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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXVIII)

Inoã, 7 de dezembro de 2041

Dialogando, se refletia sobre a avaliação, que se fazia na Escola da Ponte. Retomemos as perguntas e as respostas.

“Vejo a avaliação totalmente entrelaçada com o Projeto Pedagógico, currículo, concepção de ensino-aprendizagem, objetivos, metodologia e instrumentos de avaliação. São muitos os aspectos a considerar. Gostaria de saber o vosso parecer a respeito de meu modo de ver.”

Resposta dada por um professor da Ponte:

“A avaliação é o “X da questão”, quando formativa e servida por instrumentos que, efetivamente, avaliem. Aqui, deixo registro de alguns dispositivos de avaliação por nós utilizados. Alguns foram dispensados ou reformulados, ao longo dos anos e – creio bem! – sê-lo-ão, nos próximos dez, ou vinte anos.

No Debate final de cada dia, alunos e professores registram as suas impressões sobre o trabalho realizado. Comparam-se as atividades do plano do dia com as atividades realizadas, o que se aprendeu e o que ficou por aprender. Critica-se, propõe-se, explica-se por que se fez, ou não se fez. E os alunos emitem juízos sobre a própria avaliação. Esse ato poderá ser também mais uma oportunidade de avaliação de atitudes:

“Do que eu não gosto é que, às vezes, não faço tudo e dizer isso na avaliação é um bocado chato / Na avaliação contamos o que fazemos e a avaliação faz-nos pensar / A avaliação que eu fiz neste ano foi melhor porque foi para aprender e para sabermos quem nos ajudou / Se eu não escrevesse a verdade, estava a ser injusta para os meus colegas / É importante porque nós vemos o que fizemos do plano do dia e é uma boa ideia, para ver do que somos capazes / Faz-nos ter pensamento e sermos pessoas / Acho bem que se tenha feito a assembleia, para se resolver os problemas que se passam todos os dias na escola, para não serem só os professores a resolver Foi importante ser boa aluna muito tempo, aprender os gráficos e descobrir como sou. Aprendi coisas da vida, que eu não sabia que existiam. Aprendi a corrigir os meus erros e a minha memória. Relembrei como se trabalha em liberdade e como se faz a avaliação do trabalho, como se tira as coisas da cabeça e se aprende a não copiar. Aprendi a fazer as coisas com imaginação e a encher uma folha com coisas importantes / Fizemos regras para cumprir. Eu tenho tentado cumprir, mas, às vezes, esqueço-me. Aprender é uma coisa boa. Eu tive dificuldade em algumas palavras complicadas, que eu não percebia. E não cumpri uma regra, que foi de falar baixo. Eu acho que estou a melhorar um pouco em tudo” / Do que eu gostei menos foi de ver as meninas a falar e os meninos a padecer. Acho que há alunos que põem coisas no Tribunal só por vingança. Gostei de trabalhar porque fiz mais amigos. Gostei de termos assembleia para toda a escola, embora o número de perguntas sem pensar aumentasse muito / Acho mal que o Pedro e o Armando não me deixem jogar futebol; deitar pão ao lixo, estragar o nosso jardim, roubar ou riscar as coisas dos outros, não deixarem os pequeninos andarem de balanço e não ter amigos, porque eu não tinha amigos. Acho mal que a Fatinha limpe, nós tornemos a entrar e sujemos tudo outra vez, que haja meninos que não param de falar e que falem sem levantar o dedo / Proponho que a Assembleia não recuse propostas só por preguiça, que se compre duas bolas e se ponha rede nas balizas, que os aniversários sejam mais bem arranjados, porque senão não sei por que há uma responsável. É preciso que seja mais atenta e não ande sempre aérea, que os trabalhos sejam mais devagar e que não houvesse mais zangas com os colegas, que também se ponha críticas no “acho bem”, que os professores não tenham tantas reuniões”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXVII)

São José do Imbassaí, 6 de dezembro de 2041

Nos idos de vinte, a educação continuava à deriva e era fértil em dislates. A prova de acesso à universidade era um deles. Não sendo obrigatória, a frequência da universidade era um direito. Mas, um instrumento de darwinismo social negava a muitos jovens o acesso ao “superior”.

A comunicação social era pródiga na divulgação de um triste espetáculo:

“Dois irmãos chegaram ao local do exame, mesmo “em cima da hora”, e só um pode entrar. Outro jovem chegou na moto do pai, com um minuto de atraso: “Pütz! Já era!”

Cerca de 500 estudantes faltaram à prova, em locais próximos à favela: “A prova é muito longe da minha casa. Não tenho culpa de morar no Salgueiro.”

Na televisão, uma “doutora em educação” lamentava:

“No ano passado também acompanhei o meu filho… A universidade é para todos, mas…”

Desde a sua criação, essa prova era cenário de transmissão de valores, que configuravam má educação. E, mesmo considerando os alunos como seres potencialmente desonestos, os vigilantes não anulavam possibilidades de prevaricação. Muitos jovens eram apanhados no uso do celular, durante a prova. E o aparato policial não impedia que aumentassem as tentativas de fraude.

Um professor foi acusado de vazar questões da prova para os alunos, uma semana antes da aplicação do Enem. A denúncia foi feita depois de um estudante publicar fotos de apostilas contendo as questões. Um estudante enviou uma imagem da prova, por um aplicativo de mensagens, horas antes do início do exame. Meses depois, a polícia confirmou o vazamento, mas não conseguiu identificar o autor das imagens.

Pessoas foram presas suspeitas de comandar uma organização que, através de pontos eletrônicos, enviava o gabarito da prova para os candidatos, durante a realização do exame. Cerca de quarenta estudantes já matriculados em universidades teriam conseguido as vagas valendo-se do esquema. A quadrilha chegava a cobrar trinta mil reais pelas respostas.

O INEP, responsável pela aplicação do Enem, eliminou mais de mil e quinhentos candidatos, por tentativa de fraude. Outro caso de grande repercussão aconteceu na gráfica onde as provas eram impressas. Numa das edições da prova, 740 candidatos foram eliminados por uso de equipamentos inadequados. E houve casos em que imagens das provas foram postadas em redes sociais, tiradas dentro do local do exame.

A impressão digital da coleta de dados biométricos evitava que outra pessoa fizesse a prova no lugar do inscrito. Mas, trapaças ocorriam em quantidade muito acima do que se detectava, e uma análise estatística apontava alta chance de ter ocorrido fraude em centenas de provas.

Seria preciso avaliar a avaliação. Acaso houvesse efetiva avaliação nas escolas dos idos de vinte, o vestibular universitário não determinaria as regras do jogo, a montante do sistema. Nesse tempo, a avaliação decretada era formativa, contínua, sistemática. Mas, a avaliação praticada na maioria das escolas estava nos antípodas da lei, nada tinha a ver com o preceituado.

Aplicava-se duas ou três provas por trimestre, somava-se os resultados e dividia-se a soma pelo número de provas, para se atribuir uma classificação. Confundia-se avaliação com classificação, como se a escala intervalar (de variável contínua) fosse semelhante a uma escala ordinal (de variável discreta).

Havia quem dissesse que também considerava o nível de criatividade, autonomia etc. Mas, cadê os testes, ou outros instrumentos de avaliação da criatividade e da autonomia? E a criatividade e a autonomia teriam sido “ensinadas” na sala de aula?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXVI)

Araçatiba, 5 de dezembro de 2041

Vai para uns vinte anos, o amigo Matias dizia ser preciso avaliar e rever a agregação de escolas. Em escassos parágrafos, refrescarei a mente de quem não se lembre do que foi a infeliz criação de “agrupamentos de escolas”, decretada pelo ministério da educação de Portugal. Nas palavras do amigo Matias, assim foi:

“A Agregação Forçada de Escolas transformou os estabelecimentos de ensino em “Unidades Orgânicas” ingovernáveis. As vantagens proclamadas no Diário da República e nos discursos políticos – mais articulação vertical, mais coerência organizacional, mais sequencialidade…- não passaram, na maior parte dos casos, de uma retórica de ilusão para não dizer de hipocrisia.

Os mega agrupamentos foram “soluções” tecnocráticas para um maior controlo e para a redução de custos. Mas à custa de muitos prejuízos de valor incalculável. As lideranças pedagógicas focalizadas nas aprendizagens deixam de poder existir; as práticas de proximidade, suporte e exigência tornam-se tendencialmente impossíveis.

Não se advoga um regresso ao passado. Mas, com as escolas, avaliar a eficiência e a eficácia da decisão. Nos casos em que novas identidades se forjaram e as aprendizagens dos alunos se fortaleceram, deixar estar. Nos casos em que se acentuou a balcanização e o caos ter a coragem e a sensatez de voltar atrás. Para se poder ir em frente.”

No início do século, a Escola da Ponte protagonizou a primeira experiência de agrupamentos de escolas. Aves/São Tomé de Negrelos foi a sua designação. A experiência não durou mais do que um ano letivo. Consciente do logro de “soluções” tecnocráticas para um maior controlo e para a redução de custos”, a Ponte recusou integrar quaisquer “ajuntamentos”, que viessem a ser criados. Quedou-se à margem dessa insanidade. 

No ano de 2004, a Ponte celebrou com o ministério um contrato de autonomia pioneiro. Entretanto, a lei da autonomia foi revista, abastardada e de autonomia restou pouco. Em 2012, a ministerial prepotência descumpriu o contratado, descaracterizou a autonomia conquistada, desrespeitou as decisões da comunidade, desenraizou o projeto Fazer a Ponte, quando o exilou na margem hostil de um rio, que sempre separou culturas tradicionalmente (e infelizmente) inconciliáveis.  

Nos primeiros anos deste nosso século, presenciamos a formação de mega-agrupamentos, a instalação de uma administração controladora, distante de uma educação na proximidade, servida por diretores desprovidos de autonomia e por professores remetidos para a condição de subordinados de lideranças toxicas, privados do exercício digno da profissão, reproduzindo arcaicos rituais, em ajuntamentos de escolas controlados por comissários ministeriais.

Em 2017, numa intervenção no Primeiro Congresso das Escolas, o professor Licínio asseverou que as lideranças fortes se revelavam particularmente fracas, quando os diretores dos agrupamentos se assumiam enquanto subordinados, fortemente dependentes perante a tutela. 

A autonomia da escola era confundida com a autonomia do diretor, embora na prática se tratasse do exercício de micropoderes com alguma relevância para os atores escolares, mas que se mostravam “pequenas concessões de autonomia”, nas palavras do professor Silva. Os diretores de agrupamentos de escolas se revelavam vulneráveis nas suas relações hierárquicas com a administração central, sendo escrutinados e responsabilizados por via de novos instrumentos de controlo e de “uma burocracia eletrônica cada vez mais intrusiva e autoritária”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXV)

Niterói, 4 de dezembro de 2041

Estávamos no início do século, eu e a Susana, conversando sobre a “escola de uma nota só”, que só recebia alunos que tocassem a escala de dó, porque os seus professores só entendiam quem cantasse em coro e no mesmo tom. 

Essa escola do início do nosso século não conseguia entender quem aprendera música na rua, ou não aprendesse música alguma. Felizmente, alguns professores já aprendiam a ouvir diferentes melodias e, sensatamente, elaboravam outros sons. 

O vosso avô isso escrevia, enquanto passeava com o Rubem por escolas do Nordeste, em terras onde a minha amiga Susana cuidava daqueles que, sendo considerados “especiais”, eram submetidos a uma educação excludente. Dizia a Susana que a escola não estava preparada para atender as crianças consideradas “normais” e muito menos estava para cuidar de “pessoas com sinais de diferença”:

“Queremos uma escola onde afinados e desafinados façam parte da mesma orquestra. Acreditamos que todas as crianças têm o direito de crescer em ambientes livres, juntas, independentemente de raça, credo ou capacidade intelectual. Queremos uma escola preparada para ouvir todas as músicas de variados tons. É nela que realizamos nosso exercício de cidadania, onde vivenciamos e incorporamos os valores sociais e morais, através da cooperação entre os indivíduos. Onde, de facto, a afinação da orquestra acontece. E, como já dizia o poeta, “no peito dos desafinados também bate um coração”.   

Essa sensível mensagem foi escrita por mãos trémulas de uma mulher às vésperas da morte e terminava assim: 

“Um grande beijo e toda a paz para você. Nos veremos, em janeiro”. 

“Nos veremos”, disse a Susana. Mas não mais nos voltaríamos a ver. Decorridos dois meses, esse frágil beija-flor iria deixar o nosso mundo mais pobre pela sua ausência. A Susana soube ocultar a doença que a condenava a partir demasiado cedo. Até ao fim, pôs entusiasmo em tudo o que fazia. Até ao fim, buscou a “escola policromática” a que se referiu na interpelação que me fez no decurso de uma conferência.  

No final dessa “fala” (como chamam às conferências no Brasil) que o teu avô fez sobre a escola das aves, disse-me que havia reparado no modo peculiar com que eu me despedia das pessoas: “Até logo”! 

Sublinhou que um “até logo” tanto poderia significar que nos voltaríamos a encontrar mais logo, nesse mesmo dia, ou que nos encontraríamos mais tarde… ou na eternidade.  Sentindo aproximar-se o tempo de partir, a Susana vivia intensamente aquela despedida, como se fosse a derradeira. Após um longo silêncio, de um olhar de dizer e não dizer, fitou-me longamente e repetiu a saudação: 

“Até logo!” 

Que distraído eu estava! Absorto nas coisas que consideramos importantes, ignorante do drama, respondi, natural e laconicamente: 

“Até logo!” 

Numa das cartas, que te enviei – lembras-te, Alice? – te descrevia humanos seres, que viviam como os pássaros:

“De tão belos, espalhavam em seu redor um doce perfume que os resgatava da lei da morte, uma fragrância, que ficava a pairar sobre a terra dos pássaros, muito para além do tempo de viver”.

E te falava da Susana, que partira discretamente, numa migração sem regresso. Por ter vivido em harmonia com a respiração dos pássaros, habitava a grande catedral do espírito. As notas da sua escala em arco-íris, harmoniosamente se subdividiram em meios e quartos de tom. Multiplicaram-se. Da claridade da sua alma transmigrada partiram raios de luz em todas as direções, num S.O.S. captado por corações puros de pássaros disponíveis para entoar novas melodias e interrogar as “escolas de uma nota só”.   

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXIV)

Maricá, 3 de dezembro de 2041

Nos meus noventa anos, não esqueço a primeira visita à casa onde viveu Darcy Ribeiro. A Adriana,a Cláudia, a Andréa e a Natália me levaram até lá, na manhã de um dia de finais de novembro, que jamais olvidei. Nessa casa, me deixei possuir por forte emoção. Nesse lugar teve início um projeto, que resgataria a memória do insígne Mestre. O espírito de Darcy se fez presente, num breve encontro com excelentes educadores. Darcy regressava ali,  onde se recuperava a sua memória. Ali, nele inspirados, esboçamos novos rumos para a Educação de Maricá e do Brasil.

Ali, Dacy escrevera derradeiras palvras, quando o câncer consumia o seu último sopro de vida, depois de sofrer um longo exílio, enquanto o seu país dormia distraído, “sem perceber que era subtraído em tenebrosas transações”

Nos idos de vinte, o Brasil ainda não conseguira acordar de um sono de séculos. A lei, que fizera aprovar, nos idos de noventa, continuava letra morta. 

Imaginai, queridos netos, que os autores de uma inútil reforma acreditavam que o sistema iria melhorar com “boletins e reprovações, quando um período por dia fosse dedicado ao desenvolvimento de atividades interdisciplinares, ou quando houvesse espaço para que professores trabalhassem por projetos em algumas disciplinas”. “Em algumas disciplinas”, lestes bem. Ou, ainda, quando “no último ciclo, os alunos fossem protagonistas do próprio aprendizado (sic)”. 

Entristeciamos, quando víamos que aqueles que detinham o poder denegriam a memória de Anísio, de Freire, do Lauro. Com Darcy, constituíam “o quarteto mais fecundo, fértil e injustiçado da história da educação em nosso país”

Desgovernantes lamentavam que apenas um terço dos alunos apresentassem conhecimento adequado ou avançado em português e em matemática; ou que, na oitava série, apenas um quarto estivesse em nível adequado nessas disciplinas. Despudoradamente, ressuscitavam medidas de retrocesso, que perenizavam o velho paradigma escolar, reprodutor de oprimidos e opressores, que o malogrado secretário de educação Paulo Freire tanto denunciou. 

Nos idos de vinte, medidas de manutenção do desperdício de dinheiro e de gente serviam apenas para perpetuar o analfabetismo, numa escola que já produzira mais de trinta milhões de analfabetos. Restava saber se os reformadores agiam por ignorância ou por loucura. Eram ignorantes aqueles que desprezavam a produção científica, que ignoravam a existência de práxis coerentes com a tua Lei de Bases, quem tomavam decisões desprovidas de bom senso. Também um súbito acesso de loucura poderia ter ocorrido, pois já o sábio Einstein nos avisava que “a maior insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.

Essas inúteis “medidas” eram apregoadas com pompa e circunstância, na comunicação social, como se de algo sério se tratasse. Bem dissera Darcy que a crise da educação não era uma crise, mas um projeto. E afirmara: 

Brasil, o último país a acabar com a escravidão, tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”

Milhões de jovens tinham sidos condenados à ignorância, por via de desastrosas políticas. Mas, num novembro de há vinte anos, a secretaria de educação de Maricá reassumiu as denúncias e respondeu aos apelos de Darcy, tomando em suas mãos a missão do egrégio Mestre, que dissera ter falhado em tudo o que tentara fazer. Celebrando o seu exemplo e memória, educadores maricaenses fizeram com que, depois de tenebrosos tempos, luminosos tempos chegassem. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXII)

Setúbal, 2 de dezembro de 2041

Nos idos de vinte, o insucesso escolar se naturalizara. A responsabilidade da não-aprendizagem era atribuída ao pai analfabeto, ou às mães, porque não tinham livros em casa. “Explicações” de natureza socioeconômica e cultural eram como uma cortina de fumo, que ocultava a razão maior: o insucesso dos alunos deveria ser atribuído, em primeiro lugar a razões de natureza socioinstitucional. 

O modelo escolar imposto pelo Estado à Escola deteriorara tão profundamente o sistema de relações, que deparei com algo inimaginável. Encontrei uma escola com duas salas de professores Uma delas acolhia professores efetivos (os “concursados” brasileiros); na outra, os professores “agregados”, do “quadro de zona”, os “substitutos”. 

Queridos netos, sei que acreditareis no que escrevo, porque é o vosso avô que o diz. Era inacreditável, inaceitável que discriminações acontecessem e que ministérios autistas legitimassem castas e privilégios. 

Quem convivesse com altos funcionários dos ministérios compreenderia a manutenção de tais absurdos. Ostentavam títulos como “doutor em educação”, mas eu nunca consegui saber de que “educação“ se tratava. Na ponta da língua, dissertavam sobre escolanovismo. Mas, nem sequer numa educação do século XX tinham entrado. Eram exímios no arrazoado socioconstrutivista e, com frases de belo efeito, se diziam apologistas do paradigma da comunicação e de inovadoras transições paradigmáticas, quando as suas práticas radicavam num paradigma nascido no século XVIII. 

Eu queria acreditar que esses funcionários se tivessem atualizado, quando, num evento, tive o desagradável ensejo de partilhar a mesa de debate e os escutar. Um deles, semeou o discurso de citações de citações e quatro vezes repetiu esta frase:

“Recentemente, tive o privilégio de escutar uma palestra do Doutor F…, de Harvard. Uma inovação notável. Nunca tinha escutado nada igual.”

Confesso que foi grande a minha expectativa. A novidade provinha de Harvard e fora proferida por um doutor. Deveria ser coisa importante. 

Ao cabo das quatro menções à “admirável inovação”, o alto funcionário assim rematou o seu discurso:

“O Doutor F. deixou de dar aula. Gravou todas as suas aulas e colocou-as na Internet, para que os alunos pudessem ouvi-las, quando desejassem.”

Hesitei entre o riso e um sobrolho carregado. Talvez o anúncio da “admirável inovação” fosse o fecho de uma anedota, mera blague. Em tempos, um professor de economia, também norte-americano, usara uma contundente blague: dissera que as estatísticas eram como um biquini: o que revelavam era sugestivo, mas o que escondiam era o fundamental. Também pus a hipótese de que não passasse de tentativa de sublinhar algum disparate contido no discurso. Não consegui disfarçar perplexidade, quando acompanhou a última frase do discurso com a exibição de um semblante grave e sério.

Uma salva de palmas premiou a sua intervenção. Quedo e mudo, eu fiquei observando a pedagógica turba ovacionando um doutor funcionário em êxtase. 

Talvez a ingénua turba e a notável criatura nunca tivessem chegado a tomar consciência do ridículo das suas intervenções e ovações. Isso bastou para que fossem merecedores da minha compaixão. 

Numa das minhas “palestras”, uma alta funcionária disse ter feito doutorado em inovação. Perguntei-lhe onde o tinha feito. Respondeu que o fizera numa conhecida universidade. Concluí o breve diálogo, questionando a sua afirmação:

“Minha senhora, como poderá ter feito um doutoramento em inovação numa universidade que não é inovadora?” 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXI)

Miratejo, 1 de dezembro de 2041

Andava eu entre continentes, tentando ser útil, enquanto o Brasil sofria os anos mais negros deste século. A degradação do sistema educacional fora acelerada durante um desgoverno, que os brasileiros escolheram para os desgovernar. Mas, havia mais Brasil, para além desse fenômeno. E ressurgiu.

Entretanto, eu insistia no convite dirigido aos meus amigos da UNIPROSA, para que a sua sabedoria subisse ao chão da escola. Seria aconselhável procurar compreender a origem do autoritarismo, para que ele não mais envenenasse a nobreza do exercício político. Seria preciso reconhecer que os bonsais humanos eram fruto da educação familiar, social e escolar. Estávamos no século XXI. Quando teríamos direito a uma educação deste século?

Um senador me pedira conselho. Iria para a Unesco, participar num novo projeto. Perguntei qual fosse o projeto. É o da “educação do futuro”. E eu, que andara mais de meio século escutando falar dessa mítica “educação do futuro”, sem que o futuro se fizesse presente, em que poderia ajudar? 

Por força do adiamento da “educação do futuro”, na Europa, nova onda pandêmica começara. A Áustria decretara vacinação obrigatória. A Holanda anunciava o aparecimento de nova estirpe do vírus. A União Europeia fechava as portas a voos procedentes do sul africano.

Mia Couto e José Águalusa assim reagiram:

“Cientistas sul-africanos foram capazes de detectar e sequenciar uma nova variante do SARS Cov 2. No mesmo instante, divulgaram de forma transparente a sua descoberta. Ao invés de um aplauso, o país foi castigado. Junto com a África do Sul, os países vizinhos foram igualmente penalizados. Em vez de se oferecer para trabalhar juntos com os africanos, os governos europeus viraram costas e fecharam-se sobre os seus próprios assuntos.

Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso. A penalização que agora somos sujeitos vai agravar o terrível empobrecimento que os cidadãos destes países estão sendo sujeitos devido ao isolamento imposto pela pandemia. 

Mais uma vez, a ciência ficou refém da política. Uma vez mais, o medo toldou a razão.  Uma vez mais, o egoísmo prevaleceu. A falta de solidariedade já estava presente (e aceite com naturalidade) na chocante desigualdade na distribuição das vacinas. Enquanto, a Europa discute a quarta e quinta dose, a grande maioria dos africanos não beneficiou de uma simples dose.

As implicações económicas e sociais destas recentes medidas são fáceis de imaginar. Mas a África Austral está longe, demasiado longe. Já não se trata apenas de falta de solidariedade. Trata-se de agir contra a ciência e contra a humanidade.”

Finda uma breve diáspora por terras do sul, completado o democrático período de desgoverno, regressei ao Brasil, para acompanhar projetos e ajudar no que pudesse. Embora nunca regressemos, por ser impossível estar de novo em tempos velhos, retomei o meu andarilhar, a partir de projetos suspensos. Se regressar era ilusão, os projetos eram reais e tinham aprendido a sobreviver. Pelo menos, isso a covid nos havia ensinado: a não repetir os mesmos erros.

Comigo viajaram todos aqueles que me fizeram. Eu transportava décadas de descaminhos e alguns acertos. Continuava decidido a não abdicar de princípios. Exigia coerência. Apelava à decisão ética, que tanto glosara, ao longo de longos anos. Na mente, os parcos saberes de “especialista”; no coração, uma recomendação de Krishnamurti: não exagerar na profissionalização, para que o amor não se dissipasse no ardor da profissão.

 

Por: José Pacheco

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