Mealhada, 29 de junho de 2041
Em meados do mês de junho de 2021, o Brasil atingia a trágica cifra de meio milhão de mortos pela Covid. E aquela que foi a maior tragédia nacional ainda estava longe de acabar.
A vacinação avançava em passos lentos. O desgoverno negligenciava medidas de contenção. O desaparecimento de quinhentos mil brasileiros decorria de um encadeamento de erros de desgovernantes secundados pelo cidadão comum, num rasto de tristeza e destruição: famílias despedaçadas, surtos de transtornos mentais, prédios de escola fechados, negócios falidos, órfãos lidando com o luto, sobrevivendo na saudade de um abraço.
Em viagem por Portugal, já não suportava escutar tristes notícias provindas de um Brasil, que eu aprendi a amar. Havia quem insistisse em minimizar os riscos da pandemia, quem apostasse em remédios ineficazes. E o descumprimento de medidas simples de contenção do contágio nos revelava a origem remota dos danos. Sofríamos os efeitos de um determinado modelo educacional, que atitudes negacionistas contribuíam para manter.
“Caríssimo Zé, na segunda-feira, falei com o meu diretor, que me disse não querer agitar águas nestes tempos pandémicos. Por isso, não pretende sequer ponderar a criação de uma turma piloto. Estou a ponderar mudar de escola, mas ainda são circuitos muito dúbios, porque só o posso fazer, neste momento, ao abrigo de condições específicas. No meu caso, será pela minha saúde mental. Assim, com muita pena minha, não poderei integrar o projeto das turmas piloto, E não posso garantir um grupo de trabalho, em setembro.
Gostaria de permanecer em contato e no grupo de tratamento da bibliografia de apoio à construção de comunidades de aprendizagem. Muito obrigada por todas as vezes que me acolheu e deu força, para eu saber que tenho direito a exigir educação, com o necessário abandono das práticas de ensinagem”.
O termo behaviorismo, consagrado na psicologia, tem origem no inglês (americano) behavior. No pressuposto da objetividade na observação dos seres humanos, tudo se explica através de leis de interação entre os humanos e seu meio. Nas escolas, o controlo social constrangia, récuas de burocratas reinavam. A adopção dos modelos de conduta dominantes deixava pouco espaço para o pensar e agir por si próprio. A submissão a “ordens superiores” não rimava com cidadania. Eu bem tentava manter a calma e a esperança, mas estava difícil suportar tanta sordidez. Sobretudo, quando o meu amigo Samuel, bom professor à moda antiga, me dizia:
“Ó Zé, deixa-te disso. Esses métodos não resultaram lá fora. Foi o que eu ouvi dizer. Portanto, eu cá vou dando as minhas aulinhas”.
O Samuel era marinheiro de última viagem, prisioneiro de um barco ornado de desilusão. Fingia indiferença (em nome dos velhos tempos, eu recuso acreditar que fosse indiferente) perante o fragor das vagas contra um casco imóvel. Se, entretanto, o que restasse do casco agonizante não fosse devastado por uma qualquer tempestade, repartiria o tempo de uma viagem parada entre o varrer do porão e umas braçadas na piscina da classe turística, enquanto não chegasse o almejado momento do desembarque.
Houve quem se amotinasse. Houve quem abandonasse a decrépita embarcação e empreendesse novos rumos. Mas. foram raros os amotinados. Vim a saber, através de um amigo comum, que os ventos resultantes da passagem por águas estagnadas ou revoltas, provocaram “ondas” e enjoos. A tal ponto que, ao invés de segurar o leme e corrigir o rumo, o Samuel desistiu de navegar. E se foi, na paz do Senhor, para o porto seguro de uma miserável aposentadoria.
Por: José Pacheco