Guararema, 6 de julho de 2041

Recordar-vos-eis, certamente, das cartinhas que escrevi para a Alice. Em algumas, falei-vos de um estranho pássaro conhecido por “porquenão”. Os porquenãos assim se chamavam por considerarem que “não era assim, por que não!” Eram aparências de pássaros, tais como os vampiros.

Houve uma gaivota mutante de nome Zeca, que foi perseguido por vampiros do seu tempo. Foi proibido de ensinar o voar de modo diferente. Porque, lá do fundo de escuros e inacessíveis antros, os vampiros vigiavam mestres e escolas.

Durante muitos anos, exauriram quem lhes franqueasse as portas. Nos primeiros anos deste século, os vampiros ordenavam aos porquenãos que ensinassem a voar a todos como se de um só se tratasse, como se cada pássaro não fosse um ser único e irrepetível. Batendo as asas pela noite calada, apoiavam os papagaios detratores da arte das gaivotas, em pérfidas investidas contra tudo o que pressentissem divergente. Com pés de veludo, chegaram mesmo a publicar éditos de interditar voos vários.

Naquele tempo, as gaivotas a tudo resistiram com suprema paciência, pois tinham por aliados os pais das aves aprendizes. E quero que saibais, queridos netos, que o mesmo Deus que punha a mesa para os pássaros velava pela conservação dos vampiros. O Deus das gaivotas era o mesmo dos vampiros, e sabia que, se os vampiros desaparecessem, alguma coisa se perderia e o mundo ficaria mais pobre. Mas, na sua omnisciência, também sabia que os vampiros passariam e que o sonho ficaria à espera de despertar numa outra gaivota, mais adiante.

Aconteceu que, nos idos de vinte, tão logo o João comunicou à direção do seu “agrupamento” que iria trabalhar numa turma-piloto, o senhor diretor reagiu. Acrescentei a pontuação em falta e uma palavrinha que o senhor diretor se esquecera de escrever. E a resposta do senhor diretor ficou assim:

“Não compreendo os termos deste email, que ignora as decisões dos órgãos do agrupamento e parte do pressuposto de que foi autorizado a constituir uma turma (…), tal não corresponde à verdade. Como Diretor do Agrupamento, venho, por este meio, informar que o projeto não vai acontecer no próximo ano letivo.Sem mais assunto (…)”.

Assim mesmo, peremptório, sem acrescentar fundamentação à resposta. Quais seriam as “decisões” a que se referia? Quais os “órgãos” consultados e por quê? Quais seriam os “termos”, que o senhor diretor não “compreendia”? E, se não “compreendia”, por que não “autorizava”?

Os professores signatários da comunicação – pois não se tratava de um pedido de autorização – apenas informavam o órgão de direção da sua disponibilidade para cumprir, a seu modo, o projeto educativo do agrupamento. E tiveram a bondade de, respeitosamente, esclarecer o senhor diretor:

“Em resposta ao seu e-mail, informamos que a constituição de uma turma-piloto não se trata de um projeto, mas sim do cumprimento do projeto educativo. Ou seja, a constituição de uma turma-piloto não carece de “decisões dos órgãos do agrupamento”, nem da sua autorização. Consideramos que a leitura do documento o elucidará. Desta forma, será necessário da sua parte uma fundamentação legal e científica, por escrito, que justifique a recusa da turma-piloto”.

Embora houvesse “diretores de agrupamento” sensíveis e habilitados para o exercício desse cargo, as atitudes de muitos diretores de então eram características de uma administração educacional autoritária, tipicamente prussiana. Onde escasseava a pedagogia sobrava a verborreia burocrática.

Mas, tudo se resolveu a contento de todos. Vos contarei como foi.

 

Por: José Pacheco