Vila das Aves, 4 de abril de 2042
“Onde moras?” – quis eu saber. E o Abel respondeu:
“Na Avenida 4 de abril de 1955”.
“O que aconteceu nesse dia?” – retorqui.
“Não sei” – respondeu.
“Então, sugiro que procures saber” – E lá se foi a criança, dando início a um processo de pesquisa. Não sabia, mas iria produzir aquilo que, hoje, os especialistas chamam currículo da comunidade. iria produzir conhecimento, gerar identidade social, no diálogo com outras identidades.
Hoje, completam-se sessenta e sete anos sobre um “4 de abril” em que a terra onde vivi a maior parte da minha vida foi elevada à categoria de vila.
Quando remexia o baú das velharias, à procura de notícias dessa efeméride, misturados com elas encontrei amarelados recortes de jornal com estes dizeres:
“Jovem em estado grave, após ser esfaqueada no pescoço, numa escola de Sintra. O agressor é ex-namorado da vítima”.
Era mais uma das tristes notícias, que pululavam na comunicação social desse tempo.
Quem teria ensinado tanto desamor? Talvez uma família hedonista, moralmente adoecida, decalcada no consumismo e em patriarcais atavismos. A deseducação familiar, aliada à social e à escolar engendrava conflitos e martírios. A barbárie varria a Europa de há vinte anos:
“Para matar a fome em Mariupol, come-se cães e pombos. Não há luz, comida e água para sobreviver. Milhares resistem, protegem-se das bombas, bebem gotas de água de canos de esgoto e comem tudo o que encontram, como cães e pombos, para aguentar mais um dia”.
“Apanhamos um cão vadio, que já não estava bem. Estávamos tão desesperados que o cozinhámos. Estávamos famintos e até tenho vergonha de contar isto”, diz um estudante”.
Quem teria ensinado a destruir, a matar, a martirizar? Talvez, também, tivesse sido uma escola desumanizadora, palco de violência simbólica e exclusão.
Por essa altura, um “especialista” juntava a um redutor conceito de “inclusão” a proposta de criação de “turmas de nível”. No seu entender, ressuscitando uma múmia pedagógica, lograr-se-ia “dar resposta a todos os alunos: aos super, aos medianos e aos menos bons” (sic).
Desse exercício de senso comum nenhum mal viria ao mundo, se no mundo mal não houvesse. Certo era que os artigos deste jaez, a propaganda enganosa de empresas do ramo educacional, as teses de inovadores não praticantes, as reformas reformadas e os paliativos de um modelo de escola obsoleto, contribuíam para a manutenção de um estado de conflito permanente.
Confesso a minha perplexidade. No abril de 22, havia “especialistas” que propunham aquilo que a Ponte havia rejeitado, há décadas!
O “Fazer a Ponte” talvez tivesse sido o primeiro ensaio de uma nova construção social de aprendizagem e de educação. Desde o início, soube integrar a educação escolar com a educação familiar e com a social, no respeito pelo estatuto de cada instituição, em torno de três valores: autonomia, responsabilidade, solidariedade.
Dez anos antes do início do “Fazer a Ponte”, o Mestre Anísio isto escreveu:
“Todos vós já nascestes e fostes criados numa atmosfera de dogma, de rudes certezas, de crenças apaixonadas e de desprezo pelo espírito de dúvida, de ceticismo científico, de verdade hipotética e provisória, enfim, porque o característico dos períodos sem liberdade é a luta contra a razão e o racional. Será que estamos próximos a encerrar esse ciclo de paixão e estreiteza? Há indícios de que sim. Assim que tal se der, o espírito de liberdade voltará a florescer entre os homens. A nossa tarefa, de mestres e professores, poderá vir a ser a nova tarefa de transmitir não a tradição, mas a revisão da tradição”.
Por: José Pacheco
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