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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLII)

Alcochete, 19 de abril de 2042

O Dalai Lama tinha dito que deveríamos aprender que a humanidade é uma e única família. Que, física, mental e emocionalmente, somos todos irmãos e irmãs. Nos idos de vinte, no entanto, ainda nos concentrávamos demasiado nas nossas diferenças e não naquilo que nos unia. 

Se o século XX tinha sido o século da violência, o século XXI deveria ser o do diálogo. Não o era, também, porque a educação permanecia violenta. O André lamentava:

“Um longo e terrível período de aberrações e atentados diretos contra o Direito de Aprender de milhões! Profundamente lamentável! 

Que imagens nos impedem de dormir? E quais são aquelas que nos embalam o sono?

Régis Debray abre o seu livro sobre a vida e morte da imagem com uma história curiosa: 

“Um imperador chinês pediu um dia ao pintor principal da sua corte para apagar a cascata que tinha desenhado nas paredes do palácio, porque o barulho da água o impedia de dormir”. A história fascina-nos e inquieta-nos. As perguntas tornam-se inevitáveis: Que imagens nos impedem de dormir? E quais são aquelas que nos embalam o sono? O que é que nos atrai, nos agrada, nos irrita ou nos aflige quando vemos o que vemos?

Jogo de olhares? Jogo de memórias? Gostaríamos de ver outros retratos no espelho da nossa história? Gostaríamos que ele nos devolvesse uma outra visão da escola que fomos (in)capazes de construir? Ainda conseguiremos, neste tempo em que o excesso de visões asfixia o olhar, deixar-nos instruir pelas imagens?”

Até ao agosto de vinte e dois, não me afastei completamente das lides pedagógicas (e antropogógicas). Fiz algumas intervenções públicas, conversei com autarcas, diretores, comunidades. Quando estritamente necessário, ia até ao chão da escola, desde sempre o meu habitat. Depois, fui cultivar o dom do desapego.

Não deixei de me interrogar sobre “a escola que fomos (in)capazes de construir, sobre as “imagens que nos impediam de dormir”, mas, privilegiei aquelas que “nos embalavam o sono”. 

Como, por várias vezes, dissera, entre os “sete pilares” da aprendizagem dos profissionais de desenvolvimento e envolvimento humano (aprender a conhecer, a fazer, a conviver, a ser, a desobedecer, a reaprender e a desaparecer), este último se mostrava o mais decisivo. Eu sabia ser a autonomia uma prática relacional, que não admitia a dependência no outro. E exercício da solidariedade deveria andar a par com o do desprendimento, com o dom do desapego. 

Deixava para os vindouros, uma pesada herança. Sem nunca ter desistido, tinha falhado em quase tudo. Por mais de meio século, experienciara um universo de irrealizações. Marginalmente, percorrera os caminhos das reformas tentadas pelo “sistema”. Estivera atento a estudos e diagnósticos, sempre os mesmos e marcados por um “eterno atraso”, de que nos falava o Antero, já em 1871: 

“Dessa educação, que a nós mesmos demos durante três séculos, provêm todos os nossos males presentes. As raízes do passado rebentam por todos os lados no nosso solo: rebentam sob forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. A nossa fatalidade é a nossa história”?!

Preparando a minha “retirada”, dispus de tempo para cuidar da minha precária saúde. Não constituiu surpresa a ajuda recebida. Foi o que ganhei ao cabo de décadas de militância pedagógica: muitos amigos. Como diria o Milton:

“Amigo é coisa para se guardar do lado esquerdo do peito, mesmo que o tempo e a distância digam “Não”. O que importa é ouvir a voz que vem do coração.”

Em finais de vinte e dois, saí de cena. Com uma promessa: 

“Qualquer dia, amigo, eu volto. Qualquer dia, a gente vai se encontrar.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLI)

Benedita, 18 de abril de 2042

Pois é… moléstias de idoso requeriam cuidados médicos. E, na “boleia” da Mariana, lá fui eu até à Benedita. Estávamos no abril de há vinte anos. E, como é bom de ver, conversa puxa conversa e a Ponte veio à baila. 

Já no dia anterior estivera com pais, que buscavam a educação de que os seus filhos eram merecedores. Com eles conversei sobre a história da Ponte e lhes contei algumas estórias. Agora, permiti que a Ponte fale pela voz de quem a visitou, conheceu e estudou. 

Começarei pelo Nóvoa e por um artigo, que ele publicou em 2003. Dava pelo título “A educação cívica de António Sérgio vista a partir da Escola da Ponte (ou vice-versa)” e começava com uma dedicatória: 

“Para todos os que têm feito e continuarão a fazer a Escola da Ponte”. 

Dele extraio alguns excertos.

“Não encontraremos, na Educação Cívica de António Sérgio, respostas para os problemas de hoje, pois os tempos mudam estruturas, e recolocam as questões em contextos diferentes. Mas não conseguiremos ir longe na nossa interrogação se insistirmos em seguir pelo caminho da amnésia, se abdicarmos de ir construindo um conhecimento feito da experiência e da reflexão sobre a experiência, se continuarmos a preferir o facilitismo de uma ignorância quase sempre arrogante. 

Quem repete frases feitas e tem soluções para tudo é porque não conhece nada. Com Sérgio aprendemos, pelo menos, que é grande a nossa tendência para «adormecer a própria mente com noções vagas, sentimentais e fumarentas», procurando resolver «tudo por uma inane ideia geral que tão mais facilmente se aplica a tudo quanto a coisa nenhuma»

Tem sido esta uma das pechas do debate sobre a educação: a frase feita, o gesto fácil, a solução pronta-a-servir, a banalidade transformada em eloquência em vez do estudo aturado, da reflexão sobre as experiências concretas, da análise sistemática e informada”.

António Nóvoa elaborou um resumo dos cinco os capítulos da “Educação Cívica”, começando pelo “Self-government. 

“António Sérgio vê na Inglaterra um país modelo, explicando que o seu motor é a educação. A razão do seu progresso reside numa escola que promove o desenvolvimento da iniciativa, da vontade criadora, da responsabilidade, do autodomínio, numa palavra do self-government.

Critica o modo como pela educação burocratesca nos tornámos pedintes do Estado, e lhe damos a força com que nos mata. E deixa bem-marcada a sua defesa de um sistema monitorial, no qual cada criança vai assumindo uma responsabilidade especial no quadro de processos de cooperação entre todos. Considera que as crianças devem ser chamadas a participar na direção da vida escolar: à medida que o estudante avança nas classes, o governo da escola deve entrar cada vez mais em suas próprias mãos.”

Na década de noventa, o Presidente da República o tinha dito, numa reunião da Assembleia da Escola. E Nóvoa conclui o seu artigo com estas palavras:

“Reparo, agora, que não falei da Escola da Ponte, ainda que, na verdade, não tenha falado de outra coisa. É uma escola extraordinária, justamente por não ter nada de extraordinário: é uma escola pública como as outras, num lugar como tantos outros, com alunos e professores iguais a muitos outros. E com esta matéria-prima se tem vindo a fazer, graças a um trabalho metódico, persistente e coletivo, uma escola notável. 

Júlio Cortázar escreve que uma ponte só é verdadeiramente uma ponte quando alguém a atravessa. Em 27 anos, os colegas da Escola da Ponte já fizeram muitas travessias. Pelo deserto ou pela floresta, eles sabem que não estão sozinhos nas travessias que têm pela frente.” 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCL)

Torres Vedras,17 de abril de 2042

Aqui vai mais uma cartinha. Com um beijo e votos de uma semana feita de Paz. Precisaremos de a perseverar, não esquecer os trágicos episódios de há vinte anos, que o amigo Antônio assim comentava:

“O horror, o horror” são palavras que surgem no livro “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, um impressionante relato de como o Congo foi transformado no “coração das trevas” no fim do século XIX e começo do século XX, com o genocídio de 10 milhões de congoleses, perpetrado pelo rei Leopoldo II, da Bélgica. 

O livro deveria ser leitura obrigatória nas escolas. Traz reflexões morais e filosóficas sobre as irracionalidades e as sombras dos seres humanos. Ao mesmo tempo que criamos a arte e a beleza, construímos abismos escuros, lamaçais profundos, barbáries recorrentes. 

“O horror, o horror” é o que estamos vendo, impotentes e atônitos, nessa brutal Guerra da Ucrânia, causada por um tirano sociopata, que vem praticando crimes de guerra, contra a paz e a humanidade. Cidades fantasmas, verdadeiras Guernicas, se sucedem depois dos bombardeios, com rastros de atrocidades contra as populações civis. A Unicef calcula que mais da metade das crianças ucranianas, cerca de 4,5 milhões, foram deslocadas ou estão refugiadas, junto com os seus familiares. 

Nesta semana uma professora amiga me contou que os seus pequeninos alunos de educação infantil estavam curiosos para saber sobre os motivos da Guerra e entender as palavras “massacre” e “genocídio”. Ela abriu um debate com eles e uma das crianças comentou que “escolas deveriam tornar as pessoas mais humanas” e uma outra disse que a guerra “é o horror”! 

As crianças sabem tudo. Resignados na tristeza e na perplexidade, estamos assistindo, em pleno século XXI, ao “horror, o horror”!”

O amigo Antônio era um dos educadores da “equipe de coordenação” de um processo formativo, que decorreu nos idos de vinte. Completavam a equipe a Tina Carvalho, o Leonardo Palhares, a Maria Pedro, a Cléo Lima, a Cecília Pinheiro e a Inez Costa. Entretanto, a Janaína e a Fabi já estavam em Portugal, para, num fraterno gesto intercontinental, auxiliar educadores no desenvolvimento de projetos de mudança. Uma cultura de Paz era caldeada em processos formativos, amorosamente, modelados .

Os encontros de formação, simultaneamente, presenciais e remotos atestavam o princípio que nos dizia não ser possível ensinar um professor a ensinar. Banalizavam a determinação prévia de objetivos e comprovavam a imprevisibilidade dos processos formativos.

A praxeologia de que partíamos conferia à experiência um estatuto de fonte de conhecimento,  desiquilibrava a relação de poder entre formador e formando, anulava o monopólio da teoria. O pólo teórico e o pólo prático requeriam uma fusão experiencial. A “experiência” nos traía. A “formação experiencial” nos emancipava.

A certa altura de um dos encontros de formação, quando estávamos a aprender a elaborar roteiros de estudo, um incidente crítico nos mostrou como a mudança era difícil. Um professor interveio. Dirigi-lhe uma pergunta. Respondeu com o “achismo”: 

“Eu acho que…”

Recomendei que pesquisasse a resposta. Aquela que ele tinha dado não tinha qualquer fundamento. Disse-lhe que teria uma semana para pesquisar, encontrar a resposta. Exclamou:

“Não preciso pesquisar. Eu já sei a resposta!”

Com extrema paciência, lhe explicamos que a nossa cultura profissional carecia de reelaboração. Que nós dávamos respostas sem escutar perguntas. E que dávamos respostas padronizadas, do senso comum, que nem bom senso encerravam.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXLIX)

Santarém, 16 de abril de 2042

Estas “estórias do tempo da velha escola”, diariamente partilhadas, servem de subliminares referências para uma reorganização das práticas. São singelas contribuições para a construção dos fundamentos, mais ou menos, teóricos de um projeto, convites à autoformação em núcleos de projeto. Peço aos educadores participantes de (tens) transformações que as leiam, as comentem, ou criticamente as contestem. 

Nos idos de vinte, eu fizera alguma pesquisa em torno do conceito e da prática de círculo de aprendizagem. Como nunca publiquei teoria que não fosse testada, não me atrevi a fazê-lo dessa vez. Quis testar a teoria. O que ela me dizia era o que passarei a descrever.

Não ousei extrair conclusões desse estudo. As conclusões estavam sujeitas ao envelhecimento, desatualizavam-se. Eram a negação da complexa e imprevisível continuidade dos movimentos sociais, que pretendiam enquadrar. Concluí que o inconclusivo era a única conclusão possível. E parti de algumas, poucas precárias pressuposições.

Aprendi a lidar com o incerto e com contradições, o que foi possível concretizar no tempo escasso que sobejava de sete horas diárias de trabalho direto com crianças numa escola com projeto, entremeadas de mais três ou quatro horas semanais de aprendiz de círculo de aprendizagem. Construí a práxis possível, que foi sendo inscrita, conforme António Maria Lisboa a descreveu:

“Em cada momento de encontro, conforme os meus passos se provocavam e provocavam outros passos, precisamente, não pretendia legislar, mas encontrar. E, se venho falar-vos, é porque isso é ainda uma forma de encontro”.

Em meia dúzia de anos – estou a falar de meados da década de noventa, influenciado pelo aparecimento da Internet – o vosso avô lograra reunir um punhado de “ideias feitas” e outras tantas pistas para relançamento da pesquisa. Já quase tudo fora escrito e prescrito, desde o escolanovismo. No 3.0, tratar-se-ia de retomar princípios do paradigma da aprendizagem, juntando-lhe, não o EaD, mas a AaDP. Isto é: operar um contraponto com práticas formativas instrucionistas, substituindo o “ensino à distância”, que se tornava instantâneo modismo, por uma “aprendizagem à distância e presencial”.

Compreendi que eram diversos os caminhos dos círculos que eu acompanhava. Cada círculo de aprendizagem era merecedor de uma abordagem específica. O que havia de comum entre eles era aquilo que Muszkat dissera, que uma comunidade de aprendizagem era um “território do humano”, que aumentava o sentido de pertencimento e que suscitava uma decisão de continuidade, de permanência.

Os círculos de aprendizagem criados ao longo da primeira década deste século foram oportunidades de testar aquilo que na Escola do Projeto Âncora viria a ter forma plena. 

Quando o projeto foi destruído, já professores se tinham integrado plenamente no tecido social das favelas em torno da escola, nas culturas locais. A formação acontecia em coletivos auto-organizados, passando pela identificação de problemas e pelo reconhecimento dos saberes da comunidade.

A livre escolha de parceria nos círculos de aprendizagem foi outra das conquistas. Na Ponte, ganhou expressão o questionamento do regime de colocações e a monodocência, que desembocou num dos direitos adquiridos pelo projeto. Através da celebração do contrato de autonomia, os professores se associaram livremente, em equipe, e exerceram o direito de escolha direta dos profissionais de que o projeto necessitava, através de concurso universal com regras bem definidas.

Depois…

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXLVIII)

Sermonde, 15 de abril de 2042

Não me recordo de vos ter contado um episódio exemplar entre os mais exemplares, a estória breve de uma visita a uma escola agrícola. Após uma calorosa recepção, foi-me apresentado o aluno que iria acompanhar-me na visita.

“Ó cento e vinte e quatro, vem cá!”

E lá fui com o “124” até ao estábulo das vacas leiteiras.

“Esta, aqui, é a Joana. Aquela, ali, a que está a ser ordenhada é a Flora”.

As vacas tinham nome. Os alunos eram números. E, quando perguntei como se chamava, o “124”, ele achou estranho. Nunca alguém lhe tinha perguntado o nome próprio.

Se, como dizia o povo, era preciso “chamar as vacas pelos nomes”, volvidos uns quarenta anos, quis “colocar os pontos nos is”. Todo mundo, toda a gente usava palavras e expressões inadequadas, para designar objetos e fenômenos do campo educacional. Usava-se e abusava-se, por exemplo, da expressão “comunidade de aprendizagem”. E se dizia haver algo assim, algures.

Com origem no latim “communitas”, comunidade traduzia o ato de muitos, formando uma unidade. Em 1887, Tonnies incluiu no discurso científico conceitos como o do dualismo “sociedade” (Gemeinschaft) – “comunidade” (Gessellschaft), reagindo contra a concepção mecanicista de sociedade, então predominante. Fazia corresponder ao conceito de sociedade uma vontade refletida, com origem no arbítrio dos seus membros, enquanto comunidade corresponderia a uma vontade que ele reputava como essencial ou orgânica, um tipo de associação baseada em imperativos profundos do ser.

Num primeiro ensaio de teorização, poder-se-ia considerar a comunidade de aprendizagem como uma práxis comunitária assente em um modelo educacional gerador de desenvolvimento sustentável. E que poderia assumir a forma de rede social física, ou de rede virtual. 

Nas palavras de Lauro de Oliveira Lima, eram divisões celulares da macroestrutura em microestruturas federalizadas num conjunto maior, mais complexas, que facilitavam o encontro entre pessoas, espaços-tempos de preservação da unidade da pessoa.

No abril de há vinte anos, começou a tomar forma concreta uma nova construção social de aprendizagem. Os seus princípios de ação configuram-na como uma alternativa ao modelo educacional concebido na Primeira Revolução Industrial e ainda hegemônico, nesse tempo. 

Tinha caráter inovador, dado que era inédita, útil, replicável, instituinte e sustentável. Recuperava práticas pedagógicas fundadas nos paradigmas da instrução e da aprendizagem, reconfigurando-as no contexto de práticas antropogógicas fundadas no paradigma da comunicação. Poder-se-ia configurar como comunidade de aprendizagem? A resposta não tardaria a chegar. 

No chão físico dos prédios das escolas, como no virtual, iniciativas afins surgiam. Na Internet, sites-embriões de Economia Solidária ofereciam espaço publicitário gratuito. E, em Mogi das Cruzes, eram dados os primeiros passos no sentido do “Desemparedamento da Infância”. 

Numa parceria com o Instituto Alana, o projeto “Educação Humanizada” projetava um novo olhar sobre os espaços físicos de aprendizagem, sobre territórios e espaços escolares. Encarava os bairros e as cidades como agentes educativos. Devolvia a criança à Natureza. Redefinia caminhos escolares, propiciava mobilidade ativa. 

A comunicação social dava notícia da implementação de “protótipos de comunidades de aprendizagem”: 

Alunos se organizam evitando as carteiras enfileiradas e aprendem por meio de projetos, sob a tutoria dos professores, que dialogam, não só com a escola, mas toda comunidade”. 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXLVII)

Nogueira da Maia, 14 de abril de 2042

Os professores que praticavam os quinze minutos recomendados de tutoria um-para-um, perguntavam aos seus alunos:

“O que queres fazer?” 

Os jovens retrucavam: 

“Não sei”. 

E, quando insistia na pergunta, os jovens diziam querer “fazer contas, cópias, matemática, português…”. 

Os tutores davam conta das dificuldades que os seus alunos enfrentavam. E decidiam dar aula, para se libertar e libertar os seus alunos do espartilho da sala de aula. 

Havia quem questionasse:

“Isso que fazeis está dentro da lei?”

Sugeri aos educadores que assinalassem na lei de bases os artigos que a velha escola não contemplava, que não cumpria. E que inventariassem aqueles artigos que reclamavam mudança, que sustentavam a criação de uma nova escola. 

Não pretendíamos legislar, pois tudo estava legislado a nosso favor. Apenas procurávamos encontrar modos de cumprir a lei. Já quase tudo fora discutido e prescrito em congressos e teses. E nós rejeitávamos raciocínios pré-fabricados, porque àquilo que era novo não se deveria aplicar raciocínios dedutivos. 

Tratar-se-ia de transformar insignificantes descobertas em práticas formativas, que questionassem as habituais rotinas, pois a máxima de Pascal nos avisava que, por detrás de cada verdade, seria preciso aceitar que existisse uma qualquer outra verdade, que se lhe opunha. Todo o conhecimento novo é, no momento da sua instituição, um conhecimento perturbador, polémico, causa de estranheza.

Quando instituímos a livre escolha de parceria nos círculos, partimos da ideia de projeto educativo fundado na partilha de uma mesma matriz axiológica. Recordo-me de uma conversa com o pai de uma aluna da Ponte e do que ele me disse:

“Vou tirar a minha filha desta escola. na outra, ela nada aprendeu. Aqui, aprende tudo e depressa. Mas, desde que ela para aqui veio, a minha vida é um inferno!”

“Por que diz isso? – inquiri.

“Olhe, professor! Antigamente, chegava a casa, cansado de trabalhar, ligava a televisão e bebia a minha cervejinha, vendo futebol. Agora, se eu arrisco sentar-me na poltrona, a minha filha vem logo com reclamações: “Pai, a mãe está na cozinha. Ela não é tua criada. Vai ajudá-la, enquanto eu ponho a mesa para o jantar”. Se eu saio do quarto de banho e me esqueço de desligar a luz, ela lá vem com a cantilena do costume: “Pai, olha a conta da luz, olha a Natureza!”, e por aí vai. Um inferno!

Não tirou a filha daquela escola. Reelaborou a sua cultura.

Na década de setenta, já questionávamos rituais, rotinas instaladas, o sarro da velha escola. Interpelávamos um obsoleto e injusto sistema de colocações, recusávamos a monodocência, organizávamo-nos em equipes de projeto. 

Para se compreender a importância da livre associação, bastaria ler uma notícia publicada na Revista Rumos: “Educar para a vida é em São Tomé de Abação. Muitos dos círculos de aprendizagem, que acompanhei nos idos de vinte, estiveram na base de profundas mudanças na direção e gestão das escolas. Substituíram órgãos unipessoais obedientes a “superiores hierárquicos” por conselhos e coordenações. Outros progrediram para graus superiores de autonomia, através da utilização de “guias de estudo” concebidos por Vaalgarda e Norbeck, mais tarde transformados em simples “roteiros de estudo”.

Queridos netos, toda a prática tinha subjacente, implícita ou explicitamente, uma teoria. Peço desculpa por citar autores que muito me influenciaram. Espero que estas descrições não vos aborreçam. Teço-as num linguarejar que tenta escapar ao uso de jargão científico, para que seja de fácil compreensão.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXLVI)

Lordelo, 13 de abril de 2042

O amigo Miguel nos fazia recordar o que já se sabia, mas pouso se praticava. Que a avaliação não fosse confundida com a classificação. 

“A avaliação revela, expõe sobre o tapete todas as concepções, atitudes e princípios do avaliador. Então você poderia dizer o seguinte: Diga-me como avalia e eu direi que tipo de profissional você é.

É importante que a avaliação não seja confundida com a classificação. As tarefas mais ricas têm de ser reforçadas porque uma avaliação de natureza pobre favorece um processo de ensino e aprendizagem pobre.

É necessário utilizar instrumentos variados, sensíveis para captar a complexidade e adaptados aos contextos e às pessoas. A avaliação contínua deve ser reforçada e não feita no final da aprendizagem. É muito importante que a avaliação sirva para motivar, aprender, melhorar, diálogo e animar. E não tanto para controlar, comparar e torturar.

Os alunos devem participar na avaliação e se autoavaliar. Não se pode esquecer as dimensões éticas da avaliação”.

Há uns vinte anos, a boa vontade do amigo Domingos e uns dinheiros amealhados pelo ministério foram investidos em mais uma formação destinada a mudar e melhorar a avaliação que nas escolas se fazia. Muitos anos antes, o Domingos me ensinara a fazer portfólios. Com ele mais o Vítor, a Anabela e outros especialistas, aprendi a fazer avaliação. 

Visitei escolas, quando esse projeto terminou. Constatei que a boa vontade e, sobretudo, a sabedoria do Domingos nada fizeram mudar. E que, mais uma vez, o ministério desperdiçara recursos. 

“Como esse povo fala e não faz!” – exclamou a Célia, numa amena conversa.

Se fosse feita uma avaliação da avaliação, se reconheceria que o teste padronizado continuava sendo o instrumento mais utilizado pelos formandos. 

Avisado, o amigo Sérgio, discretamente, como era seu modo de comunicar, enviava aos formadores do projeto da avaliação esta mensagem:

“O eco de muitos professores com quem eu trabalho não corresponde à visão que nos deu aqui sobre o Projeto. Li alguns textos dos autores do projeto, que se prestam a equívocos. Há um desfasamento entre o que os autores dos textos dizem e o que está a acontecer nas escolas.

Porque quem decide se o Projeto se vai realizar nas escolas, quem decide é o diretor. E, depois, tenta reunir os seus colaboradores na liderança dos agrupamentos de escolas, para convencerem os professores a aderirem à ideia do Projeto.

Como isso é o que, normalmente, acontece, provavelmente, quando chega aos professores, a intenção alterou-se. Não é? Entre os produtores do projeto e aquilo que vai acontecer nas escolas, para um projeto que se tornou obrigatório. Que se tornou uma política de educação, num sistema que é hiper burocratizado. Onde as pessoas não falam umas com as outras”.

Isso mesmo! As decisões dos diretores (não todos) contribuíam para a manutenção de uma avaliação que nada avaliava. Desde há meio século, o Rui denunciava a “escola caricatural”, dizia ser necessária “uma escola que se baseie num outro paradigma educativo, ser preciso romper com a organização do tempo, com a organização do espaço”. Que “a escola dos ouvintes e dos repetidores de informação” estava obsoleta. 

Enquanto o amigo Rui contestava a escola causadora de abandono intelectual, disfarçado sob o manto diáfano de uma falsa avaliação, o amigo Domingos continuava, como Santo António, a “pregar aos peixes”. 

Mostrou-se certa a sentença do Nunziatti de que a escola mudaria através da avaliação, ou jamais mudaria. E assim se manteve o “sistema”, até à chegada de um novo e “diferente” ministro. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXLV)

Vila Nova de Gaia, 11 de abril de 2042

Não sabia por que acontecia, mas acontecia. Subitamente, quando já as forças me iam faltando, recebia pedidos de ajuda provindos de… Portugal. Vinte anos já eram passados sobre a decisão de voluntário exílio e eis que, sem descuidar as canseiras do sul, voltava a lugares do norte, que eu bem conhecia. 

Liguei para o Albino e ele se fez presente num encontro de concretizar ideais. A última vez que estivera com esse amigo fora para reforçar a intervenção das associações de pais na vida das escolas. Vinte e cinco anos depois, voltávamos ao mesmo lugar, para ajudar um grupo de mães a participar na vida escolar dos seus filhos.

Escutei as mesmas queixas, discursos idênticos aos de trinta, aos de quarenta anos antes. Mas, algo diferia de antanho. Finalmente, professores se disponibilizavam e se aliavam às famílias que se envolviam ativamente em projetos de mudança. Só os teoricistas se mantinham alheios ao que acontecia no chão das escolas. 

Ainda que ornada de disfarces, a educação básica apresentava-se igual àquela que eu havia conhecido, vinte anos antes. Belas metáforas. sábias palavras de formadores e palestrantes não iam além de metáforas e palavras, palavras, palavras. 

Eu estranhava que um público em êxtase as escutasse, como se fosse novidade. Numa palestra da década de noventa, eu escutara um docente universitário criticando os “planos de apoio”, o modo como tratavam os alunos “especiais”. Trinta anos depois, escutei-o dizendo:

“Vemos o apoio, como se fosse um complemento, como se fosse qualquer coisa que é supletiva em relação a uma instituição que é claramente insuficiente, que não é capaz de lidar perfeitamente, completamente, com os seus problemas.

O apoio é, frequentemente, mais do mesmo., mais do mesmo (sic). Portanto, havia algumas fichas que não tinham sido feitas e que iam ser feitas no apoio. Havia fichas que tinham sido mal feitas na aula e que iam ser bem feitas. Mas a ficha era a mesma.

Eu penso que essa maneira de trabalhar o apoio não me parece uma maneira muito boa. Eu penso que o apoio é uma segunda linha, é uma segunda linha.

Quer dizer não vale apostarmos tudo no apoio. Nós vamos subindo subindo, subindo, subindo (sic), e vamos apostando num segundo nível, eu é o apoio. Eu acho isto bem errado.

Eu acho que o primeiro apoio é nas aulas. Isto é, a modificação das aulas, a alteração das aulas, um novo conceito de educação e de pedagogia, esse é que é o verdadeiro apoio”.

Confesso que, sempre que escutava algo assim, se apossava de mim um sentimento misto de indignação e tristeza. Durante mais de trinta anos, formadores e palestrantes repetiram à exaustão o discurso da mudança. Durante mais de trinta anos, colaboraram com aqueles que impediram que a mudança acontecesse. E, durante esse tempo, eles também não mudaram.

Lede mais algumas repetidas falas:

“É muto importante que nós tenhamos esta aposta no primeiro nível, que é, realmente, na modificação da pedagogia, é realmente na modificação da pedagogia. E, depois, pensarmos na emergência. A emergência, como o nome indica, tem que ser rápida e competente. 

Quantas vezes nós ouvimos nas escolas que o menino começou a ter apoio no terceiro período. No terceiro período! Ainda se vai ver, no terceiro período, se alguém… Porque, está a ver, só temos mais um mês… Desculpem! Mas é uma falta de respeito! Uma falta de respeito!”

Realmente, eram uma falta de respeito as práticas de “terceiro período”. Mas, a maior falta de respeito tinha sido a de, durante trinta anos, repetir a lenga-lenga da inclusão, legitimando práticas excludentes.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXLIV)

Vila das Aves, 10 de abril de 2042

No abril de há vinte anos, aconteceu algo inédito. Passei por Vila das Aves, sem descer do comboio. Consegui conter o ímpeto de o fazer e de subir a encosta de Negrelos, para ajudar a refazer a Ponte. Daquilo que, entretanto, se passou, vos falarei em breve.

Nesse dia, viajei de Guimarães para o Porto, ao encontro da Daniela, de uma mãe de nacionalidade brasileira e de uma mãe portuguesa. Estavam preocupadas com o futuro escolar dos seus filhos. Num encontro realizado na sede do agrupamento de escolas, no qual reencontrei o amigo Albino e outros velhos conhecidos, foi decidido ingressar no projeto de criação de protótipos de comunidade de aprendizagem. O apoio do diretor do agrupamento mobilizou professores e tranquilizou aquelas mães. 

Queridos netos, perguntastes por que passei por Vila das Aves e não fui à Ponte, e vos satisfaço a curiosidade. Não fui à Ponte, porque ela já não estava em Vila das Aves. E porque não sei por onde andaria o projeto.

Durante muitos anos, eu encaminhei milhares de educadores (professores, pais, pesquisadores) para a Escola da Ponte. Era um projeto digno de se ver, a única escola onde, efetivamente, o aluno era o centro do processo de aprendizagem. 

A partir de meados da primeira década deste século, as “impressões” e as conclusões dos estudos, que até mim chegavam por mãos amigas, provocavam inquietação. Quis crer que os olhares externos talvez fossem desatentos. Possivelmente, as entrevistas teriam sido mal conduzidas e os inquéritos mal concebidos. Quarenta anos depois, a inquietação me fez voltar à escola, que ajudara a criar. Do que vi vos falarei, em breve.

Durante essa visita, apenas identifiquei o “Fazer a Ponte” numa sessão de Assembleia a que assisti. Esse dispositivo de aprendizagem da cidadania no exercício da cidadania fora melhorado, sofrera inovação. Aquelas crianças, aqueles jovens dariam lições de democraticidade a estudantes universitários e a muitos dos políticos da época. Porém, a Lei de Bases os excluía. Vede o que prescrevia:

“A direção de cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos dos ensinos básico e secundário é assegurada por órgãos próprios, para os quais são democraticamente eleitos os representantes de professores, alunos e pessoal não docente, e apoiada por órgãos consultivos e por serviços especializados, num e noutro caso segundo modalidades a regulamentar para cada nível de ensino. A participação dos alunos nos órgãos referidos no número anterior circunscreve-se ao ensino secundário”. 

Por quê apenas aos estudantes do ensino secundário, se as crianças da Ponte revelavam muito maior maturidade democrática do que esses estudantes e até mesmo do que muitos professores universitários?

Encontrei resposta na Lei de Bases:

“A direção de todos os estabelecimentos de ensino superior orienta-se pelos princípios de democraticidade e representatividade e de participação comunitária. Os estabelecimentos de ensino superior gozam de autonomia científica, pedagógica e administrativa. As universidades gozam ainda de autonomia financeira. 

Que tipo de autonomia havia no “superior”? Por que razão se privava de autonomia financeira o “inferior”? Mistério!

A lei impunha uma menoridade cidadã ao ensino “inferior”, menoridade democrática aos seus alunos e a desqualificação profissional dos seus professores.  

Pelo abril de há vinte anos, decorriam encontros de educadores conscientes de que a sua escola funcionava à margem da lei, educadores que tinham decidido “parar de descumprir a lei”. Foi o que lhes ouvi dizer.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXLIII)

Burgães, 9 de abril de 2042

“Bom dia! Recebi, ontem, uma denúncia, que chegou à ouvidoria. Enfim! Seu aviso de que isso aconteceria não foi em vão. 

Já respondi à denúncia. Veio de forma anônima, mas eu suspeito fortemente de uma “amiga” do trabalho. Descontextualizou uma fala minha, pediu minha demissão, atacou junto o diretor etc. Enfim, vamos que vamos!”.

No meio universitário – que era origem da situação de “denúncia”, também se confirmava que, se o maior aliado de um professor era outro professor, o maior inimigo de um professor ético e coerente era o professor da escola mais próxima, ou da sala do lado. Ao mínimo gesto de mudança fundamentada correspondia a reação de um conservadorismo sem fundamento. E, numa respeitável instituição universitária dos anos vinte, a “denúncia anônima” era arma de arremesso contra quem ousava questionar, alterar o status quo e… cumprir a lei.

Tentei tranquilizar a autora dessa mensagem. 

“Não te preocupes. Tens o saber-fazer e a lei do teu lado. Mas, será preciso que essa cobarde denúncia não fique impune. Deverás exigir acareação. E, posteriormente, até mesmo um pedido indemnização por danos morais.

Se precisares da minha ajuda e da do nosso grupo jurídico, diz-me. Eles te ajudarão”.

No Portugal dos anos oitenta do século passado, a Lei de Bases do Sistema Educativo, no seu artigo 45º, estabelecia o primado dos critérios de natureza pedagógica sobre os critérios de natureza administrativa. Esse artigo, que se saiba, nunca foi revogado e, com sucessivas revisões da lei, chegou a ser o 48º 

O terceiro parágrafo do artigo 48º dessa lei estabelecia o cumprimento de um claro princípio. Considerava esse parágrafo como essencial, quase “cláusula pétrea” da lei: 

“Na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa”.

Mas, cadê o cumprimento da lei? 

Antes e depois da publicação da LBSE, numa escola do norte de Portugal, a lei se cumprira. Até então, não havia notícia de que outro “estabelecimento de educação e ensino”, tivesse celebrado um verdadeiro contrato de autonomia com o ministério. Não tinha conhecimento da existência em outras escolas de uma Direção sem diretor. Nem de um Conselho de Direção constituído por uma maioria de membros da comunidade, um órgão em que os professores eram minoria.

A generalidade das escolas continuou a ser controlada por diretores sujeitos ao “dever de obediência hierárquica”. 

Cadê a autonomia da escola? Mesmo que o diretor não concordasse com as determinações de superiores hierárquicos, ainda que argumentasse com “critérios de natureza pedagógica e científica”, era obrigado a cumprir ordens baseadas em “critérios de natureza administrativa”.

Isso mesmo, queridos netos. Hoje, quando as escolas já gozam de real autonomia, custa acreditar que, há vinte anos, a generalidade dos “estabelecimentos de educação e ensino” se encontrassem fora da lei.

A burocracia instalada na chamada “Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares” fazia prevalecer o controle de uma ensinagem assegurada por zelosos funcionários, à margem de qualquer critério de natureza científica. Para a DGEST (a sigla era, mais ou menos, essa) as escolas eram prédios sob remota administração da…  DGEST.

Naquele tempo, era raro encontrar uma escola, ou um agrupamento de escolas, onde prevalecessem critérios de natureza pedagógica e científica. Prevaleciam outros critérios, as escolas sobreviviam nas estreitas margens de uma autonomia mitigada.

 

Por: José Pacheco

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