Coelho Neto, 9 de março de 2041
O João convidou-me para partilhar uma Mesa de Debate. Esse meu amigo era doutor em Sociologia da Educação, mas era diferente de outros teóricos, pois praticava a teoria no chão da escola.
O debate ainda ia a meio, quando um professáurio usou da palavra, pela terceira vez, evocando “o direito de resistir à mudança” (sic). Fê-lo na tentativa de justificar a sua inércia, numa fala de baixo estofo moral, rasa e sórdida. Quedar-me-ei por citar o amigo João, quando pôs fim às ridículas intervenções da criatura:
“Olhe, colega, ao longo de mais de vinte anos, trabalhei o conceito de “resistência à mudança”. É um conceito central da minha tese. Tenho escutado o ilustre colega com todo o respeito e com paciência. Mas, pela terceira vez, o colega usou um conceito que me é muito caro, mas inadequadamente. No seu caso, não se trata de “resistência à mudança”, mas de preguiça mental”.
Esse episódio despertou em mim a memória da Brígida. Ela era a vedeta do curso. Desenvencilhava-se a preceito de trabalhos práticos e exames. Era apontada pelos seus mestres como uma “promessa do ensino”, diziam estar “fadada para grandes voos e eu não duvidavai do idealismo que ela derramava. Mas a vida tem o condão de nos reservar amargas surpresas…
Terminado o curso, fomos cumprir o destino de educar as novas gerações. Reencontrei-a no fim dos anos setenta, nos corredores do Ministério. Conservava nos olhos resquícios da fogosidade de outrora e na boca um entusiasmo esmorecido. Após algumas palavras de circunstância, de ficar a saber que havia casado recentemente e que eu “continuava o mesmo”, quis saber novidades.
“Sabes, Zé, não sei onde ficarei colocada no próximo ano. Ando de escola para escola. Acho que não devo mudar o que quer que seja”.
Também eu andara de escola em escola, também eu passara por cortes de gado adaptadas a salas de aula, também eu tivera turmas de mais de quarenta alunos. Mas isso não dissipara o sonho.
Os nossos caminhos voltaram a cruzar-se ia a Brígida nos 36 anos e já era professora efetiva. Desabafou:
“Ó Zé, eu sei o que estarás a pensar… Mas eu tenho filhos pequenos para criar! Como se eu não soubesse! Como se eu os não tivesse! – Primeiro estão os filhos! Eu bem gostaria de entrar num projeto, mas tu não vês a vida que eu levo? Às quatro, ponho o meu Márcio na piscina. Às cinco e meia, a Marina sai do Instituto de Inglês e o meu marido, a essa hora, ainda está no escritório. Ele ainda me faz o favor de ir buscar os miúdos enquanto eu preparo o jantar. E, depois, uma casa dá muito trabalho. Eu tenho lá tempo para essas coisas! Lá para diante, quando eles forem mais crescidinhos, logo se verá.”
Voltei a encontrá-la, à entrada dos cinquenta, uma mulher madura com alguns cabelos brancos mal disfarçados. Nada lhe perguntei que a pudesse contristar. Mas ela foi direta ao assunto:
“Já sei o que me vais perguntar. É um lírico, mas eu já me deixei de fantasias. No nosso tempo, éramos novos, cheios de energia. Com o tempo a gente começa a amadurecer. O melhor é deixar tudo como está. No nosso tempo, o papel do professor era muito claro, tinha o conhecimento e transmitia-o conforme os meios que possuía. Os alunos que conseguiam acompanhar eram bem sucedidos, os que não conseguiam repetiam as vezes necessárias para aprender. E assim é que estava bem. Olha! Agora, o que eu quero é ir para a aposentadoria. Agora, o que eu quero é sossego.”
Confesso que, em nome dos velhos tempos, o único sentimento que as suas palavras me suscitaram foi uma grande ternura. Naquela Brígida descolorida, vencida, eu vi refletida uma imensa legião de desistentes.
Por: José Pacheco