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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXLII)

São Gonçalo, 16 de fevereiro de 2041

No fevereiro de há vinte anos, quando se aproximava a semana do Carnaval, Paes (era o prefeito do Rio) proibiu as festas e os desfiles, dirigindo-se aos cariocas nestes termos: “não sejam otários”. Tal e qual!

Essa expressão traduzia na perfeição a dramática situação vivida no Rio. No pico da pandemia, multidões se reuniam em festas, os bares estavam lotados de criaturas sem máscara de proteção, as praias eram lugares de grandes aglomerações e… as crianças “voltavam às aulas”.

Interesses de natureza econômica – de escolas particulares, como de escolas de samba – prevaleciam num cenário de catástrofe. A “hecatombe escolar” (título de um livro da década de cinquenta) pressagiada por um ilustre pedagogo consumava-se, sendo agravada pelo descuido de significativa parcela da população, pela corrupção dos políticos, pela ambição de empresários. 

A contaminação ocorrida em escolas confirmava a irresponsabilidade do “retorno às aulas” sem vacina para todos. Os ditos “protocolos de segurança”, por mais rigorosos que fossem, não impediam a circulação do vírus. No “novo normal”, a vacinação urgente e necessária era adiada pela incúria de desgovernantes. Atentas aos perigos, muitas famílias me procuravam, pedindo informação de escolas “alternativas”, pois recusavam o “regresso às aulas” e buscavam escolas “diferentes”. Os trágicos efeitos do corona suscitavam a reflexão sobre um vírus dissimulado, que, desde o século XIX, fizera mais vítimas do que a covid-19: o vírus do instrucionismo (chamemos-lhe “instru-XIX”)

Um ano após o início da pandemia, ainda havia quem defendesse tratamentos sem eficácia comprovada e questionasse a validade de vacinas já aprovadas. A escola instrucionista nem sequer ensinara a lavar as mãos, pelo que urgia encontrar um “antropogógico imunizante”. Mas, um estranho fenômeno saído das catacumbas da incivilidade e que poderia ser considerado absurdo em plena Idade Média se manifestava nos idos de vinte: o negacionismo educacional.

Se no domínio da saúde pública, as contribuições da ciência eram ignoradas, o mesmo acontecia no domínio da educação. Sem qualquer suporte de cientificidade, o instrucionismo sobrevivia sob a égide do autoritarismo, contaminava as escolas com o instru-XIX, até com recurso a meios ilícitos.

Em próximas cartinhas, vos trarei exemplos de irregularidades cometidas pela administração educacional. Por agora, vos deixo com um episódio, que marcou uma viragem na minha relação com “superiores hierárquicos”.

Estávamos em 1976. Ainda não tinha sido publicada uma lei de bases. Sem suporte legal, restava-nos a científica desobediência. Comunicamos ao ministério que o nosso trabalho passaria a ter por referência o paradigma da aprendizagem, e expusemos referências teóricas em que baseávamos a decisão.

Curamo-nos, evitando que as nossas continuassem a ser infetadas pelo instru-XIX. No “novo normal”, o ministério já não podia aplicar os seus regulamentos. Não tardou que um inspetor nos visitasse.

“Voltareis, ainda hoje, para a sala de aula, ou…” – ordenou o inspetor.

“Ou o quê, senhor inspetor? Por que deveremos voltar a dar aula?”

“Porque está na lei” – insistiu o inspetor.

“E por que está na lei? Diga.” – demandamos.

Não respondeu. Apenas fez lembrar que era nosso “superior hierárquico”.

Sugerimos que lesse Montessori, Freinet, Dewey, Steiner… e recordamos-lhe que a ditadura terminara dois anos antes.

O inspetor não mais voltou. Nós nunca mais “demos aula”. “Simples assim”, como diria o Lenine, numa canção.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXLI)

Paripueira, 15 de fevereiro de 2041

Foi Sartre quem disse haver dois tipos de pessoas que diziam a verdade: as crianças e os loucos. E o Rubem avisava que, num mundo ao contrário, os loucos vão na direção correta, no certo sentido. Ainda hoje, evidentemente, o que é evidente… mente. Nos idos de vinte, os verdadeiros loucos andavam à solta, a loucura normal internava os considerados loucos em hospícios e sequestrava crianças em salas de aula.

Vai para um século, uma Nise, que um tal Carl Jung admirava e desejava conhecer, afirmava a possibilidade de uma escola na qual os aprendizes aprendessem a lidar com um conhecimento mutante, na busca da integração das diversas dimensões do humano “para garantir condições de se atribuir novos sentidos à existência e atender a necessidade do engajamento do sujeito na construção do futuro”.

Amados netos, eu ia dizer que, se fosse viva, Nise faria hoje 136 anos. Erraria no pressuposto, pois Nise está viva, bem presente no quotidiano dos anos quarenta. Só os não-loucos não a veem.

Nascida em Maceió, cursou a faculdade de medicina na Bahia, e no Rio de Janeiro se tornou psiquiatra. Por não aceitar as formas de tratamentos psiquiátricos em uso na época, como o eletrochoque, a lobotomia, o coma insulínico, Nise enveredou pela prática da terapia ocupacional. Atividades como pintura e modelagem se tornaram meios de acesso ao mundo interno dos pacientes.

“A busca da verdade e da beleza são domínios em que nos é consentido ficar crianças toda a vida”, como nos dizia Einstein. E as pinturas dos considerados loucos, nos quais Nise reconheceu genialidade, deram origem a um belo museu. Da tão abundante e de tão elevada qualidade, da produção dos ateliês nasceu o Museu de Imagens do Inconsciente.

Introdutora da psicologia junguiana no Brasil, Nise foi presa e afastada do serviço público durante a ditadura Vargas. Após a anistia, fundou a Casa das Palmeiras, a primeira clínica brasileira destinada ao tratamento psiquiátrico em regime de externato.

A loucura benévola dos habitantes do Engenho de Dentro em nada se comparava à loucura daqueles que, fora dos hospícios, insistiam em manter um sistema de ensino gerador de ignorância e infelicidade. As escolas poderiam constituir-se em espaços de cultura, lugares onde saberes eruditos se casariam com os saberes populares, onde a transformação aconteceria na partilha do conhecimento produzido, sem necessidade de entrar num prédio de escola, no horário-padrão de aula, ou de ter “falta” por chegar atrasado. Sem necessidade de departamentos de “transporte escolar” sorvedouros de recursos (administrativos, motoristas, manutenção, combustível… máfias), que forçavam as crianças a acordar de madrugada e a penar longas viagens, para ouvir auleiros papagueando conteúdo.

Longe vai o tempo dessa louca velha escola, que cerceava a salutar criatividade da infância e provocava a desertificação das comunidades. Nise foi inspiração para os educadores que, nos idos de vinte, por todo o Brasil, ergueram protótipos de comunidade de aprendizagem. Educadores que optaram por práticas de eco sustentabilidade, de estímulo ao espírito inventivo e da criação de soluções novas, baseadas no princípio ético que nos diz que tudo o que for inovado o deva ser para benefício coletivo.

Há vinte anos, chegava o tempo de, à semelhança de Jung, o Brasil encontrar Nise. Que, no lugar etéreo onde ascendeu a possamos reencontrar e Nise possa acolher nova homenagem daqueles que, em tempos sombrios, fizeram despontar a claridade que pôs fim à loucura de velhos “novos normais”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXL)

Campos de Goytacazes, 14 de fevereiro de 2041

O Álvaro nasceu “branco quase preto”. Aos sete anos, a piedosa senhora a quem servia de criado quis ensinar-lhe o catecismo. Foi assim que o Álvaro aprendeu as primeiras letras. Mas os seus companheiros de infância não lograram ir à escola. Quis a sorte e a herança escravagista que viessem ao mundo pobres e sem condição de estudar.

O moço era esperto, tinha queda para o estudo e era o orgulho da sinhá, que não se cansava de mostrar às amigas as notas obtidas pelo Álvaro: dez em tudo! Porém, se libertara a mente, o corpo não se libertara do restrito território, no interior mais interior do mundo rural. Após muitas tentativas de emancipação, foi rotulado de ingrato e expulso da fazenda. Errou campos e estradas, serviu a outros senhores Como diria o Adoniram no seu “Tiro ao Álvaro”, apanhou mais flechada que o mártir Sebastião…

Após alguns anos de via-sacra, amealhou proventos suficientes para estudar à noite. Entrou na universidade, já adulto feito fez-se professor. Muito aprendi com ele!

O Álvaro era um romântico da educação e um conspirador. Não se conformava com o estatuto de menoridade profissional que lhe era imposto. Juntara-se a outros “românticos conspiradores”, progredira para a organização de um núcleo de projeto e, por volta de fevereiro de 2021, já se inseria numa turma-piloto. Dizia ser “mais de quebrar do que de torcer”. E, criticamente, lamentava desistências de companheiros de jornada:

“A culpa é nossa. Se nos olham como uns coitados, nós agimos como uns coitados”.

Não aspirava ao destino dos praticistas, que acreditavam que a pedagogia era apenas arte e uma questão de jeito. Mas também não queria acabar os seus dias anafado e solitário, fechado num gabinete, ao fundo de um corredor de uma universidade, como acontecia aos teóricos que criam ser a pedagogia apenas uma ciência oculta. Muito menos desejava o destino daqueles que, teorizando teorias, que teóricos produziram sobre teorias de outros teóricos, negavam à pedagogia o estatuto de ciência.

O Álvaro ficava perplexo perante a perplexidade de outros professores, que, à míngua de entendimento, o criticavam. Confessava ficar magoado com as flechadas que deles recebia. Dizia estar decepcionado com a sua escola, onde nada se criava e tudo se copiava. Mas não desistia de recriar. E como era maravilhoso aquilo que fazia com as suas crianças, ignorado, como muitos outros professores “diferentes”.

Nos idos de vinte, o Brasil via surgir e desaparecer excelentes projetos. Os protagonistas de que o Álvaro descendia – Eurípedes, Nilde, Agostinho, Nise, Lauro e tantos outros! – se foram, sem honra nem glória, sem qualquer proveito para a educação e para a nação. Esses projetos raramente foram avaliados. Se o foram, as conclusões dos estudos de caso e de outros trabalhos académicos ainda jazem no fundo de um qualquer arquivo universitário, sem serventia.

As escolas mantinham-se ensimesmadas, rotinadas na ensinagem. Os professores mantinham-se dependentes de estéreis e despropositadas medidas de política educacional, ou ancorados na ilusão da última moda pedagógica.

Escutei este desabafo de uma professora, consumidora compulsiva de compêndios de auto ajuda pedagógica e frequentadora assídua de congressos: “A gente já pôs os alunos em filas, em círculo, em grupo. Agora, vamos ter de voltar a pô-los em filas? Ou vou vender banana?”

À semelhança do Álvaro, de tanto levar flechada, a professora “não tinha mais onde furar”.

A estória não termina aqui e tem um fim feliz. Numa próxima cartinha vo-la contarei. Prometo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXL)

Itatiaia, 13 de fevereiro de 2041

Ontem, celebramos o centenário do Lauro. O aniversariante de hoje é Agostinho da Silva. E, nesta semana, ainda evocaremos mais um vulto da educação brasileira.  Se o faço, amados netos, é porque importa relembrar a extraordinária obra desses autores. E porque me apercebi de que, se hoje são considerados incontornáveis referências, raros eram os educadores que, nos idos de vinte, deles tinham conhecimento e ainda mais raros aqueles que os estudavam e os praticavam.

É vasta a obra agostiniana. Em Portugal, avulta a publicação dos cadernos de divulgação cultural escritos “para a Mocidade e a Juventude e dedicados à Ciência”. E ainda assisto com agrado às suas “conversas vadias”, guardadas numa velha pen drive. Perto da sua morte, nos diálogos que manteve com diversas personalidades, mantinha uma impressionante lucidez e nos dava notáveis lições de saber, tão humildes quanto universais. Dotado de uma simplicidade franciscana, assim reagia a reverências e mesuras:

“Acho graça às homenagens que me prestam, excelente sinal de ilusões que a eles restam; sou tão humano quanto os outros, com qualidades e defeitos e mais as manhas que se escondem em seus peitos; de nós nada mais deixamos que vãs memórias”.

Assim o descreviam os seus contemporâneos: eterna criança em plena liberdade, possuído pelas características do que houver no sagrado, visionário, exemplo de paz e de harmonia absoluta.

Vi nele o exemplo de coragem, que me faltava. Não gostava de cartilhas e nunca teve medo de dizer o que era. Por se ter recusado a assinar uma leique obrigava os funcionários públicos a declararem que não participavam em “organizações secretas, subversivas”, foi demitido do ensino oficial. Acossado pela Ditadura, destituído de funções, se autoexilou no Brasil. Na brasileira em Itatiaiacriou um protótipo de comunidadeparticipou da fundação de universidades na Paraíba e em Santa CatarinaCom o Darcy, criou o Instituto de Letras da Universidade de Brasília.

Não possuía CPF nem conta bancária. Declarava que o homem não foi feito para trabalhar, mas para criar. E que a vida deveria ser gratuita. É conhecido o episódio em que Darcy lhe entregara um envelope com o primeiro salário. De imediato, distribuiu o dinheiro pelos candangos, que habitavam o mesmo barracão.

Com ele aprendi, a não usar de um discurso de código elaborado. Se, nestas cartinhas opto pelo tom coloquial, acessível a todo e qualquer leitor, a ele o devo. Porque, nas entrelinhas dos escritos de Agostinho, repensei a escola. A par de Freire e de Lauro, a sua simplicidade e coragem me conduziram por caminhos de inovação, que desembocaram na criação de uma rede de comunidades de aprendizagem.

Quarenta anos após a sua despedida do Brasil, a educação da sua segunda pátria continuava à deriva, perdida entre modas e reformas. Antes de voltar para Portugal, escreveu que, se Portugal desembarcou na África, na Ásia e na América, só faltaria que Portugal desembarcasse… em Portugal. A nova educação do sul iria “desembarcar” no norte e inaugurar um novo renascimento, sem escravagismo, sem tirania. Proféticas palavras, pois, desde o meu primeiro dia nestas terras do sul, me apercebi de que o futuro da educação estava aqui.

Durante mais de meio século, eu ouvira falar da “educação do futuro”, cerne de teóricos debates. E, enquanto, nos idos de vinte, a UNESCO voltava a debater uma mítica “educação do futuro”, ela se fazia presente em turmas-piloto anunciadoras de uma nova construção social de aprendizagem. Estava em gestação a nova educação do mundo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXXIX)

Recreio dos Bandeirantes, 12 de fevereiro de 2041

Há exatos vinte anos, com educadores que não matam memórias e as vivificam, celebrei o centenário do nascimento de Lauro de Oliveira Lima.

Netos queridos, muitos anos antes, aquando da minha vinda para o Brasil, tivera o privilégio de conversar com o Mestre. Melhor fora dizer que, religiosamente, o escutara. E, neste tropical fevereiro de 2041, lhe presto uma singela homenagem, partilhando-o, dando-vos a conhecer segmentos de uma das suas obras.

Na década de sessenta, Lauro escreveu o “Educar para a Comunidade”. Nesse livro, discorria sobre princípios que, se fossem lidos e adotados nas décadas seguintes, evitariam o caos social dos idos de vinte:

“Uma sociedade que se estrutura através de imposições não pode exigir minha participação. Não sendo coautor, não posso ser responsabilizado. O que se propõe é a substituição do processo de “obediência cega” pelo de “dinamismo de grupo”, o que do ponto de vista político-social significa a troca da tirania pelo processo democrático. 

O educador não está preparando indivíduos: está construindo um sistema social. Não se encontra, nos menores detalhes a vida escolar, uma oportunidade para a solidariedade e para a vida comunitária. Estão implícitos nas práticas escolares vigentes os ideais de uma educação em que figurem como valores a satisfação pessoal, a garantia de sobrevivência à custa de tudo e todos, o prestígio social conseguido de qualquer maneira, a capacidade de acumular bens e aumentar a produtividade em próprio proveito e, finamente, a visão do “outro” como um provável concorrente e competidor”.

E aquele que abrasileirou Piaget fundamenta as suas asserções nas palavras do seu Mestre:

“O respeito mútuo substitui a heteronomia caraterística do respeito unilateral por uma autonomia necessária a seu próprio funcionamento e que se pode reconhecer pelo fato de que os indivíduos por ele obrigados participam da elaboração da regra que os obriga”. 

Na mesma obra, Lauro aponta rumos para uma nova escola. Secundando Freire, diz-nos que ninguém aprende sozinho, que se aprende na intersubjetividade. Trinta anos antes do Ramon, aponta o rumo da comunidade de aprendizagem:

“O indivíduo se auto realiza na medida em que amplia suas inter-relações, em que comunica, em que participa na parcela maior da realidade. Inserido o indivíduo no contexto, é o contexto todo que deve ser objeto da ação educativa.

A solução é descentrar a atuação educativa do indivíduo em si para o campo em que se processa a sua liberdade criativa. É hora de começarmos a pensar em outro tipo de escola. A primeira medida é quebrar os muros que a segregam. É renunciar a que o corpo docente e não a comunidade é que educa. A escola deve servir à comunidade e participar de todas as atividades da comunidade”.

Perseguido, destituído de funções, Lauro não se resigna, mantém-se fiel a princípios e conclui:

“É preciso uma profunda crença na liberdade e na educação para não esmorecer diante de tantos obstáculos”.

Na segunda semana de fevereiro do distante 2021, se esboçou o cumprimento dos desígnios do Mestre. Honrando a sua memória e o seu legado, educadores extraordinários desenvolveram um processo formativo a que deram o nome de… “Aprender em Comunidade”.

Uma centenária utopia se concretizava. Núcleos familiares e círculos de vizinhança se juntaram a professores éticos, dando origem a turmas-piloto, que, definitivamente, varreram das escolas o instrucionismo. Uma fraterna rede de comunidades de aprendizagem despontava, dando forma ao sonho do Lauro.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXXVIII)

Algures, em 11 de fevereiro de 2041

Na segunda semana de fevereiro do já distante 2020, foram muitas as mensagens recebidas de professores pedindo ajuda, face a uma inusitada situação: os prédios das suas escolas tinham sido fechados “por ordem superior” (sic).

Esses professores manifestavam ansiedade, até mesmo angústia. Eram pessoas responsáveis, desejavam o melhor para os seus alunos. Porém, sem acesso à sala de aula, se achavam numa situação que não sabiam como gerir.

Industriados pelas suas escolas, buscaram o paradeiro dos seus alunos, na Internet. Dos mais de cem professores, que me pediram ajuda, aquele que mais alunos alcançou apenas conseguira contato com menos de um terço da sua turma. Dispus-me a ajudá-los. Convidei-os para assistir aos encontros por mim mantidos com um núcleo de projeto.

No dia anterior ao do “fecho das escolas” – nesse tempo, os professores ainda estavam crentes de que escolas eram prédios – eu combinara encontro com as tranquilas educadoras de uma “turma-piloto”. Aqui vos deixo registo dos diálogos, que os angustiados professores virtualmente presenciaram.

“Professor Zé, hoje conseguimos contato com vinte e seis dos nossos alunos. Amanhã, tentaremos alcançar os restantes”.

A “turma-piloto” era constituída por trinta e oito jovens, organizados em cinco “círculos de vizinhança”. De alunos tinham passado a sujeitos de aprendizagem. Eram seres intelectual e moralmente autônomos. Com as suas tutoras construíam projetos, preparavam roteiros de estudo, desenvolviam pesquisa, produziam “evidências de aprendizagem”.

No dia seguinte, as tutoras lograram interagir com trinta e seis dos trinta e oito jovens à sua guarda. Dois jovens, que moravam numa fazenda, estabeleceram contato com recurso a telefone e Internet rural. A “turma-piloto” estava completa e ao alcance de um click…

As tutoras dessa “turma-piloto” descreveram, para mim e para os professores que assistiam aos nossos remotos encontros, o modo como tinham encontrado os ausentes.

Num dos círculos de vizinhança, um jovem ajudou um colega morador do apartamento ao lado do seu e que não tinha estabelecido contato com as tutoras. Colocou a sua máscara, desinfetou as mãos, foi bater à porta do apartamento ao lado do seu e inquiriu:

“Por que não falaste com a professora Sara?”

“Porque estou sem Internet” – respondeu o colega.

Simples solução! O jovem que tinha acesso à Internet ligou o “hotspot” e informou a senha Disponibilizado um wi-fi universal, uniu o que uma parede separava. E, do outro lado da parede, o colega já podia aceder às videoconferências.

Dar-vos-ei apenas mais um exemplo dos muitos que poderia narrar e que são prova de que a solidariedade não era palavra vã inscrita no projeto daquele núcleo. Em outro círculo de vizinhança, dois jovens separados por duzentos metros de uma mesma rua se encontraram. Um deles não tinha computador. Dependia do celular de uma mãe faxineira, que só voltava para casa à noite. Um dos jovens dispunha de dois computadores e emprestou um deles, para que o colega pudesse participar nos encontros.

Os jovens não recebiam “atividades”, nem as tutoras “davam aula online”. Nos fins de tarde de confinamento, os círculos de vizinhança se reuniam em pequenas aglomerações, mantendo distância social, produzindo e partilhando conhecimento, acompanhados pelas tutoras. Uma vez por semana, também eu participava das tutorias e pude testemunhar que nem por um dia aqueles jovens deixaram de aprender.

À margem do “novo normal”, uma nova construção social de aprendizagem tomava forma concreta.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXXVII)

Algures, em 10 de fevereiro de 2041

O Jean Vigo realizou um longa-metragem, que tinha por subtítulo “Zero em Comportamento”. Nele, o jogo entre autonomia e heteronomia se traduzia em inesquecíveis cenas. Acaso assistissem ao filme, muitos professores não lamentariam comportamentos heterônomos dos seus alunos. Certamente, reconheceriam não serem profissionais autónomos, pois, como é sabido, ninguém dá o que não possui, nenhum professor transmite aquilo que não é.

A autonomia é uma utopia realizável. Se buscarmos num dicionário o termo “autonomia”, veremos que ele tem origem no grego antigo e significa “independência”. No dicionário da Língua Portuguesa, o termo é definido do seguinte modo: “faculdade de se governar por si mesmo”. Por sua vez, Emanuel Kant postulava que a vontade é autónoma por se determinar a si própria. Tendo em consideração outras vontades, presumo que a autonomia seja exercida no contexto de uma relação… com os outros.

Nos idos de vinte, seria indispensável alterar a organização das escolas, interrogar práticas educativas dominantes. Seria urgente interferir humanamente no íntimo das comunidades, questionar convicções e, fraternalmente, incomodar os acomodados.

Nos projetos que ajudei a criar, acolhíamos jovens vindos de escolas que os rejeitaram. Para que esses alunos não interiorizassem incapacidades, para que não se vissem negativamente como alunos e como más pessoas, proporcionamos-lhes experiências que lhe permitiram ganhar consciência de si como ser social-com-os-outros, serem autônomos.

Os alunos aprendiam, servindo-se de dispositivos de relação. E os professores estavam, atentos, disponíveis. Com o apoio de tutores, os jovens definiam regras e as faziam cumprir, o que lhes permitia serem dignos do exercício quotidiano de uma liberdade na responsabilidade.

A gestão autónoma de tempos e espaços em que o aluno construía o currículo subjetivo estava intimamente ligada ao exercício de cidadania. Aprendia-se cidadania no exercício da cidadania, pois buscávamos uma escola de cidadãos indispensável ao entendimento e à prática da democracia. Procurávamos, no mais ínfimo pormenor da relação com as famílias a autoregulação da aprendizagem. Acolhíamos os pais dos alunos a qualquer hora de qualquer dia, sempre que éramos solicitados. Juntando a educação escolar à familiar e social, formávamos o cidadão democrático e participativo, o cidadão sensível e solidário, o cidadão fraterno e tolerante.

Cada criança agia como participante solidário de um projeto comum. Certo dia, propuseram aos professores a constituição de uma assembleia. Por aí passava a participação das crianças na organização interna da escola. Elas sabiam que a assembleia era “uma coisa importante”, que “os alunos e os professores reuniam e discutiam juntos os problemas da escola”, que “aprendiam a respeitar regras, a se respeitarem uns aos outros e a decidir o que era melhor para todos”.

A comunidade detinha a maioria de representantes no órgão da direção da escola e os jovens acompanhavam os pais em reuniões de adultos, fazendo-se ouvir, dando lições de autodisciplina.

As crianças não entendiam a indisciplina do gritar mais alto que o próximo, como acontecia nos debates entre políticos. Na sua assembleia semanal erguiam o braço, quando pretendiam intervir. Crianças de seis, sete anos, sabiam falar e calar, propor e acatar decisões. Eram capazes de expor conflitos, com serenidade. E de, serenamente, para eles encontrar soluções.

Nesse tempo não se falava de sociocracia. Praticava-se.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXXVI)

Algures, no dia 9 de fevereiro de 2041

Estávamos em outubro de 1972. Na reunião de “preparação do ano escolar”, uma professora ia registando os nomes dos alunos da sua turma da “primeira classe do ensino primário”, enquanto me mandava registar outros, que seriam os da minha turma. Reparei que ela perguntava à chefe da secretaria quem eram as crianças, a profissão dos seus pais e onde residiam. E eu quis saber quais eram os critérios da constituição das turmas. Respondeu:

“Não há critérios nem meios critérios, caro colega. Eu sou a professora mais antiga nesta escola. E o colega acaba de chegar. Terá de aceitar essa turma, ficar com os alunos que lhe mando. Eles vêm lá do cortiço. É tudo bandidagem e eles serão como os pais. Eu não sei como trabalhar com esses pobretanas”. 

“Minha senhora, se não sabe, vá aprender!” – respondi.

A “professora mais antiga” era a mulher do diretor da escola. E o diretor era informador da polícia política. Imaginai o que aconteceu com este vosso avô…

Veio à memória esse episódio, quando aproveitava um tempo livre para reler jornais de uma época já distante. Antes que os meus olhos se detivessem em tristes notícias, dei por mim a questionar essa enigmática expressão: “tempo livre”. É evidente que se refere a um tempo liberto de canseiras. Confesso que, nos idos de vinte, o meu tempo estava cativo de uma intensa “agenda”. O vírus nos remetera para relações virtuais, e o vosso avô dispendia 8 a 10 horas diárias num internético afã.

Em 2020 e 2021, a Internet dava conta de uma avalanche de aparentes “alternativas”. Um marketing agressivo transformava o direito à educação em mercadoria e a “escola pública” virava miragem. Mas, durante a pandemia, muitos educadores haviam despertado para a necessidade de reverter uma situação, que se arrastava há séculos. Eis uma notícia desse conturbado tempo, prova de que nem todos obedeciam aos ditames de uma economia predatória, desumana:

Professores aprovam greve contra volta das escolas”. 

Por arbitrária e contraditória decisão de políticos, escolas privadas estavam liberadas para ter até 70% (por que não 71% ou 69%?!) dos alunos na sala de aula. Durante as duas primeiras semanas de aula, haveria uma “avaliação sobre o aumento de capacidade”. Isso mesmo: os alunos eram considerados números! Indiferente aos perigos das grandes aglomerações, a escola instrucionista continuava a funcionar como um redil de jovens, “para que os pais pudessem ir trabalhar”.

Sem perdermos de vista o elevado custo em vidas humanas, as notícias repescadas no meu “tempo livre” juntavam outros cálculos, que davam a conhecer os perniciosos efeitos do instrucionismo imposto por ministérios e secretarias de educação:

“Mais da metade dos alunos de 14 a 17 anos tem nota insuficiente em português e matemática. Mais da metade dos alunos do país não aprendeu praticamente nada. Mesmo no 3º ano do ensino médio, a maior parte dos jovens não sabe identificar a informação principal de uma reportagem ou fazer cálculos de porcentagem, por exemplo. 7 em cada grupo de 10 alunos estão nos níveis considerados insuficientes de aprendizagem. Mais da metade dos adultos brasileiros não chegam ao ensino médio. E o aluno abandona a escola, ou fica e não aprende nada”.

Essas eram palavras de um ministro da educação, reconhecendo que, dentro de uma sala de aula, apenas se prendia e não se aprendia. Caberia perguntar:

Por que razão o ministério insistia em amontoar alunos dentro dessas salas?

Algures, “alguém” diria não saber trabalhar de outro modo, a não ser dando aula. E eu responderia:

“Se não sabe, vá aprender!”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXXV)

Algures, em 8 de fevereiro de 2041

Por via de um grave acidente, a Isabel ficou coxeando. Uma perna maior que a outra a enchera de complexos. E com vinte anos de idade dizia “querer acabar com a vida”.

“A minha vida é uma merda, professor! Todas as minhas amigas têm namorado e nenhum homem me quer. Para que é que eu sirvo?”

Assim falava a Isabel, nos encontros marcados para esclarecimento de dúvidas. Eu acolhia os meus jovens alunos, para com eles conversar sobres os piagets da vida. O Piaget não comparecia nos encontros com a Isabel. Eram encontros pautados na queixa, encontros-queixumes. Até ao dia em que, estando eu a passar por um período de tpm intelectual, se me acabou a paciência e lhe disse:

“Isabel, já me disseste mil vezes que te queres matar. Então, sugiro que vás de ônibus até à beira-mar, neste fim de tarde. Contempla o pôr-do-sol. É belo, sempre novo e gratuito. Depois, se te quiseres mesmo matar, atira-te ao mar. Mas, antes de te matares, olha o pôr-do-sol”.

A Isabel não se matou. Soube-o, passados vinte anos, quando recebi o seguinte e-mail:

“Lembra-se de mim, professor? Sou a Isabel. Fui ver o pôr-do-sol. Vivo com um companheiro, que me ama mesmo como eu sou. Tenho dois filhos lindos. E estou a preparar a escola para eles. Me ajuda?”

A Isabel reinventou a existência, recriou sentido de vida, labutava para dar sentido à vida dos outros.

Amados netos, precisei de voltar às páginas que para vós escrevi, vai para quarenta anos:

“Como pombas com ramos de oliveira atravessados nos bicos, as aves aprendizes estabeleciam laços, lançavam alicerces das pontes que levavam dentro de si, nas faldas das margens a unir. Não importava a tumultuosa torrente que ameaçava fazer ruir as frágeis fundações. Sentiam-se quase felizes, à beira de voar sonhos novos. Medo não sentiam. E até o inesperado os fascinava, um sentimento forte e, ao mesmo tempo, leve e doce. Medo não sentiam, porque não partiam sozinhos”. 

Assim se expressavam educadores que, nos idos de vinte, ousaram criar uma rede de “turmas-piloto”. Decisões éticas, corajosas de quem saiu da queixa para a ação, cumprindo centenárias promessas, criando os primeiros protótipos de comunidade de aprendizagem, que o mundo da educação conheceu. Nas “turmas-piloto, o estar junto não era alheio a algumas utopias que povoaram discursos sobre educação. Aproximava-se de concepções «falansterianas», colhia contributos platónicos e não enjeitava referências libertárias.

Como escreveu o Ruy, são os pássaros “que faziam cantar as árvores”. Se a elas estavam ligados pela carícia das ramagens, não as possuíam. E arriscavam partir para uma “educação do futuro”, prodigamente teorizada e sempre por cumprir. Abrolharam a “educação do futuro” num presente comunitário. Os pássaros de alma sensível entendiam o exemplo da cotovia, que nidifica em terra firme, junto aos ninhos de aves irmãs, mas que também se lançava em voo na vastidão de espaços desertos.

Os educadores das “turmas-piloto” celebravam o encontro de cada quarta-feira de 2021, cumprindo o preceito de Malinowski: “O grande sinal da cultura, tal como é vivida é o fenómeno do agrupamento permanente”. O aperfeiçoamento de um coletivo se nutria da permanência numa equipe e daquilo que, para além de inadiável missão e compromisso, se fazia por prazer, brincando.

Brincar é a coisa mais séria que há na vida. O Pessoa isso nos diz, no “Guardador de Rebanhos”, contando a estória de quando conheceu o Menino Jesus. Foi isso que eu disse à Isabel, no final do último dos encontros. Que fosse ver o pôr-do-sol. E que, depois, brincasse, se recriasse…

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXXIV)

Algures, em 7 de fevereiro de 2041

Nos idos de vinte, os prédios das escolas assemelhavam-se a shoppings, a bunkers, e a Internet virara um imenso supermercado da educação. A pandemia promovera o “ensino híbrido” a produto de venda a granel.

Eram exibidos slogans sem sentido, como “curso de metodologias ativas em sala de aula”. Numa breve análise de conteúdo de propaganda enganosa, identifiquei os termos frequentemente usados e o que mais me irritava era o uso e abuso da expressão “educação integral”. Os negociantes não faziam a mínima ideia do que isso fosse, mas logravam vender “poções mágicas”. No auge de uma pandemia e no estertor do instrucionismo, mercadores e aprendizes de feiticeiro da educação lucravam com as preocupações de professores e pais, explorando a ingenuidade pedagógica da administração educacional.

A “educação integral” foi tema recorrente da história da educação, desde a antiguidade. Já Aristóteles falava em educação integral, Claparède e Freinet preconizavam uma “educação integral ao longo da vida”. As práticas inspiradas nesses autores visavam um pleno desenvolvimento pessoal e social, no exercício de uma pedagogia do lugar.

No Brasil, as experiências de educação em tempo integral foram tímidas. Do modo reducionista como foi interpretado e desenvolvido, o projeto de “escola de tempo integral” apenas vissava “ocupar tempos livres” ou “assegurar atividades em contra-turno”. O “Mais Educação” era um belo e consistente programa, mas contribuiu para o reforço da “desculpabilização curricular”.

Até ao início da década de trinta, subsistia a crença da transferência linear do conhecimento em sala de aula. Uma cultura sedimentada ao longo de quase três séculos reproduzia-se a si própria, desde a universidade ao chão das escolas, impedindo a emergência de novas práticas.

Para ser integral, a educação deveria contemplar a multidimensionalidade do Ser. E teria de acontecer, efetivamante, em tempo integral, isto é, a todo o momento, nas 24 horas de cada um dos 365 dias de cada ano. Requeria o questionamento do modelo de relação hierárquica, alteração de padrões atitudinais e comportamentais, disponibilização de equipamentos coletivos e espaços de encontro, flexibilidade na organização, respeito pela diversidade.

Acompanhei práticas integrais e integradoras, que visavam o desenvolvimento local e ocorriam em múltiplos espaços sociais, tal como Lauro previa: “Escola, no futuro, será um centro comunitário propulsor das equilibrações sincrônicas e diacrônicas do grupo social a que serve”.

As emergentes “turmas-piloto” de comunidade de aprendizagem cumpriam o desígnio do Mestre Lauro. Fundadas no conectivismo, estruturavam redes sociais, contextos de mútua aprendizagem, presencial e remota. Como enfatizaram psicólogos, o desenvolvimento humano ocorre em meio a uma rede de relações sociais, marcadas por um contexto sociocultural específico, é sempre um ato de relação.

O ser humano aprende quando tem um projeto de vida e o realiza nas dimensões cognitiva, afetiva, emocional, ética… é sempre um projeto de vida com os outros, numa escola em transformação, como Morin aconselhava: “Temos a necessidade de reformar radicalmente o modelo de ensino nas universidades e escolas. O conhecimento está desintegrado em fragmentos disjuntos no interior das disciplinas, que não estão interligadas entre si e entre as quais não existe diálogo. O modelo atual leva a negligenciar a formação integral e não prepara os alunos para mais tarde enfrentarem o imprevisto e a mudança”.

Por: José Pacheco

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