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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXXIII)

Ariquemes, 29 de setembro de 2040

Quando o setembro do distante 2020 se acabava, o mundo superava a triste marca de um milhão de mortes por coronavírus. A OMS alertava para a possibilidade de as mortes duplicarem e poderem alcançar a marca de dois milhões de óbitos, acaso as medidas para evitar a propagação do vírus não fossem mantidas.

Uma cidade de Goiás decretava lockdown – “Só saia em caso de extrema necessidade!” – proibindo a aglomeração de pessoas em qualquer ponto da cidade, incluindo ruas e calçadas. No decreto, a prefeitura determinava que ficavam “absolutamente suspensos eventos públicos e privados de qualquer natureza” e até visitas a pacientes internados no hospital municipal.

Na contramão de recomendações (e da história), seres humanos eram empurrados para espaços onde o vírus podia circular à vontade, causando sofrimento e morte. O contágio progredia nas aglomerações em bares, festanças, estádios de futebol, nas igrejas e… no “regresso às aulas”. Os danos colaterais causados numa economia predatória forçavam a elaboração de planos para o “regresso às aulas”. E a peste instrucionista voltava em força.

Era compreensível a preocupação expressa pela UNICEF: pelo menos um terço das crianças em idade escolar – 463 milhões de crianças em todo o mundo – foi incapaz de acessar o ensino remoto quando a Covid-19 fechou os prédios das suas escolas. Embora os números do relatório apresentassem um quadro preocupante sobre a falta de aprendizagem remota, a UNICEF alertava que a situação era muito pior do que a que os dados apresentavam. Mesmo quando as crianças dispunham de tecnologia e ferramentas, não eram capazes de aprender remotamente por meio das plataformas, dado que… havia “falta de apoio para seguir o currículo online ou a sua transmissão”.

Estava implícito nessas conclusões que o prejuízo era muito maior do que aquele que o relatório apresentava. A praga da aula alastrara para além dos muros de “escolas” fechadas. Ter passado a aula presencial para dentro das casas fora tão inútil quanto dar aula dentro de um prédio a que chamavam escola.

Esse tempo assemelhava-se a um longo pesadelo. Busquei refúgio na escrita e naquilo que chamei de “partilha de beleza”. Enviava pedaços de “boniteza” a quem as merecia. A beleza está nos olhos de quem vê, nos ouvidos de quem sabe escutar, no coração de quem sente. Naquele tempo, pensar era estar doente dos sentidos. Pensar nos impedia de experienciar o amor e a liberdade, que, juntos, nos conduziam por caminhos da resistência.

Sabíamos que a educação é um ato estético e que éramos agredidos pela degradação do sensível. Para não desesperançar ou desistir da vida, valia-nos o concerto dos pássaros, nas suaves manhãs e nos fins de tarde no meu Jardim do Éden, saboreando o encanto de pequenas coisas, que fazem grandes os dias. A beleza nos salvava.

Nos tenebrosos tempos da guerra civil espanhola, o catalão Pablo Casals recusou viver sob a ditadura franquista e se exilou. Durante a Segunda Guerra Mundial, o gênio do violoncelo foi ameaçado e perseguido pelos nazistas. Pouco antes de falecer, deixou escrito:

“Eu estou sempre a renascer. Cada nova manhã é o momento de recomeçar a viver. Há oitenta anos que eu começo o meu dia da mesma maneira – e isto não significa uma rotina mecânica, mas algo de essencial para a minha felicidade. Acordo, toco dois prelúdios e uma fuga de Bach. É uma maneira de retomar o contacto com o mistério da vida, com o milagre de fazer parte da raça humana. A música que toco é sempre a mesma – ela ensina-me sempre algo de novo, fantástico, inacreditável.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXXII)

Bonito de Minas, 28 de setembro de 2040

No final de setembro de há vinte anos, uma sondagem informava que, na cidade de São Paulo, 75% das famílias se manifestavam contrárias ao “regresso as aulas”. Em cada quatro eleitores da capital paulista, três achavam que as escolas deveriam permanecer fechadas nos próximos meses. Mas, o estado e a prefeitura reagiram de modo diferente. Enquanto o governador definia o cronograma de reabertura, já a partir de outubro, um prefeito mais sensato  adiava a decisão.

Em outubro, a campanha eleitoral condicionava as decisões dos políticos. E nem sempre (ou quase nunca) essas decisões tinham respaldo na opinião pública, ou fundamentação científica. Prevalecia o oportunismo político, a demagogia, em prejuízo do interesse das crianças e em contradição com os mais elementares princípios éticos. A dignidade humana, o respeito pelas pessoas, a valorização da vida, princípios que seria suposto vivenciar em tenra idade, andavam ausentes das práticas de educação familiar, social e escolar. A decisão de “regressar às aulas” era disso exemplo.

Darcy Ribeiro dizia que o Brasil era uma sociedade com seu nervo ético rompido. O poder público não demonstrava seriedade nas intenções e gestos, não propiciava condições de uma cuidadosa prática escolar, que a situação de pandemia requeria. Ingenuamente, a opinião pública estava crente de que, aglomerando crianças em sala de aula, seria possível reatar a formação intelectual e moral dos jovens. Pura ilusão! Uma aula não formava. Uma aula formatava, conformava, deformava. A escola da aula produzia seres humanos que se apequenavam, porque a vida sem viver parecia ser mais segura.

Educar era e é, essencialmente, uma atividade ética, com efeitos indeléveis na vida das pessoas. E o impacto social do “regresso às aulas” deixou marcas, pois os burocratas reclamavam o direito à ensinagem, sem cuidar de saber se haveria liberdade na aprendizagem. A liberdade era um fim, mas também um meio privilegiado de educaçäo.

Apesar do “regresso às aulas” em precárias condições prejudicar a saúde mental dos alunos, as ordens do ministério não poderiam ser contestadas. E aos inúteis testes de matemática se somavam inúteis testes de despiste de covid-19 – O vírus entrava na escola sem pedir licença.

Medidas de segurança impunham que as turmas se passassem a chamar “bolhas”. Em muitas escolas, os alunos não tinham acesso ao pátio de recreio. Permaneciam no interior da sala de aula, ou nos corredores, durante breves intervalos. Passavam até cinco horas mascarados, circunstância atentatória de bem estar e saúde. Eram frequentes situações de alunos com dificuldades de adaptação a regras idiotas e inconsequentes. E muitas mães reagiam:

“Concordo que seja um ano muito atípico para todos. Mas, em vez de me enviar um e-mail a dar-me a entender que eu não estou a querer colaborar, o diretor deveria falar com o seu corpo docente e proibir que este tipo de situação acontecesse. Não gosto de deixar o meu filho numa escola onde, em vez de ser acolhido, é ameaçado por “professores”. Acho importante que o meu filho vá para a escola para aprender e conviver, mas não posso permitir que aconteça o que aconteceu”.

O que teria acontecido? Qual o motivo da indignação dessa mãe?

Perante algumas “desobediências” às ridículas regras impostas pelo ministério, a diretora de turma havia ameaçado os alunos nestes termos:

“Quem se comportar mal vai para o ensino à distância”.

Na despropositada ameaça, essa mãe encontrou um modo de acabar com os despropósitos… disse ao filho para se “comportar mal”.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXXI)

Lagoa Grande, 27 de setembro de 2040

No fim de setembro, Reino Unido, França e outros países defrontavam recorde de novos casos de covid-19. a “segunda vaga”. Países africanos pediam ajuda para a sobrevivência das suas economias, ajuda contra a pandemia, que apelidaram de “quinto cavaleiro do apocalipse”.

Em Portugal, o Governo recusava revelar números de infecções em escolas, dado que irresponsável e teimosamente o ministério tinha imposto o “início do ano letivo”. No final da primeira semana de aulas, algumas escolas já tinham sido obrigadas a encerrar de forma temporária as suas “aulas”. Ou enviara alunos para casa, devido a manifestações de casos de covid-19. O ministério não revelava quantos casos de infecção foram verificados, quantas turmas foram colocadas em ensino à distância pelo mesmo motivo e quantos alunos estariam em isolamento social. “The show must go on”…

Como única resposta, a tutela explicou aos jornalistas que as escolas tinham autonomia para tomar decisões e não estavam obrigadas a reportar esses acontecimentos. Se esta informação não fosse grave, seria, no mínimo, ridícula. Escolas autônomas? Cadê? Diretores submetidos ao dever de obediência hierárquica “regressaram às aulas”, pois fora essa a inquestionável ordem dos seus “superiores hierárquicos”. Não eram autônomos, para proteger a vida e a saúde dos alunos, mas eram “autônomos”, para ocultar informações.

Quando lia nos projetos político-pedagógicos das escolas a palavra “autonomia”, inquiria os professores sobre como desenvolviam autonomia nos seus alunos. Não sabiam o que responder. Nas aulas, que diziam “dar”, o que se fomentava era heteronomia, submissão, obediência formal, passividade, conformismo.

O desenvolvimento da autonomia deveria resultar de um posicionamento ético face a uma antropo-pedagogia. Poder-se-ia considerar-se a busca de uma liberdade racional, uma liberdade pulsional, ou a integraçäo de ambas, na realizaçäo equilibrada do ser humano como indivíduo digno. Acrescia a necessidade de se considerar a dimensäo social. E, no domínio da autonomia do aluno, se a näo-directividade ingénua do escolanovismo descurava a influência da sociedade sobre o indivíduo, a pedagogia autoritária descurava a possibilidade de autonomia no educando.

Extremismos teóricos e fundamentalismos pedagógicos eram obstáculos à tarefa de dotar os jovens de uma apropriação crítica das condiçöes sociais do exercício da autonomia. Era frequente ouvir falar de “protagonismo juvenil”, enquanto escolas e ministérios brincavam ao faz-de-conta da autonomia.

Queridos netos, no tempo da pandemia, como antes dela, o conceito de liberdade estava embotado de equívocos. Mas o que era, concretamente, a liberdade de uma criança, ou de um jovem aluno? O meu amigo António, por exemplo, costumava dizer “o aluno não faz aquilo que quer, o aluno quer aquilo que faz”, causando a irritação dos incondicionais seguidores do Neill.

O exercício da autonomia conferia dignidade ao ato de aprender. Os alunos do António “faziam o que queriam, querendo fazer aquilo que faziam” – sabedoria de um mestre de chão de escola. O António não reduzia o aluno a mero objeto de ensinagem, o aluno agia como sujeito de aprendizagem.

Apontada como uma das competências essenciais do século XXI, o exercício da autonomia seria uma utopia realizável, mas  nunca o seria no contexto da escola que tínhamos em 2020. Conscientes dessa impossibilidade, os núcleos de projeto apresentaram ao órgãos de direção propostas de “termos de autonomia”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXX)

Pirapora, 26 de setembro de 2040

A Amazônia enviava nuvens de cinza para o Sudeste. Sinais de fumaças decorrentes das queimadas no Cerrado e no Pantanal ofuscavam o céu do Centro-Oeste. A mancha já cobrira o Sul da Bahia… O desgovernado Brasil ardia. Nova tragédia ambiental se anunciava.

Sinto ser meu dever continuar a falar-vos dessa era de pós-verdade, para que a vossa geração não venha a sofrer os efeitos de um novo ciclo de desumanização. Em 2020, uma vaga de negacionismo e ignomínia se tinha abatido sobre a sociedade brasileira e, chegado o fim de setembro, a pandemia virara pandemônio. Aqui vos deixo uma breve coleção de notícias publicadas na Internet desses conturbados tempos.

Escolas particulares pressionavam desgovernos, clamando pela reabertura das dos prédios e o regresso às aulas. No meio do caos informativo, deparei com esta macabra declaração: “Crianças com câncer devem ir à escola por não terem riscos acrescidos”. Era uma afirmação técnica: “a gripe sazonal pode ter quadros clínicos muito mais graves nestas crianças do que a covid-19. Crianças, que estejam em tratamento, correm riscos acrescidos de contrair uma doença infecciosa, no caso de haver uma varicela ou sarampo e não é por isso que deixam de ir à escola” (sic). Prefiro não comentar…

Os Estados Unidos atingiam um necrófilo recorde, contabilizavam duzentos mil mortos pela covid-19. A Europa apertava medidas de proteção, face a uma segunda vaga pandêmica. A representação da uma ópera foi cancelada devido aos incessantes protestos do público na zona mais barata da sala de espetáculos, onde não tinha sido respeitada a distância entre lugares. Os aglomerados de natureza religiosa deram origem a um surto de coronavírus com dezenas de contagiados. E, num asilo, de oitenta e sete infetados três idosos estavam no hospital e sete tinham morrido.

Em Portugal, uma ministra avisava: “Todas as pessoas consideradas contatos de alto risco devem ficar isoladas, não ir ao trabalho ou à escola, fazer o teste e aguardar novas instruções (,,.) a primeira semana de ano letivo correu bastante bem”. Otimismo prematuro, porque não demorou sequer uma semana, uma escola mandou todo mundo para casa, após um funcionário contrair o vírus. No Brasil, alheios à balbúrdia, zelosos cumpridores de ordens de superiores hierárquicos continuavam a exportar inúteis aulas online. Urgia intervir.

Na contramão da insanidade, adultos jovens chamados neorrurais, buscavam um novo modo de viver, criavam formas de ação coletiva. A qualidade da vida urbana se deteriorara ainda mais com o caos provocado pela pandemia. “A cidade se tornou cara, caótica e violenta”, diziam, recusando a competição e o individualismo típicos dos meios urbanos. Paralelamente, se gestava uma nova economia, a questão ambiental passou a ser um ativo econômico.

Com o avanço da tecnologia comunicacional, a dimensão do espaço físico não impedia a conexão com o mundo. Os neorrurais praticavam cooperação, criavam soluções em coletivo. Pensando globalmente e agindo localmente, aproximavam-se do conceito e da prática de comunidade de aprendizagem. A Internet colmatava limitações da opção de vida na ruralidade, permitindo a prática do “home office” (que deveria chamar-se “home work”), mas mantinha  as crianças dessas comunidades dependentes do consumo de aulas online e do cumprimento de “tarefas de casa”.

No último sábado desse setembro, centenas de educadores se encontraram. Partilharam fragilidades, preocupações, conspiraram. A partir desse encontro, a educação nunca mais foi o que fora antes.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXIX)

Janaúba, 25 de setembro de 2040

Ouvi dizer que a história talvez sempre tenha sido uma luta entre o bem e o mal. E que, felizmente para a humanidade, o bem sempre acabou por vencer. Ou, como diria um filósofo do século XIX, esbatendo essa dicotomia, as vicissitudes da história foram sempre além da tensão entre bem e mal. Hoje, falar-vos-ei de quem, já no século XVI, tentava fazer o bem numa “terceira via”.

Enquanto ensaiava registros de história pré-colombiana e descrevia o início de outra história – a da colonização e exploração dos povos autóctones – o Manuel atenuava excessos dos primeiros colonos. Eram duras as suas críticas dos costumes, quando se apercebia de que até religiosos incorriam nos mesmos erros dos leigos colonizadores: omnes commixti sunt inter gentes et didicerunt opera eorum.

Manuel afirmava que possuir escravos era “contra a razão”. Apelava ao rei que mandasse comissários, para libertar os escravos, porque a Inquisição não o fez e semeou a morte em nome de Deus. Quanto ao rei, quando veio, não agiu contra a vil prática. Os gentios, que os jesuítas protegeram, acabaram dizimados pelas armas do homem branco e pelas maleitas que por toda a parte espalhou: entre a sífilis e a varíola, muitas comunidades foram exterminadas.

Nos anos vinte deste século, nem seria preciso introduzir a gripe dentro da tribo dos Goitacazes, para que a sua cultura fosse extinta. Bastaria levar para as comunidades indígenas a energia elétrica e a televisão. O missionário, o pastor fundamentalista e a escola fariam o resto. Bastaria que se reduzisse a Amazônia a cinzas.

Séculos após o desaparecimento desse Manuel, o Brasil permanecia incapaz de conter uma tragédia educacional traduzida em milhões de analfabetos e corrupção intelectual e moral. O modelo educacional, que continuava sendo criminosamente imposto às escolas procriara uma profunda crise, que se refletia no modo desastroso de gerir a pandemia.

A velha educação pontificava travestida de “nova” no discurso de ministros, secretários, áulicos e economistas, crentes de que as escolas poderiam ser geridas como se geria um gabinete de contabilidade ou uma padaria. Em eventos online – e presenciais, pós-pandemia – se vendia pedagógicas besteiras com o rótulo de “inovação”. A ignorância prosperava onde ocultos interesses denegriam a memória de Freire, onde se apelava ao regresso a um passado de onde a educação brasileira nunca havia saído.

Em 2020, o exemplo das Missões, que os jesuítas edificaram, renascia sob a forma do que poderemos chamar “comunidades”. As novas “reduções” do sul, que a ambição dos homens destruiu, dispunham de autonomia econômica e cultural e funcionavam num regime comunitário. Ia por aí a intenção de educadores, que adequavam ao século XXI propostas de antanho. O Fernando poetava dizendo que o sonho consistia em ver formas invisíveis e, com sensíveis movimentos da esperança e da vontade, buscar utopias realizáveis – esse tempo feito de ignomínia estava achegar ao fim.

Caminhos novos permitiam que a aprendizagem caminhasse junta com o desenvolvimento do pensar, da formação do caráter e do exercício de uma cidadania plena. O Brasil já dispunha de práticas que provavam a possibilidade de uma escola que a todos acolhesse e a todos desse condições de realização pessoal e social, base da construção de uma sociedade solidária, justa. Num país onde o tempo da educação havia chegado, tínhamos tudo aquilo de que precisávamos: gente, projetos, esperança.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXVIII)

Crianças em escola chinesa usam “chapéu de um metro”

 

Barcelos (Amazonas), 24 de setembro de 2040

Em meados do mês de setembro, a Unicef admitia que não se deveria esperar controle total da pandemia. Mas acrescentava: “priorizar escolas não é abrir já” (sic)., E a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) alertava para risco de agravamento da pandemia com a volta às aulas presenciais, pois “tinham o potencial de ser catastrófica, se mal implementada”.

Pelos cálculos feitos, se dez por cento dos eventuais contaminados necessitasssem de cuidados intensivos – o que era considerado uma “abordagem otimista” –, só em Minas Gerais, isso poderia representar um acréscimo de 102 mil doentes internados em unidades de terapia intensiva (UTIs) e quase 4 mil mortes.

Seguindo a recomendação da Fiocruz, o prefeito da cidade de São Paulo anunciou que as escolas não iriam retornar as atividades presenciais em setembro. A gestão considerava “temerário” reabrir as instituições de ensino, porque crianças e adolescentes poderiam disseminar o vírus. Este prefeito era um dos raros que agiam com consciência da gravidade da situação. O inquérito sorológico realizado pela Prefeitura mostrava que, dos seis mil estudantes entre quatro e catorze anos da rede municipal avaliados, 64,4% eram assintomáticos. Isto é, poderiam transmitir o vírus sem saber que estavam contaminados.

Obrigar crianças, jovens e adultos a aglomerar-se dentro de um prédio a que chamavam “escola”, em plena pandemia, era um ato insano. Forçá-los a ficar aglomerados, sem poder tocar-se era outra insanidade. E o que iriam aprender entre quatro paredes de uma sala de aula, que não pudessem aprender fora delas? Nada! Piaget já dizia que sempre que, numa aula, se ensinava alguma coisa a uma criança, proibíamo-la de inventar, de aprender.

Etimologicamente, o termo “aula” tem origem no latim: “pátio”. No Grego: “lugar aberto”. Consideremos a origem no grego “aulé”, pois as primeiras escolas funcionavam em construções anexas a prédios religiosos e pátios de residências, lugares abertos, arejados. Talvez por isso, durante pandemias anteriores à covid-19, muitas escolas funcionassem ao ar livre…

Quando assistia à reabertura de escolas particulares, eu evocava episódios de antanho. Como aquele em que, sendo pacifista nato, fui involuntário personagem de uma guerra inútil, como todas as guerras são. Nas colônias africanas jovens guerrilheiros e jovens portugueses se matavam em nome de nada. Antes de qualquer missão, os comandantes faziam o cálculo das “baixas”. Quando os desgovernantes de 2020 encaravam a possibilidade de contágio, admitiam que o “regresso à escola” seria um “estado de guerra”, que poderia causar “baixas”. Se necessidade houvesse de alguma guerra, ela se faria contra um inimigo bem mais letal do que ao covud-19, para combater os perniciosos efeitos do instrucionismo. A escola da aula provocava muitas “baixas”: matava a curiosidade e a vontade de aprender, comprometia o desenvolvimento emocional e social do ser humano.

De uma mãe preocupada recebi estas palavras:

“Só eu sei como esse ano sem escola está fazendo bem para os meus pequenos, que tão cedo foram para uma instituição, não por necessidade deles e sim por necessidade de uma sociedade que não leva em consideração a infância e transforma as crianças em mini adultos com regras e rotinas que nem gente grande dá conta. Que triste perceber isso. É de doer o coração!”.

Essa e outras mães responsáveis temiam o estrago feito na vida dos seus filhos, no “regresso às aulas”. E tinham razões para se preocupar.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXVII)

Santa Rita do Sapucaí, 23 de setembro de 2040

Num artigo há vinte anos publicado, a Helena alertava para o amadorismo das análises de política educacional e a prevalência de um burocrático discurso:

“Completados seis meses de fechamento dos prédios escolares, multiplicam-se os debates, balanços, propostas e polêmicas em torno de questões sobre “recuperar a aprendizagem”, “aprovar ou reprovar automaticamente”, “como seguir os protocolos na volta às aulas”, entre outras que abordam a educação com a linguagem e as problemáticas mais próprias do campo das ciências contábeis. Posições mais extremistas alertam para “danos irreparáveis”.

Reparai num pormenor: a Helena usou a expressão ”prédios escolares”, porque sabia que as escolas não eram e nunca foram prédios. Escolas eram e continuaram sendo, até hoje, pessoas aprendendo dentro de prédios ou fora deles.

O artigo da Helena era como um “separador de águas”. Também por isso o recupero do esquecimento a que foi votado. Ouso extrair dele mais algumas citações. Nunca fui “puxa-saco” e espero que a Helena o entenda como preito de homenagem a uma das vozes lúcidas desses tempos de medo e submissão.

Enquanto um parecer do CNE – caixa de ressonância de pesquisas instrucionistas de universidades norte-americanas – alertava para “perdas de aprendizado”, a socióloga assim se manifestava:

“Uma visão que tem ganhado mais relevância no debate é especialmente perturbadora, a ideia de “perda do aprendizado”. Pesquisas de consultorias americanas e mesmo de instituições brasileiras que comprovam esta perda foram citadas em parecer do Conselho Nacional de Educação sobre o assunto e vêm ganhando manchetes de jornal. Esta perspectiva é condicionada pelos nossos processos de escolarização, que associam de forma absoluta o ato de aprender com a experiência de estar em sala fechada ao longo de várias horas por dia, ao lado de algumas dezenas de pessoas da mesma idade, assistindo aulas sobre conteúdos previamente preparados por professores especializados em certas disciplinas e, a cada bimestre, testar os aprendizados em provas. A pandemia suspendeu abruptamente os grandes pilares desta experiência: os prédios escolares, as aulas, os agrupamentos etários, a imobilidade dos corpos nas carteiras”.

É bem verdade que a pandemia suspendeu os grandes pilares da escola da aula. Mas, arteiro, o instrucionismo se recompôs. Matreiros, os áulicos o refizeram. Hábeis mistificadores, os burocratas continuaram a impor regulamentos fósseis. A escola da aula sobreviveu à pandemia e mais uma oportunidade de inovar foi adiada. Nos idos de vinte, a duras penas, apenas um punhado de gente lúcida obstava a que mais disparates fossem consumados.

Para vós, que viveis num tempo em que a ciência é respeitada, poderá parecer estranho que, poucos anos atrás, assim fosse. Para que acrediteis, vos deixo com duas notícias, que encontrei num velho arquivo.

Em plena pandemia, no Rio de Janeiro, uma das regiões mais afetadas pela covid-19, o prefeito anunciava o regresso do público aos estádios, moeda de troca de apoio político, em tempo de eleições. Em Minas Gerais, a Justiça proibia o regresso às aulas num colégio militar, decidindo manter em “regime de teletrabalho todos os professores”. E o Ministério Público Federal requisitou ao diretor da instituição que apresentasse estudos técnicos, que sustentassem o retorno às atividades presenciais.

Negacionismo e ciência se confrontavam. A par da vírica pandemia, a epidemia da corrupção intelectual e moral alastrava. Mas, o bom senso sobrevivia.

Por: José Pacheco
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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXVI)

Abadiânia, 22 de setembro de 2040

O Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil e o Estatuto do Aluno e Ética Escolar português eram claros:

“Perante situação de perigo para a segurança, saúde, ou educação do aluno, designadamente por ameaça à sua integridade física ou psicológica, deve o diretor diligenciar para lhe pôr termo, pelos meios estritamente adequados e necessários e sempre com preservação da vida privada do aluno e da sua família, atuando de modo articulado com os pais, representante legal ou quem tenha a guarda de facto do aluno”.

Isto se aplicaria no imposto “regresso às aulas”. Sem garantias de isenção de contágio, as famílias não poderiam ser obrigadas a isolar socialmente os seus filhos numa sala de aula. Mas foram. Em situações de aula síncrona, se ameaçava de punição quem desviasse os olhos da tela do computador. E, durante o tempo em que os pobres alunos eram forçados a assistir a inúteis aulas online, se exigia que estivessem fardados com o uniforme da sua escola.

Entre o medo de perder o emprego e a desfaçatez decorria a ensinagem à distância, acompanhado de “democráticas” ameaças. Num vídeo postado na Internet, uma diretora “puxa-saco” agradecia “o carinho das famílias que têm colaborado e fizeram a entrega das atividades, que conseguiram estar em dia com a entrega das atividades”. Após essa ridícula manifestação de “chantagem emocional”, exigia a entrega da “atividade”:

“Porque nós também estamos sendo cobrados. Peço desculpa por se sentirem cobrados, mas estamos sendo cobrados por órgãos judiciais sobre o nome das crianças que não estão participando nas atividades”.

E da insinuação, passava à ameaça:

“A evasão provoca a perda da vaga. É muito complicado não mandar as famílas para o Conselho Tutelar. Não queremos mandar um aluno para o Conselho Tutelar, nem para nenhum órgão, nem para a secretaria de educação, como um aluno faltoso”.

Concluía num tom conciliador, estabelecendo um novo prazo para entrega das atividades:

“É para contar como frequência. E os professores precisam fazer o planejamento”.

Sem comentário! E volto ao excelente artigo da minha amiga Helena, quando ela fazia um balanço do que fora a dita “ensinagem remota”:

Como estávamos condicionados a somente reconhecer a aprendizagem associada à experiência da sala de aula, imediatamente começamos a contabilizar as “perdas da aprendizagem” a partir dos dias em que os prédios escolares estão fechados. Algumas escolas trataram de, o mais rápido possível, recriar os mesmos pilares em bases remotas (…) criaram um sistema capaz de fazer seus estudantes ficarem as mesmas 5 horas diárias na frente do computador, basicamente assistindo aulas. Os pais destes estudantes, de início, aliviados com a manutenção da rotina, depois de algum tempo, perceberam graves problemas associados a ela, como desmotivação, fadiga e frustração. Os estudantes, mais sensíveis aos limites da proposta, trataram logo de não ligar suas câmaras e assim manter algum nível de liberdade corporal e mental, mas acabaram por ampliar a angústia dos professores.

Estudantes desligaram os professores, fugiram ao seu controle. Aliás, seguiram as recomendações da OMS. Uma delas dizia-nos que os jovens deveriam estar, no máximo, duas horas por dia expostos à tela de um computador e que essa exposição não deveria ocorrer duas horas antes de se deitar, dado que a luz interferia nos padrões e na qualidade do sono.

Queridos netos, podereis pensar que estou a exagerar nas descrições, mas tudo aconteceu tal e qual vos conto. Juro!

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXV)

Várzea de Palma, 21 de setembro de 2040

“Chegamos, então, ao pilar mais evidentemente erodido do sistema escolar pela pandemia: a organização dos tempos e espaços. Ela expôs com clareza o caráter massificador da estrutura baseada em salas de aula com 30, 40 ou mais estudantes em prédios que reúnem centenas deles. Agora todos chamam isso de aglomeração. Nada menos propício aos processos educativos”.

A Helena “pregava no deserto”. Mas, tentarei explicar-vos, de modo que vós possais entender absurdas situações de há vinte anos.

Por setembro, alguém me disse que um diretor de agrupamento – “agrupamentos” eram burocráticos ajuntamentos de escolas – andava de fita métrica na mão, a falar de contraturnos, bolhas de segurança e centímetros. Pobre diretor!

Enquanto isso acontecia, numa escola próxima, outro diretor lidava com um protesto de pais contra uma “turma mista”, uma turma constituída por alunos do primeiro e do segundo ano. Nesse tempo, as crianças eram repartidas por cartesianos segmentos a que davam o nome de “ano de escolaridade” – Vá-se lá saber por quê!

Os pais dos alunos barraram a entrada da escola com troncos de árvores. E, num dos cartazes afixados no gradeamento da escola, lia-se: “Queremos distanciamento físico”. Talvez porque o distanciamento psicológico já existisse… Na sala de aula, precários vínculos coabitavam com um vazio constitutivo imposto pela ensinagem frontal anônima. Em outro cartaz, os pais escreveram: “Porquê duas crianças a partilhar a mesma mesa quando temos uma sala vazia?”

Nesse tempo, os alunos eram armazenados, duzentos dias por ano, em salas “vazias” de respeito pelo direito de aprender. Mas muitos pais e professores “achavam” que, se muitos alunos não aprendessem, isso era… “normal”.

“Nunca houve turmas mistas, vai haver logo agora em tempos de covid e quando há uma sala vazia?”, insurgiu-se um dos revoltados pais.

A DGEstE – uma estrutura burocrática e autoritária dessa época – fez valer a sua prerrogativa: “Por decisão superior, não será considerada a constituição de nova turma”. E mais não disse.

Por inverosímil que possa parecer, queridos netos, as instâncias de poder eram surdas a argumentos de natureza científica. E a escola da aula reproduzia um modelo social gerador de exclusão e “naturais” hierarquizações. Questionava-se o distanciamento físico, enquanto se ostracizava distanciamentos sociais: escolas privadas versus escolas ditas públicas; condomínios particulares versus bairros periféricos; classe executiva versus classe económica. Pela sua natureza, a escola da aula contribuía para agudizar os efeitos de uma globalização neoliberal, que remetia o ser humano para bolhas sociais feitas de ostentação, miséria e solidão.

Retomemos o pertinente artigo da Helena:

Precisamos de uma estrutura que garanta a interação pessoal educador-estudante, o acompanhamento individualizado das aprendizagens e, ao mesmo tempo, a experiência coletiva da construção do bem comum, do diálogo, da convivência, do cuidado com o outro, da diversidade. Se os prédios e a velha estrutura chamada enturmação não servem para isso, utilizemos todos os recursos disponíveis, inclusive os tecnológicos que agora os professores conhecem”.

O “agora” da Helena era o de há vinte anos. Naquele tempo, insurgia-me por ver maltratar a infância. À distância de duas décadas, já consigo narrar fatos de antanho, sem quase deixar transparecer a revolta, apenas com resquícios de indignação. Parece que a velhice nos devolve a serenidade, que, quando novos, nos falta.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXIV)

Araguapaz, 20 de setembro de 2040

No Portugal dos primeiros dias do “regresso às aulas”, desgovernantes preocupavam-se com as concentrações no Santuário de Fátima. O “13 de outubro” aproximava-se e eles depositavam, “toda a confiança na organização do Santuário” – a divina providência iria proteger os peregrinos, ou não fosse Fátima uma terra milagreira… Sobre outras aglomerações, como as que aconteciam nas portas das escolas, os desgovernantes diziam “estar a procurar as melhores soluções” e que o uso da máscara era, em si mesmo, uma das soluções:

“Foi-nos dito que a máscara é mais benéfica do que prejudicial para as crianças, ainda que possa afetar-lhes o desenvolvimento por não poderem reconhecer expressões faciais” (sic).

O “regresso às aulas” decorria entre o absurdo e o ridículo. O achismo assumia a sua máxima expressão. Sabia-se que dois terços dos jovens eram assintomáticos, que qualquer um poderia ir “doente para a escola” sem que a escola os pudesse detectar, mas o negacionismo prevalecia sobre o bom senso:

“Pedimos às escolas para que haja ventilação natural e para que ninguém vá doente para a escola” (sic).

Como comentava uma articulista, “havia escolas para todos os gostos, do mais hipocondríaco ao mais descontraído”: a escola que desinfetava; a escola que recomendava distanciamento e mãos lavadas; e a escola que não permitia que os alunos nela fizessem refeições.

A alegria invadia os prédios das escolas no reencontro de amigos. Mas os amigos poderiam matar saudades em qualquer lugar, poderiam aprender em outro lugar, sem necessidade de um aparato aparentemente protetor.

O confinamento passava da sala de estar para a sala de aula: nas “aulas de reforço”, sob pretexto de uma ilusória “recuperação de atrasos”; nas “aulas sem intervalo”, que eram doses duplas de tédio; e em vãs tentativas de “recuperar aprendizagens” – “reforço, intervalo, recuperação, aula”, tralha pedagógica típica das pandemias dos século XIX e XX, mas em plena pandemia do século XXI. A hegemônica escola instrucionista, para além de estar fora da lei, carecia de explicação científica. Desde há mais de um século, nenhuma proposta teórica credível suportava o burocrático complexo.

O distanciamento temporal permitiu aos sociólogos de 2040 encontrar uma razoável explicação: em 2020, a educação familiar, social e escolar reproduzia uma cultura remanescente de tempos sombrios. Mas, já em 2020, outra socióloga, a minha amiga Helena, publicava um artigo com o sugestivo título: “Não voltar, recriar a Escola”. Apesar de ter perdido atualidade – o instrucionismo já foi erradicado das escolas – retirei o artigo do baú das velharias, dada a sua densidade e acuidade. A Helena, freiriana praticante e filha de outro Paulo, o insigne Mestre da “economia solidária”, fazia uma leitura atenta da situação:

“O mundo que levou à pandemia é profundamente marcado pela desigualdade, pela degradação social ambiental e pelo autoritarismo de bases colonial, machista e racista. Como já sabemos desde Bourdieu, Illich, Foucault e outros pensadores, a escola disciplinar, com sua estrutura baseada nos anos letivos, salas de aula, conhecimento fragmentado e provas, tem sua parcela de responsabilidade pela manutenção deste estado de coisas”.

Quem teve a maior parcela de responsabilidade foi quem, antes e durante a pandemia, contribuiu para a manutenção da escola da sala de aula, disfarçada de “invertida”, “híbrida” e outros modismos. Também foram responsáveis aqueles que deram guarida a essas e a outras falsas “inovações”.

Por: José Pacheco

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