ministério não sabiam.

Se tiverdes disposição para tal, talvez um dia vos conte estórias de encontros e desencontros com funcionários do ministério. Estou a reunir essas (hilariantes) estórias num livrinho a que darei o título “Estórias que eu nunca hei-de escrever”. Será publicado a título póstumo. o que não deve demorar muito.

Nesse tempo, eu ainda enfeitava a minha datilografia com citações e notas de rodapé. Ninguém é perfeito, e eu acreditava que só colocando as citações entre aspas ou em itálico, com indicação da obra e da página, poderia conferir à minha redação valor científico. Mais tarde, percebi que não era necessário. Os teoricistas isso faziam para disfarçar duas coisas: a sua ignorância, pois eram meros copistas, e a impotência, porque nada daquilo que copiavam conseguiam tornar útil, na prática.

Então, cá vai mais um pouquinho do texto escrito em 1972.

Schmidt e Reich, no enunciado de princípios psicanalíticos do trabalho, são objetivos. Diziam que a nossa tarefa é ensinar a criança a compreender progressivamente o significado das condições reais do mundo exterior e assim incitá-la a ultrapassar o princípio do prazer, a substituir este pelo princípio da realidade. 

Estávamos numa encruzilhada relacional, entre o desejo e a realidade. Biasutti afirmava que a infância tinha valor, não tanto como período de adestramento, mas como período em que se poderia experimentar, livremente, aquela maravilhosa sensação de sermos nós próprios, que predispõe a aceitar melhor as inevitáveis limitações da vida adulta. Mas, de que modo a Escola operava a superação do egocentrismo? 

A Escola introduzia um elemento novo no psiquismo infantil: o do êxito intelectual. Fazia rodear a criança de uma atmosfera de pressão organizada a que, antes, ela não fora submetida. Levava a efeito uma contínua seleção entre os alunos.

Amanhã, vos trarei mais alguns excertos de “fundamentações” escritas numa velha Remington.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXIX

São Pedro da Aldeia, 24 de fevereiro de 2044

De volta ao Brasil, rascunhei durante a viagem mais algumas contribuições, mais ou menos, teóricas, que convosco partilho. 

Desta vez, me arriscarei numa breve incursão no universo da… psicanálise. Não espereis profundas reflexões. O vosso avô apenas reunia informação (leia-se: teoria) que o ajudasse a resolver dificuldades de ensinagem. Eis o que teclei na velha máquina de escrever, por volta de 1972:

Em que sentido pode a psicanálise (como ciência aplicada) ter “aplicação” nas práticas educativas? Mosconi dá-nos uma possível resposta, quando refere que numa prática pedagógica, não será a psicanálise a comandar, nem como prática, nem como teoria científica, mas essa mesma prática, com os fins que se propõe.

Apesar de a psicanálise ser considerada determinista, por considerar o adulto retroactivo, para Freud a educação consiste, fundamentalmente, em desenvolver na criança um eu capaz de se determinar. 

A formação do superego exigirá um meio educativo em que intervém, determinadamente, no campo intelectual como no da ação, a afetividade. 

Entre as noções introduzidas por este autor, destaca-se o “princípio do prazer” (tendência para a satisfação das necessidades) e o “princípio da realidade” (submissão aos constrangimentos sociais). Entre os seus discípulos, e no campo restrito da educação, merecem referência: Mélanie Klein, que interpretava perturbações neuróticas através do jogo; Hans Zulliger, que criava situações de jogo, para que nelas as crianças simbolizassem os seus conflitos traumatizantes; Maud Mannoni, que, através do desenho e do teatro de fantoches, permitia a verbalização das perturbações; Ana Freud, que divulgou a psicanálise junto dos educadores, ajudando-os na interpretação do psiquismo infantil. 

Neste âmbito, também merece referência Alfred Adler, criador da “psicologia individual”, que viria a exercer alguma influência no apogeu da Educação Nova. 

A psicanálise não descura o papel da auto-educação. Mas, sustenta que o educador deve “dar o exemplo”, não o seu exemplo, mas a imagem ideal que sustenta a benevolência, atenção, compreensão. Confere a maior importância às relações interpessoais. Realça o conteúdo afetivo e emocional dessas relações, raramente contemplado pela escola. Por isso, recusa a redução da curiosidade e interrogações infantis ao domínio do cognitivo. 

Nesse tempo, ainda considerávamos o aluno como centro do processo de aprendizagem. Mas, já Filloux nos dizia que tudo o que diz respeito à criança e à escola deve ser estudado numa perspectiva relacional. 

Esse autor reconhece que não foi ainda possível aproximar os psicanalistas dos especialistas em Ciências de Educação, de modo a promover um “saber psicanalítico” aplicável à Educação.

O que a psicanálise requer ao educador é, no fundo, um discernimento suficiente para se descobrir e se reconhecer, o que não é tarefa fácil, dada a dificuldade de transpor o potencial da psicanálise para a práxis pedagógica. Mas, são inúmeros os equívocos. Poderemos encontrar falsos adultos, para os quais o contacto com crianças é um meio inconsciente de recuperação pessoal da infância, que funciona como uma fuga à realidade, ou concretização do reconhecimento de poder e consideração. 

Outro desvio consiste na manipulação dos desejos. Sobre isso, vos falarei na cartinha de amanhã, de Schmidt e de Reich, no enunciado de princípios psicanalíticos do trabalho escolar.

A Ponte era um projeto cientificamente fundamentado. Talvez isso nos tivesse salvado da extinção.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXVIII

Aveiro, 23 de fevereiro de 2044

Não sei, netos queridos, se já estais saturados destas divagações, mais ou menos, teóricas. Mas, podereis crer que, nos idos de vinte, houve educadores que por elas se interessaram e sobre elas refletiram. Talvez, também, em 2044, haja quem esteja interessado naquilo que rascunhei numa velha máquina de escrever, em velhos papéis, que retiro do baú das velharias. Salvo do esquecimento algumas reflexões, no pressuposto de que ainda tenham alguma serventia.  Se vos desagradam, mudarei de assunto. 

Como devereis ter reparado, tento fugir ao usso indiscriminado do jargão “científico”, embora não consiga… Naquele tempo – anos oitenta – o discurso da autonomia poderia desempenhar uma poderosa função ideológica, promovendo a subordinação do indivíduo a um sutil controlo organizacional. 

Foi vergonhosa a ação dos teoricistas (uma das sete pragas da educação), que, dominando o jargão “científico”, encontrando-se em posições de poder, anularam a parca autonomia conseguida pela à Escola da Ponte, em 2004. Abusando de efeito retroativo (ilegal!) de uma lei do final da primeira década deste século, o ministério da educação, unilateralmente e à margem da lei, retirou competências básica de um contrato de autonomia.

O vosso avô abominava má-fé, desonestidade, mesmo que ornamentada com citações, com frases de belo efeito, ou com um “jargão” dito científico que, não raramente, ocultava… ignorância. 

O humanismo renascentista já havia celebrado o carácter efémero da realidade, já havia reconhecido que a realidade é desprovida de qualquer finalidade. O carácter informal do “círculo de estudos” (a modalidade de formação por nós mais utilizada) servia um propósito de apoio do professor na resolução de conflitos, no “confronto de autonomias”. 

Tudo é transitório e inconsequente, mas também provisoriamente durável e significativamente produtivo. Em círculo, o professor permanecia firme numa tradição de formação, sabendo que outras tradições existiam e mereciam escuta.

Essa autonomia de novo tipo realçava a inutilidade de controlo externo. No círculo, os professores detinham um efetivo controlo sobre o seu próprio trabalho, e o entendimento de que a inteligibilidade do real sofria uma erosão constante. 

À desatualização dos saberes, o círculo contrapunha uma autonomia sempre provisória e questionável – para a provisoriedade dos conhecimentos uma autonomia de recorte não definitivo e continuamente amadurecida.

No seio do círculo não se alienavam as estruturas profundas de desenvolvimento individual no quadro do coletivo, antes se agudizavam os conflitos para, através deles, se testar meras aparências de autonomia.

O círculo possibilitava a afirmação de autonomias individuais, no aprofundamento das relações entre o indivíduo e as estruturas sociais de subordinação, pois a gestão das dependências admitidas como inevitáveis não se referia a uma liberdade abstrata, a uma noção especulativa de mudança social.

Concebida desse modo, a autonomia do círculo relativizava a originalidade da autonomia de cada destino particular, sem que privasse cada um dos seus elementos de uma autonomia-com-os-outros. De uma autonomia que poderia ser conceptualizada enquanto ação de um sujeito envolvido num projeto humano coletivo, numa “autonomia relacional”.

Vai para uns vinte anos, eu tentava assegurar a autonomia (financeira) de um projeto. A experiência colhida levou-me a escrever um livrinho sobre autonomia. Se ainda houver algum exemplar por aí, vo-lo darei a conhecer.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXVII

Viana do Castelo, 22 de fevereiro de 2044

Por aqui ando, queridos netos, no extremo norte de Portugal, visitando escolas, observando aquilo que, nos últimos vinte anos, se conseguiu concretizar: uma nova construção social de aprendizagem, que, efetivamente, garante a todos o sagrado direito à educação. Nos intervalos de viagem, descanso e escrevo. E aqui continuo a falar-vos de autonomia.

Uma das cartinhas enviadas neste mês terminava com uma pergunta: “Em que consistia o trabalho autónomo?” Tentarei responder.

O trabalho autónomo é uma forma de pedagogia individualizada, através da qual o aluno participa na determinação de objetivos, na gestão de tempos e espaços em que os seus projetos decorrem, bem como na avaliação. 

O trabalho autónomo tende a anular a dicotomia clássica entre diretividade e näo-directividade, pelo reconhecimento da possibilidade de estatutos e papéis dos intervenientes no ato educativo. Coloca-se, aqui, o tipo de intervenção do professor, que poderá ser “diretiva” (por exemplo, para introduzir no plano de um aluno uma atividade que julgue oportuna), como “não-diretiva” (por exemplo, para integrar no planejamento geral uma proposta individual ou de grupo). 

O exercício de autonomia não se confunde com a permissividade, nem dispensa a colaboração do professor, na situação de tutor. 

Na Escola da Ponte dos anos oitenta, a partir da prática e da reflexão sobre a prática, foi elaborado um “Perfil do Orientador Educativo”. Eis alguns excertos desse documento: 

“1- RELATIVAMENTE À ESCOLA E AO PROJECTO 

d) Contribui, ativa e construtivamente, para a resolução de conflitos;

e) Contribui ativa e construtivamente para a tomada de decisões;

f) Toma iniciativas adequadas às situações;

g) Alia, no desempenho das suas tarefas, a criatividade à complexidade, originalidade e coerência;

h) Apresenta propostas, busca consensos, critica construtivamente;

i) Produz ou propõe inovações;

j) Procura harmonizar os interesses da Escola e do Projeto com os seus interesses individuais;

k) Age de uma forma autónoma, responsável e solidária;

l) Procura fundar no Projeto os juízos e opiniões que emite;

m) Domina os princípios e utiliza corretamente a metodologia de Trabalho de Projeto;

n) Assume as suas falhas, evitando imputar aos outros ou ao coletivo as suas próprias incapacidades;

o) Procura dar o exemplo de uma correta e ponderada utilização dos recursos disponíveis;

2- RELATIVAMENTE AOS COLEGAS

a) Está atento às necessidades dos colegas e presta-lhes ajuda;

b) Pede ajuda aos colegas, quando tem dúvidas sobre como agir;

d) Mantém com os colegas uma relação atenciosa, crítica e fraterna; 

e) Reconhece e aceita criticamente diferentes pontos de vista, procurando ter sempre o Projeto como referência inspiradora;

g) Apoia ativamente os colegas na resolução de conflitos;

3- RELATIVAMENTE AOS ALUNOS

a) Mantém com os alunos uma relação carinhosa;

b) Procura ajudar os alunos a conhecer e a cumprir regras;

c) Procura ser firme com os alunos, sem cair no autoritarismo; 

d) Procura tomar atitudes em sintonia com o coletivo;

e) Procura acompanhar de muito perto e orientar o percurso educativo dos seus tutorados.”

A prática de autonomia passa, igualmente, pela prática da colaboração entre pares. Também aqui o professor-tutor é responsável por uma correta organização, dado que a ajuda entre alunos introduzida como técnica, de forma mecânica, não conduz à entreajuda, ao reconhecimento do outro, ao exercício de solidariedade ativa, não produz autoconhecimento, não propicia aprendizagem de autonomia.

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXVI

Esmoriz, 21 de fevereiro de 2044

Como vos disse, o textinho que escrevera sobre autonomia, há meio século, mantinha atualidade. Por que seria?

Uma das causas da “atualidade” desse textinho era a pérfida ação de “doutores em educação” saídos das catacumbas da pedagogia do século XIX, venerando Gagné, Skinner e quejandos. A ação de áulicos universitários afetados pelo teoricismo – a doença infantil da pedagogia – conferiam ao textinho atualidade e contribuíam para perenizar a tragédia instrucionista. 

Espero que não vos canse regressarmos à leitura daquilo que redigi sobre o conceito de autonomia e a sua expressão praxeológica. É de prática que vos falo, não de teorização de teorias teorizadas. Faço-o porque os Gagnés dos idos de sesenta tinham todo o direito de “duvidar” da possibilidade de assunção de uma autonomia responsável, mas poderíamos admitir que a aprendizagem poderia ser reduzida a uma resposta a estímulos externos ao sujeito de aprendizagem? 

Só porque escasseava a caução das práticas (ditas) alternativas, teóricos como Gagné “raramente duvidavam”. Mas o discurso teórico instrucionista poderia cair em contradição, se confrontado com algumas inelutáveis práticas participadas pelo vosso avô. Humildemente, contrapus o argumento de uma práxis dos anos setenta, num textinho intitulado “Uma utopia realizável?” Ei-lo:

“As propostas de Gagné, como as de tantos outros teóricos militantes, orientam a aprendizagem para o domínio da criação de situações de ensino em que ao professor cabe apresentar estímulos, dirigir a atenção do aluno, fornecer modelos, orientar “a direção do pensamento”, e ao aluno um papel passivo. 

A tecnologia educativa projeta-se em artefactos que visam a “função geral de fornecer imputs à pessoa que aprende”, afirma Gagné. Não declino o importante papel da repetição, da memória e do esforço, mas uma criança aprendiz poderá ser metaforicamente comparado a um rato aprendiz que, por tentativas, constrói o seu mapa cognitivo?” 

Netos queridos, como vos disse na cartinha anterior, nos idos de vinte, a farsa instrucionista estava bem montada e generosamente financiada por empresas e fundações. Alastrava a praga das start-up educacionais consideradas inovadoras – que de inovadoras nada tinham – lideradas por titulares de cursos de administração de empresas e por técnicos de Marketing, que apenas visavam lucro, explorando a ignorância e a ingenuidade pedagógica.

Consultei a lista de palestrantes de “lives” promovidas por abútricas empresas. A curiosidade me levou à consulta do currículum vitae de improvisados e falsos “especialistas” em educação. Eram especialistas em Administração, Gestão de Empresas, Design de Produto, Publicidade e Propaganda, Informática, Direito, Finanças, Varejo e Serviços, Ciências do Consumo Aplicadas, Educação Executiva… 

No distante 2024, os “híbridos” seduziam a administração educacional e secretarias de educação compravam “gato por lebre”. Numa economia de mercado, o direito à educação estava transformado numa mercadoria. 

A escolha das condições para a aprendizagem determinava, decisivamente, o tipo de modificações que se operavam. Nos idos de vinte, alunos transformados em “monstrinhos de tela”, consumiam currículo prescrito, como cobaias de laboratórios “alternativos”, ou “ratinhos de laboratório” de aprendizes de feiticeiro. Burocratas usurpavam espaços de reflexão e prática, onde deveria prevalecer o bom senso e uma ciência prudente.

Iríamos esperar mais um século pela erradicação da escola da sala de aula?

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXV

Viseu, 20 de fevereiro de 2044

A minha irmã Maria enviou-me os programas eleitorais dos partidos concorrentes às Legislativas de 2024. Li todos os programas para a Educação. Acreditareis, se eu vos disser que um desses programas assumia medidas, que o vosso avô havia proposto, ao longo de décadas?

Pois bem! Eu, que estava longe da pátria, que talvez não pudesse exercer o direito de voto, que já tinha passado pela política ativa e, prudentemente, dela me afastara, quase senti vontade de a voltar. 

Descontando algumas premissas de origem neoliberal, citarei partes do “programa” desse partido:

“Centrar a escola em cada aluno, assegurando a integração entre conhecimentos de áreas do saber;

Promover a criação de verdadeiras escolas livres, usufruindo da autonomia e flexibilidade curricular e construindo na escola pública novos modelos de ensino centrados em cada criança e jovem;

Criar condições para uma nova organização não baseada em turmas, mas antes em comunidades de aprendizagem;

Garantir a todos os alunos uma formação integral, com o acompanhamento de colegas e professores, que promova o conhecimento para lá das disciplinas e da divisão entre atividade intelectual e atividade manual;

Manter todas as modalidades de ensino atuais, por forma a que cada aluno e sua família possam optar, de forma livre e respeitadora das suas opções pessoais, familiares e/ou étnicas, por aprender da forma mais adequada ao seu caso individual, nomeadamente o Ensino à Distância, o Ensino para a Itinerância, o Ensino Doméstico (…) avaliação contínua, proporcionando uma abordagem mais holística da aprendizagem;

Promover a interação com a família no âmbito da aprendizagem, promovendo a assunção de valores e princípios comuns e o respeito por eles;

Garantir a possibilidade de expansão da rede escolar, através da regulamentação e certificação de escolas alternativas e/ou comunitárias;

Reforçar a oferta educativa formal com competências cruciais para a vida no século XXI, como pensamento crítico, inteligência emocional, empatia e criatividade, essenciais para preparar os jovens para prosperar num mundo cada vez mais complexo e tecnológico.”

E a “cereja no bolo” era a recomendação de que se deveria “ter em conta a proximidade com as populações, evitando o abandono das escolas locais em favor de superescolas”. Esse partido denunciava o crime de “desertificação” do interior português, também, por via da construção de megalómanos “centros educativos”.

Isso era “música para os ouvidos”. Não hesitei. Enviei aos meus amigos e às minhas amigas de Portugal essa boa noticia, pois talvez não tivessem lido os programas dos partidos.

A minha atitude não visava sequer sugerir que votassem nesse partido. Mas, certo é que os mais reacionários programas educacionais eram propostos por partidos que ocupavam os primeiros lugares nas sondagens de intenção de voto. E o partido que apresentara o melhor programa educacional estava… em último lugar.

Após a Revolução de Abril, jovens se filiaram em partidos políticos e ascenderam na hierarquia partidária. Decorridos 50 anos, ocupavam cargos de confiança, nos gabinetes dos ministérios. Eram “doutores”, que nunca tinham trabalhado nas suas vidas. E que ditavam leis, que os professores deveriam cumprir, nas suas salas de aula. 

Nos idos de vinte, a educação estava à mercê de políticos e funcionários, que impunham um modelo educacional reciclado, uma escola semelhante à de “partido único”, que foi aquela que me coube, no tempo da ditadura.

Compreendeis, queridos netos, a dimensão da tragédia?

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXIV

São João da Madeira, 19 de fevereiro de 2044

Vim até São João, observar os prodígios realizados pela professora Rute, ao longo de duas décadas de projeto. É admirável a sua obra. E se constituiu em fonte de inspiração para muitos outros projetos.

A Rute compreendeu que toda e qualquer situação pedagógica assentava numa relação de poder mediada pelo saber, uma mediação não natural, mas construída. E essa educadora se transcendeu, através de uma prática coerente com valores e princípios, assumindo que o poder não é bom, nem mau, que o uso do poder é que poderá ser benigno, ou maligno. Sobretudo o poder simbólico exercido sobre a infância.

A criança pode brincar com o poder. É pelo exercício desta brincadeira “séria”, num constante jogo de reajustamentos, que o aluno exerce e aprende a exercer o máximo poder a que tem acesso. 

Esse jogo sério implica não a totalidade do princípio do desejo, mas uma totalidade-síntese de desejo e realidade. A responsabilidade do aluno poderia traduzir-se nesta mistura dinâmica e em permanente reequilíbrio. E a assunção de autonomia, que daí decorre corresponde um aumento da fluidez dos papéis e rituais presentes na relação educativa. 

O poder de controlar exerce-se em formas subtis. Para o interpelar, não basta ter consciência da sua origem. A ordem estabelecida com vista à realização da autonomia é de natureza anárquica, no que näo pode ser confundida com um estado caótico de relação (Prigogine o afirma…). 

O indivíduo em processo de autonomizaçäo libertária passa de um nível restrito à pessoa, ou a um grupo, ao envolvimento numa gestäo institucional participada, numa ordem simbiótica, concretizada a nível microssocial; näo uma ordem ideal, mas uma base efetiva de partilha de perspectivas. 

A relação vertical professor-aluno não permite uma integração dos conhecimentos em termos de saber gerante. Tudo o que é meramente transmitido e, pretensamente, ensinado tem pouca influência no comportamento da pessoa. Os conhecimentos que podem influenciar os conhecimentos do indivíduo são os que ele próprio descobre e de que se apropria.

Netos queridos, eu sei que estou a usar de excessiva didática. Mas, ficai sabendo que, se nos idos de vinte houvesse professores que chegassem a ler estas cartinhas, iriam apreciar, certamente, o didatismo que nelas coloco. 

Na longa jornada percorrida, a Rute e muitos outros educadores enfrentaram dificuldades, tormentas várias. A propósito… cito Attico Chassot, para que saibais como esses educadores reagiram: 

“É nos momentos de crise, não na normalidade, que se multiplicam os bons e os maus exemplos. Cada um de nós reage de uma forma às catástrofes. A sociologia dos desastres é farta em estudos sobre o assunto. 

Há os que crescem em altruísmo, magnânimos, solidários, prontos a ajudar. Há, também, os que se tornam apáticos na crise, ficam paralisados diante dos estragos. Sentem-se impotentes. Preferem recolher-se e esperar, não atrapalham, mas não ajudam. Por fim, há aqueles que querem tirar vantagem da situação, sempre há. São tipos variados. Na hora mais difícil, todos esses vão aparecer e podem, ou não, fazer a diferença. 

Para a nossa sorte, há muitos que “fazem o bem sem olhar à quem”, ajudam a costurar as pontas do tecido social e amarram firme essa coisa que chamamos de sociedade. São essas pessoas que merecem a nossa consideração, não as outras que perderam a chance de mostrar grandeza.”

Queridos netos, as sociedades são as pessoas, as famílias são as pessoas, as escolas são as pessoas. Certamente, já entendestes que pessoa é a Rute. 

Colhei o seu exemplo.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXIII

Albufeira, 18 de fevereiro de 2044

É domingo. Como sempre faço, queridos netos, emprego este tempo de ócio tentando pôr em dia a correspondência e atendendo a algumas solicitações de ajuda. Mesmo já sendo nonagenário, mantenho este solidário ritual. 

Hoje, recordei dois domingos. O primeiro, de há 40 anos, um domingo feliz passado num congresso, convivendo com o amigo Rubem (encontrei uma foto no baú das velharias e o juntei a esta cartinha). O outro, um infeliz domingo do mês de fevereiro de há 20 anos, quando se aproximava o tempo da minha discreta “retirada da cena educacional”.

No mês de maio de dois mil e vinte e dois, uma secretaria de educação enviou-me um “termo de referência”, no qual me pedia ajuda para ”implantação do projeto Comunidades de Aprendizagem”. Eis alguns trechos desse documento, itens do Plano Municipal de Educação desse município:

“(…) instituirá um Grupo de Trabalho para a proposição de Diretrizes de Política Pública para Implementação de uma rede de protótipos de Comunidades de Aprendizagem em nove escolas da Rede Pública Municipal, tendo como mote a construção coletiva do projeto político pedagógico, com viés holístico, democrático e emancipador do cidadão, envolvendo a comunidade e a escola.

Na comunidade de aprendizagem, conteúdos serão ferramentas que surgirão dos valores construídos pela comunidade escolar, com o objetivo de criar e fortalecer ações críticas e criativas entre todos os personagens que convivem nos ambientes de aprendizagem.

A organização do trabalho centrar-se-á num sistema de relações que atenderá as necessidades do educando e da comunidade, no desenvolvimento de atividades de construção de projetos de vida. 

Porque o entender que a educação extrapola os muros da sala de aula, sendo realizada na vida vivida, em diversos momentos e múltiplos lugares, é necessária a ressignificação do próprio ambiente escolar: a escola deixa de ser o único espaço educativo para se tornar uma articuladora e organizadora de muitas outras oportunidades educacionais, no território da comunidade.

Na transição para práticas fundadas no paradigma da comunicação, os educadores participarão do desenho de novas construções sociais de aprendizagem.”

Reuni com a secretaria, disse que ajudaria. Expliquei o que deveria ser feito. A secretaria aceitou a proposta. 

Andei, de escola em escola, gratuitamente, ajudando educadores coerentes com o seu Plano Municipal de Educação. Um GT viria a ser criado, um “Termo de Autonomia” fora aprovado. A secretaria elogiou o projeto, publicitou os bons resultados obtidos. Porém, quase dois anos decorridos, quase tudo estava por fazer. 

Nessa secretaria (como em muitas outras), eu vinha perguntando quando regressaríamos ao aprimoramento dos projetos que nos propuséramos desenvolver. Naquele tempo, não faltavam pretextos para os interromper projetos: ou era um ministério que iria mudar de mãos, ou “os professores estão em férias, ou “o senhor diretor não tem agenda”, ou… “só depois do Carnaval”. 

Já estávamos depois do Carnaval. Só faltava saber as verdadeiras razões de adiamentos e… recomeçar.

Recomeçamos, enviando a pais, a professores, a diretores e a todos os cidadãos, que decidissem assumir um compromisso ético com a Educação um convite, que a Zizi elaborou com esmero.

Nele se dizia que, pelas onze horas brasileiras do dia 24 de fevereiro, se realizaria o encontro preparatório de muitos outros encontros, que nos conduziriam à prática refletida de uma nova construção social de aprendizagem.

Em próximas cartinhas, vos direi o que sucedeu.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXII

Montemor-o-Novo, 17 de fevereiro de 2044

Eis-me insistindo na busca de significado de tudo aquilo que, em cinquenta anos, a Ponte idealizou e concebeu. 

Quando se abandonou o gueto da sala de aula e se enveredou pelo trabalho em equipe, os professores assumiram mais algumas “funções”. A expresssão “colaboração do tutor”, que constava do “Perfil do Orientador Educativo”, consistia em muito mais do que um montessoriano. “seguir a criança”. De modo que, ao cabo de um ou dois anos, acreditavamos ter encontrado uma prática refletida, fundamentada numa teoria prudente, um modo de concretizar a nossa autonomia e a dos nossos alunos, então, transformados em sujeitos de aprendizagem.

A qualidade de um novo tipo de relação favorece, ou obstaculiza, a passagem de uma atitude centrada no ensino para atitudes de compromisso pessoal (quer do professor, quer do aluno) com a atividade. Este compromisso, a que subjaz a compreensão da dependência original, pode assumir a forma de projetos geradores de vínculos. 

O que fizemos foi partir daquilo a que chamos “acordos de convivência” e da instalação de dispositivos de relação. Através de mediações que permitiam aos (já) sujeitos de aprendizagem apreenderem uma perceção correta das tarefas e suas finalidades, eles participavam na seleção e planificação de tarefas plasmadas em roteiros de estudo, desenvolviam projetos de currículo tridimensional. 

Tinham aprendido a selecionar informação, a analisar a informação recolhida, a analisar e a comparar diferentres informações, a sintetizar e a avaliar a produção de currículo, a socializar o conhecimento, partilhando com a comunidade as “evidências de aprendizagem”, que nós (a equipe que, entretanto, eu havia reunido) referenciávamos em portfólios, em registos de avaliação formativa, contínua e sistemática.

A ação decorrente de projetos pessoais ou de grupo, a gestão individualizada de tempos e espaços de aprendizagem, a escolha de momentos e instrumentos de avaliação, a regulação de comportamento numa base de reciprocidade, o desenvolvimento de formas de cooperação e comunicação eram sinais evidentes do exercício de autonomia. 

Em meados dos anos setenta, num tempo em que ainda não havia computadores, eu ia batendo nas teclas de uma velha maquina de escrever, redigindo textos, que entregava à equipe de professores, para que os lessem e (fundentadamente!) opinassem. Guardava cópias em papel químico, que, com a passagem do tempo, se apagaram. Mas, tudo o que nesses papéis escrevi estava presente na nossa prática e em nós. 

O acto intencional caracterizava a existência digna, sempre que um aluno se fazia participante ativo de um projecto coletivo, na remoção prática de atitudes individualistas e autoritárias. Boaventura explicitou aquilo que apenas intuíamos, nos dios de setenta: 

“A modernidade confirmou-nos numa ética individualista, uma microética que nos impede de pedir, ou sequer pensar responsabilidades por acontecimentos globais.”

A crise da escola, tal como a crise da sociedade, refletia a flexibilidade das transformações económicas, sociais e políticas da vida em coletivo face a uma atmosfera de rigidez e de imobilidade, ao nível global da sociedade. E a autonomia equívoca concedida pelos ministérios da educação apenas confirmava o princípio que dizia ser a lealdade devida ao Estado o preço a negociar para preservação da segurança pessoal possível.

A autonomia da escola seria o primeiro passo para uma inversão de valores. E o instrumento que a concretizaria dava pelo nome de “contrato de autonomia”.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXI

Braga, 16 de fevereiro de 2044

A cidadania é uma “técnica de vida” a aprender como quaisquer outras. Por essa razão, o nosso Faria de Vasconcelos (já em 1915 e muito antes de Rogers!) defendia que a educação se deveria fazer de dentro para fora, pela experiência e pela prática gradual do sentido crítico e da liberdade. 

Ellen Key, vinte anos antes de Summerhill, prefigurou a realidade dessa experiência, ao afirmar que os pais e a escola afogavam a individualidade da criança e que seria necessário que o professor a libertasse dessas amarras. 

Se considerarmos a experiência dos libertários de Hamburgo como um malogro, é em Neill que encontramos os limites da liberdade possível. Diria mesmo que, sem a sua radicalidade, se perderia uma importante referência. 

Os movimentos que se seguiram à Educação Nova têm em Summerhill um primeiro ensaio de aplicação psicanalítica. Neill foi profundamente influenciado por Freud e Reich. Promoveu uma rutura profunda com os teóricos do seu tempo (incluindo os da Escola Nova), ainda que reatualizasse algumas propostas de Rosseau. 

É por essa razão que situo Neill numa fase transitória, marcada pela recusa da especulação teórica (é contra essa especulação que Freinet também reage). Neill acreditava na eficácia da regulação pelo desejo. Criou um ambiente de aceitação. sem ameaças nem medos, para que a criança pudesse exprimir-se e aprender a gostar de si própria. 

Mais do que renunciar à prescrição, o adulto-educador renunciava ao julgamento. Ao adulto competia, segundo Neill, criar condições em que o desejo pudesse cumprir-se:

“Em Summerhill, acredito termos provado que a autonomia funciona. E uma escola não faz concessões. Não podemos ter liberdade a não ser que as crianças se sintam livres para governar a sua própria vida social. 

Quando há um patrão, não há liberdade real. Isso aplica-se ainda mais aos chefes benévolos do que aos disciplinadores. A criança de espírito pode rebelar-se contra o chefe áspero, mas o chefe que usa de brandura apenas faz a criança sentir-se frouxa, e insegura quanto aos seus sentimentos reais”.

Realmente, a escola sem autonomia não deveria ser chamada escola progressista, no sentido que Snyders lhe conferia. Ao educador competiria representar um “princípio de realidade” não repressivo, cujas necessidades seriam reconhecidas e assumidas com as próprias crianças. Neill era considerado adepto de uma liberdade sem limites, mas ele próprio reconhecia não haver liberdade absoluta. Como alguém disse, “criança não faz o quer; criança quer o que faz”. 

Esse mestre reage contra a coercividade da educação inglesa, mas não vai ao ponto de rejeitar toda e qualquer disciplina, que considera como desinteresse do professor em relação à evolução do aluno. 

O que importa sublinhar neste autor é a sua convicção de que a conceção tradicional de disciplina não pode conduzir a criança à autonomia: 

“A autonomia é a conduta inspirada pelo eu, e não por uma força exterior.” 

Neill considerava que a criança não deveria ser forçada a fazer algo, antes de ter reconhecido que o deveria fazer. Restava saber se esse reconhecimento se operava por manifestação do desejo. E a resposta não era simples. Neill ainda a adensava, quando, ao esbater o dilema autoridade / não-autoridade referia que o que se fazia à criança não era importante, mas sim o modo como se fazia – mais uma vez nos antípodas de Snyders.

Se tiverdes paciência suficiente para aturar este vosso avô, contar-vos-ei estórias do Neill, do Snyders e de outros educadores do século XX, cuja obra, mesmo para os leigos, importa conhecer.

 

Por: José Pacheco

Posts navigation

1 2 3 4 5 6 147 148 149
Scroll to top