Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXXIV)

Maricá, 2 de setembro de 2042

O prometido é devido. Eis-me aqui a explicar como uma aprendizagem remota me permitiu escapar da fagocitose do inovador. Foi na Ilha dos Tigres dos anos cinquenta que aprendi a gramática da sobrevivência. Talvez não vos recordeis, mas passeamos por lá, quando ainda ereis crianças.

“Avô, olha! Olha!” – Estendíeis os braços, para alcançar as gaivotas que voavam por perto. Os vossos olhos encheram-se de gaivotas. Os meus viram, por instantes, o cadáver do João rodeado de gaivotas. Faria dezoito anos no dia em que escolheu o rio para partir sem barco e sem regresso. As mesmas gaivotas que, fugindo a um mar revolto de Inverno, pousavam nos vagões do carvão, perto da escola onde o Mestre Agostinho aprendera as primeiras letras.

Como o avô tivera tempo de as observar! Em manhãs gélidas, expostas ao vento cortante de dezembro, as crianças de há noventa anos esperavam horas a fio, nas filas de receber duas batatas raquíticas e um rabinho de bacalhau, o “bodo de Natal dos pobres”. Eram as mesmas crianças que disputavam com as gaivotas os restos de sável que as peixeiras abandonavam no cais.

Nesse tempo, a fome não matava apenas a infância da Etiópia, nem entrava em casa sob a forma de notícia de televisão. Não havia televisão. A fome era uma convidada que se impunha na mesa de muitas crianças da beira-rio.

O olhar da criança que fui toldou-se de uma névoa cristalina, que confundi com a que vinha descendo sobre as margens. Os vossos olhos estavam prenhes da luz que vinha do rio. Não era apenas o olhar, mas todo o vosso corpo que estava envolvido na contemplação dos reflexos nas águas.

Sem que tivéssemos dado por isso, os candeeiros já tremeluziam. Deixámo-nos ficar por ali. E nem demos pelo anoitecer. Empreendemos o regresso, passando em frente à antiga escola. Desta vez, não fostes vós quem perguntou; fui eu:

“Quereis saber o que foi esta casa, antigamente?”

Enquanto vos falava do meu tempo de escola, via-me no Portugal cinzento de há noventa anos. Havia quem quisesse o povo analfabeto, alegando que aprender a ler era um ato subversivo. Os miúdos ranhosos, os “selvagens da beira-rio”, como lhe chamavam, eram um estorvo. Entregavam-lhes uma caneta de aparo, para molhar no tinteiro e fazer cópias, ditados. Davam-lhes uma lousa e uma pena, para copiar tabuadas, fazer contas, problemas. Davam-lhes reguadas nas mãos.

Quando soava a sineta, alheios aos avisos, imprecações e insultos do mestre-escola, partíamos para o cais da Ribeira, onde a vida nos esperava para ser aprendida. Ao nascer, perdíamos o aconchego e proteção do útero materno, mas o murmúrio das águas envolvia-nos numa nostalgia de um quase líquido amniótico, que lavava as feridas recebidas na luta pela sobrevivência.

Era curto o tempo de ser criança. Há muitos, muitos anos, deixei a seita dos Tigres da Vitória, desertei dos renhidos combates com os Índios da Cordoaria, deixei dezenas de amigos junto ao rio da minha juventude. E fui vida afora.

Enquanto caminhávamos, vos deleitáveis em descobertas e eu me afogava em reminiscências lúgubres. Imagino que reagísseis com um sorriso às descrições do quotidiano das crianças de há quase um século, mas não me sobrou coragem para vos contar estórias de meninos a quem a vida cedo roubou os sonhos. No tempo em que o vosso avô foi criança, sublimava-se a fealdade no cadinho de uma fantasia que reinventava os dias.

O Manoel dizia que “tudo aquilo que não é inventado é mentira”. E as crianças da minha geração inventavam, tudo faziam acontecer nas margens da vida comum, nas margens do rio. No cais da Ribeira, tudo era possível.

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXXIII)

Itaboraí, 1 de setembro de 2042

Na cartinha de ontem, dei-vos um exemplo de “ditadura da infância”, um dos muitos sinais de que o modelo educacional herdado da primeira revolução industrial estava ultrapassado, falido. Mas, nos idos de vinte ainda era esse modelo que as famílias praticavam, que a sociedade impunha e as escolas reproduziam.

Por essa altura, a situação se agravava. As criancinhas se alheavam da companhia dos pais, de mãos coladas no celular-telemóvel. Desde tenra idade, quando a criança gritava para impor o seu poder, já não se usava a costumeira chupeta. Para a fazer calar, colocavam-lhe nas mãos um laptop. E os mocinhos cresceriam como seres autocentrados, consumistas, produtos vendidos e revendidos por ocultas corporações, quase bonsais humanos suspensos do torpor de uma espécie de anestesia geral digital.

À distância de vinte anos, poderá parecer-vos inverosímil esta descrição, mas o fato era que crianças viravam zumbis, por efeito da nomofobia, o medo irracional de ficar sem celular. Viciando as crianças em videogames e redes sociais, a fobia se multiplicava em síndromes como a do “toque fantasma”, “náusea digital”, “depressão do facebook”, “hipocondria digital” e outras maleitas.

Nas escolas do velho modelo, quando o sinal tocava para o intervalo, os jovens saiam correndo da sala de aula, tiravam das suas mochilas os seus celulares, estáticos corpos aderiam às paredes dos corredores das escolas e ficavam batendo tecla, até ao sinal de entrada para a aula seguinte. 

Raros eram aqueles que aproveitavam o recreio para uma caminhada compensatória da imposta situação de sentado em sala de aula. Mais raros ainda os que aproveitavam o tempo de lazer para beneficiar de um, ainda que breve, contato com a Mãe Natureza. A obesidade mórbida, a privação de natureza e outras doenças prosperavam.

O nomofóbico sentia-se ansioso, temia estar incomunicável, quando não tinha na mão um celular. Em fases adiantadas da doença, poderia sofrer de sudação espontânea, ter taquicardia, e até sentir tremores. Esse transtorno psicológico decorrente da dependência digital provocava privação de vida real e social, desconforto emocional, depressão, transtorno-obsessivo-compulsivo, cibercondria. A dependência digital gerava cansaço, ansiedade, agitação, irritabilidade, sono durante o dia, falta de concentração, problemas de visão.

Vivíamos uma situação insustentável. Baldadas eram todas as tentativas de melhorar o modelo instrucionista. Foi, então, que o amigo José publicou um textinho que dava pelo nome de “Os Inovadores e os Guardiões da Velha Ordem”: 

“Sabe-se, desde o Príncipe de Maquiavel, que “os inovadores criam inimigos em todos os que prosperam sob a velha ordem”. Daí que seja pertinente procurar saber quem é que prospera na velha ordem educativa. 

Na velha ordem, prosperam os partidários do centralismo, mesmo quando proclamam as virtudes da descentralização e da autonomia. Prosperam, quando se julgam insubstituíveis, quando mandam aplicar urbi et orbi as regras e os procedimentos, que fazem a igualdade formal e iniquidade e a injustiça.

Prosperam as indústrias de explicações privadas que se alimentam da seletividade do sistema e aumentam a desigualdade de oportunidades.

Prosperam os que estão professores à míngua de alternativa profissional, os gestores sem carisma, os profissionais acomodados.

E todos estes realizam, a seu modo, a “fagocitose do inovador”.

O vosso avô já tinha sofrido muitas tentativas de “fagocitose”. Amanhã, vos direi como dela escapamos. 

Um beijo!

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXXII)

Rio de Janeiro, 31 de agosto de 2042

No Portugal do agosto de há vinte anos, foi-me dado presenciar uma cena comum nas grandes superfícies comerciais, em plena febre consumista de início de ano letivo. (nesse tempo, ainda havia ano letivo).

As borrachas e canetas de cheiro, arrancadas dos estojos, jaziam nas estantes, ou espalhadas pelo chão, algumas esmagadas por sucessivas cargas de pequenos bárbaros, de quem escutava veementes exigências: 

“Não quero essa porcaria! Quero uma mochila “Dream”! Ou, então, uma “Adidas!”

A mamã devolveu à estante o pacote rejeitado e danificado pela fúria do pimpolho. 

“Ó Vitinho, olha esta, aqui! É mais bonita, não achas? E é mais barata. Olha que a mamã não é rica! “

“Só quero aquela lancheira, a do Mickey! Já disse!” – ripostou o mocinho, enquanto arremessava uma Troley, que, certeira, embateu no lote e projetou as restantes lancheiras pelo espaço em redor. E já o pimpolho se atirava, a pés juntos, para cima de uma cadeira em exposição, rasgando o pano de alto a baixo.

“Deixa lá!” – diz a progenitora para um preocupado pai – “Se rasgou, rasgou! Que é que se pode fazer? Não é?”

Penduradas nas prateleiras, criancinhas remexiam os artigos, sob o olhar embevecido dos seus progenitores. Derrubavam caixas, pisavam cadernos, rasgavam embalagens… 

Tive dose dupla de Vitinho, pois reencontrei-o no restaurante do centro comercial. Pelos olhares de incómodo dos clientes, presumo que a cena já ia a meio, mas ainda fui a tempo de presenciar o final. Com os pés em cima de uma cadeira, o Vitinho ensaiou um salto acrobático. Falhou a tentativa, agarrou-se à toalha e foi um mar de vidros pelo chão. 

“Vitinho, vem já aqui! Vês o que fizeste?”

O Vitinho respondeu à querida mamã com um tiro de pistola de plástico. Mas errou a pontaria e o projétil aterrou na sopa do cliente da mesa ao lado.

“Ó Vitinho, não vês que estás a incomodar estes senhores?”

“Cala-te! Não sejas parva! – retorquiu a criancinha. 

E entrou em cena um pai assanhado:

“Vitinho, vem já para a mesa! Ouviste, Vitinho? Estás a ouvir? Tu queres que eu me levante? Queres? Queres? Olha que eu me levanto mesmo, ouviste? Já estou a perder a paciência! Já para a mesa! Estás a ouvir? Estou quase a levantar-me. Olha que, se eu me levanto, tu… Eu vou-te bater! Olha que vou mesmo! Tu não ouves? Vem sentar-te!”

Depois, com mais jeitinho, e culminando num apelo: 

“Vá, não sejas feio. Vem sentar-te, que eu mando vir um gelado daqueles que tu gostas. Olha o senhor! Cuidado! Desvia-te!”

O empregado de mesa ainda rodopiou, furtou-se à carga do Vitinho, mas a bandeja voou, e a travessa das carnes acabou em cacos espalhados no chão do restaurante. 

“Estás a ver? Não te disse? Vem sentar-te agora. Vá! Pede desculpa ao senhor. E já!”

“Cala-te! – foi a resposta que o extremoso pai recebeu. E se calou. Reagiu com um sorriso que mais pareceu um esgar de dor. Em redor, os clientes abanavam as cabeças, ciciavam repúdio. 

Sinto um travo amargo ao redigir este tipo de descrições. Faço-o por partilhar o princípio da Clarice: 

“Escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa, mas há gente que está querendo desabrochar de um modo ou de outro”. 

Na Petrópolis do agosto de há vinte anos, conversei com o seu prefeito, um ser humano admirável. Com a secretária e amiga Adriana retomei projetos interrompidos por uma gestão desastrosa. Com o amigo Conrado, com a amiga Cecília e a sua equipe, e com outros educadores decididos a mudar o rumo da educação, recuperei a esperança de que, após os desastres sofridos, os educadores petropolitanos pusessem em prática o princípio enunciado pela Clarice.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXXI)

Petrópolis, 30 de agosto de 2042 

Num agosto dos idos de vinte, a minha amiga Cecília convidou-me para com ela aprender a cuidar de crianças petropolitanas. Aceitei e fui partilhar o quotidiano de uma secretaria que recuperava ânimo, após uma tragédia anunciada, que causara mais de cem mortos, entre os quais muitas crianças. 

A Cecília participava ativamente na reparação de estragos e na reparação da dor causada pela perda de vidas humanas. O desmatamento e o assoreamento fizeram com que as águas pluviais, represadas em frágeis encostas, virassem torrentes, provocassem o caos. Seria necessário prevenir, para não voltar a lamentar. Seria necessário solidarizar, educar em comunidade.

Nós já sabíamos que a educação de uma criança começava vinte anos antes de ela nascer. Também já nos habituáramos à lengalenga da “crise das instituições”. Era bem verdade que a Família já não é o que era, que a Escola se achava num estado de decomposição acelerada, que a moral vigente era caduca e que assentava numa trágica inversão de valores. Era bem conhecida a arenga escolar do “já não é como antigamente, já não há respeito”. 

As famílias argumentavam que a culpa era da perda de autoridade dos professores. A culpa morria solteira e as crianças sobreviviam entre dois fogos, numa guerra de trincheiras: de um lado, pais “modernos”; do outro, professores que se demitiam de o ser. Iríamos passar o resto das nossas vidas a carpir desgostos, ou tentando extirpar a infelicidade em todos os lugares onde ela se acoitava?

Quando o vosso avô se iniciou nas lides de ensinar e aprender, as crianças entravam na escola silenciosas, tolhidas do medo resultante de uma educação autoritária, até mesmo violenta. No tempo em que o vosso pai se iniciou na arte de ser professor, as crianças chegavam à escola gritando como possessos, por serem frutos de ambientes de ruído. 

Não se pense que o sarro da velha escola fora eliminado da prática pedagógica. Em pleno agosto de vinte e dois, tive conhecimento de um triste episódio. A diretora proibira os alunos de ir ao banheiro/quarto de banho, durante as aulas. Uma aluna pediu, suplicou, chorou, mas a professora não autorizou, porque a diretora não admitia desobediência às regras do regimento escolar. A aluna acabou por não conter a urina. A humilhação suspendeu a aplicação do regimento.

Para o médico, o problema não é o doente mas a doença. O mesmo se aplicaria ao professor: o problema não é o aluno. Se um aluno denotava desajuste e comportamentos “disruptivos”, ou o aluno estava doente, ou estava doente a escola. Ambos padeciam de uma enfermidade que urgia diagnosticar e sanar. E isso não se conseguiria fazer com recurso a proibições e sanções. Uma ferida profunda e gangrenada não seria curada com pensos rápidos.

O que poderia explicar que uma escola só se apercebesse de que uma criança encontrada morta na rua era aluno seu, apenas quando comparou a fotografia do morto com a da caderneta do professor? Porquê essa desumana e trágica impessoalidade? 

A degradação do sistema de relações indiciava insegurança e medo, um “medo que salvava da loucura”, como diria o O’Neill. 

O medo que o “salvava” da loucura conferia ao professor o direito de expulsar alunos. Era da mesma natureza do medo que impelia alunos à indisciplina. E era da mesma natureza da infelicidade do professor.

Perante adversidades, esmagados pelas agruras de um difícil quotidiano, muitos professores desperdiçavam o seu precioso tempo na organização de turmas, na fabricação de horários, em reuniões de planejamento e outros inúteis rituais de início de ano letivo.

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXX)

Patos, 29 de agosto de 2042

Por finais de agosto, fui até ao sertão da Paraíba, a convite do amigo Delzymar, muitas horas de voo e de estrada, que valeram a pena. 

Abotoquei os olhos (o meu autocorretor sublinhou a verbo abotocar a vermelho porque é português e não fala nordestino) perante a beleza do sertão, a qualidade humana dos educadores. Gente de Patos, de Monte Horebe, de lugares de onde educadores partiram pelas três da manhã, percorrendo longas estradas, para participar no evento que o Delzymar promoveu. Cerca quinhentas pessoas se reuniram, provando a vitalidade da educação nordestina. 

Conheci uma família admirável. O Senhor Francisco, jovem de mais de setenta, criado no mato. Homem de extrema bondade, cavalgara longas distâncias, para ensinar as letras a uma comunidade. Depois, serviu na polícia militar. 

A sua esposa, os filhos e os netos eram de uma gentileza e de uma hospitalidade ímpar. Cada um deles mereceria uma referência particular aos seus talentos (o farei em futuras cartinhas). Talentos como o de um jovem, que escutei num programa de rádio. 

Até ao fim dos estudos para entrar na faculdade, sempre tinha obtido boas notas. Iria, sem entusiasmo, mas resolutamente, ser arquiteto. Durante a sua juventude abominara tudo o que fosse música erudita. Odiava ópera. Até que, no dia do seu aniversário, alguém, à revelia de pais e avós cultores da tradição da música fácil, lhe ofereceu um CD com árias cantadas pela Maria Calas. 

Confessava o jovem aos microfones da rádio que atirara o disco para um canto. Até que, um dia… O entrevistador concluiu a conversa, referindo que o jovem entrevistado havia ganho o concurso de canto Maria Tody, um dos mais prestigiados concursos do género no nosso país. 

Quis saber o entrevistador o porquê da radical transformação. Respondeu o jovem:

“A sementinha estava aqui dentro. Só foi preciso deitar água e cuidar dela.” 

Para não sufocar a sementinha numa torrente de pensamentos repensados, para não correr o risco de a fazer apodrecer precocemente, preservei-vos de presunçosas sapiências de avô. Não vos apontei caminhos, por saber que os encontraríeis. E vos achastes na Psicologia e no Design.

Termino esta cartinha satisfazendo um vosso pedido: contarei a última das estórias em que a Ana foi protagonista. Devereis estar lembrados de que os companheiros da Ana lhe pediam que continuasse a perguntar, a intervir. Até lhe disseram que poderia contar com eles, que a iriam apoiar, em qualquer situação de conflito. Foi então que a Ana decidiu ter uma conversa de mulher para mulher com a professora. 

Estudou as palavras, a postura, para quando chegasse o momento. A professora veio, corredor abaixo, na sua direção. A cada passo seu, o coração da Ana acelerava mais e mais. Talvez não estivesse preparada. Talvez fosse melhor deixar para outra altura… 

“Senhora Professora, eu queria…” 

“O quê? Sai-me da frente e já!” 

“Ó minha senhora, tem obrigação de me ouvir!”

“O quê?! Eu tenho a obrigação de quê?! Tu não passas de um fedelho insignificante. Quem é que tu achas que és? Hem? Fala! Vá, fala agora! Agora, sou eu que te mando! Vês? Não passas de um bebé! Um bebé, ouviste bem?” 

A professora entrou na sala. A Ana ficou colada à parede do corredor. Mas, recordada da promessa de apoio dos colegas, entrou na sala como um furacão. Perdida por um, perdida por mil!

“Professora, eu e todos aqui presentes…”

A professora não a deixou completar a frase: 

“Tu e quem mais? Não vejo mais ninguém a queixar-se. Vamos lá a ver… Alguém tem razões de queixa? Alguém tem?”

Ninguém se mexeu. 

Nesse dia, algo se partiu, ou morreu, dentro da Ana.

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXIX)

João Pessoa, 28 de agosto de 2042

Na década de noventa, a nossa escola tinha assumido um precário estatuto de autonomia, alcançara o primeiro lugar no concurso de projetos inovadores lançado pelo ministério da educação, suscitava curiosidade e recebia milhares de visitas. 

O Presidente da República quis conhecer a Escola da Ponte. O presidente Jorge Sampaio era um homem extraordinário, misto de sabedoria e humildade. Entrou na escola com olhos de ver. Pediu aos meios de comunicação social e à comitiva presidencial que não entrassem e permitissem que ele ficasse a sós com as crianças. Aproximou-se de um grupo de alunos envolvido no afã de aprender. Sentou-se ao lado do Daniel e perguntou:

“Posso saber o que estás a fazer?”

“Pode. Estou a preparar os cartões do Clube dos Limpinhos.”

“O que é o Clube dos Limpinhos?” – inquiriu o Presidente. 

“É quem cuida do Ambiente, quem separa os lixos, por exemplo. Você é Limpinho?”

Jorge Sampaio sorriu e respondeu:

“Sim. Acho que sou limpinho.”

“Então, vou fazer um cartão para si, também.” – respondeu o Daniel.

O encantamento do Presidente começou aí e culminou no final da visita, quando participou numa reunião de Asswmbleia. No final, visivelmente emocionado, ergueu o braço, para pedir a palavra. A Mesa da Assembleia autorizou. E o Presidente da República de Portugal, depois de agradecer, assim falou:

“Peço que mantenham o vosso braço democraticamente erguido, durante toda a vossa vida!”

Na Ponte, cada educador elaborava uma lista de valores, que considerava serem fundamentais na sua vida. Depois, com recurso a uma dinâmica chamada “árvore dos valores”, identificávam valores comuns, elaboravam uma Carta de Princípios e aprovavam Acordos de Convivência. Um deles era o “pedido de palavra”, que não era mais nem menos que um pedido de escuta.

Voltemos às estórias de uma Ana, que não foi aluna da Ponte, mas que denotava dignidade e insubmissão. Fosse para ser elogiada, ou para ser ridicularizada, o seu dedinho nunca desistia.

A Ana foi elogiada por alguns professores, por erguer o braço, pedir a palavra e estar sempre a perguntar, a tentar perceber tudo. A Ana tinha a cabecinha cheia de “porquês”. Outros professores não toleravam essa atitude. Viam nesse gesto um “abuso”. 

O gesto da Ana não era um gesto sem sentido e muito menos um “abuso”. Era um acordo de convivência, um gesto elementar na vida em grupo. Porém, se a Ana manifestava essa atitude em sala de aula, a sua vida se complicava. 

Nas aulas de História, a Ana sofria inccompreensão. O seu braço elevava-se muito, mesmo muito devagarinho, e deixava a professora irritada. A pergunta saía numa voz sumidinha. A professora apoiava-se na secretária, levantava-se, e do cimo da sua altura, em vez de responder à pergunta, punha toda a sala a rir-se da Ana. 

Ela perdoava os colegas, porque sabia que os seus risos eram forçados, como eram forçados e perdoáveis os soldados que diziam matar por amor à pátria, os políticos que desdenhavam da dor alheia e outros bonsais humanos, que a Escola da Modernidade produzia. 

“Ó Ana, és mesmo tonta! Não vês que só tu é que fazes perguntas e me fazes perder tempo? Olha para os teus companheiros! Vá, levanta-te! Vira-te! Vês alguém a fazer perguntas? Só mostras que és burra, que só tu é que não percebes!”

Quando a professora assim falava, o coração da Ana descia até à ponta do pé. Por instantes, ia-se a coragem. Afundava-se na cadeira. Ficava tudo branco. 

Fora da sala, os colegas diziam-lhe que perguntasse, perguntasse, perguntasse, porque eles também nada entendiam o que a professora dizia, acreditando ensinar em sala de aula.

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXVIII)

Guarulhos, 27 de agosto de 2042

Se a prática de um dentista não tivesse acompanhado a evolução da produção teórica no campo da Medicina, ainda hoje nos curvaríamos sobre uma bacia de barbeiro, para que o dentista nos arrancasse os dentes com uma tenaz. Se um engenheiro recusasse ler e pensar, se prescindisse do recurso à literatura científica e à experimentação, ainda hoje viajaríamos em carroças puxadas por asininos. 

Ao desenvolvimento dessas duas ciências correspondeu mudança e inovação. Hoje, a complexidade e a sofisticação de processos é tal nessas profissões, que ninguém ousa questionar o saber e a prática de um médico, ou de um engenheiro. E que dizer dos professores “dadores de aula”? 

Nos idos de vinte, era frequente lermos artigos invectivando as chamadas “novas pedagogias”, atribuindo-lhes a responsabilidade por todos os males que afectavam o sistema. Dava vontade de perguntar aos autores desses artigos: quantas escolas tinham adoptado as famigeradas “novas pedagogias”. Se alguém soubesse onde se escondia alguma dessas escolas, que fizese a bondade de me facultar o endereço. 

Também havia quem prometesse “mares e fundos” pedagógicos, milagreiros “ensinos híbridos” e míticas “metodologias ativas”. A educação mercantilizava-se, os fabricantes de paliativos prosperavam, o discurso teórico se sofisticava, inúteis congressos se multiplicavam, e a Ana me assegurou que o tempo da sua escola foi um “tempo morto”.

Entrou feliz como um “pássaro livre” e de lá saiu triste e de “asas estragadas”. A Ana continuava cativa de uma escola “porque sim”. Porque era “porque sim”, porque “pai manda e está mandado”, e pronto! 

Mais uma vez, passo a palavra à Ana, que me disse, a propósito do episódio que irei contar: “Chorei ao lembrar, porque ainda dói em mim como uma ferida.”

“Uns minutos antes da aula de História, a turma (já expliquei o que isso era) preparava-se para o que desse e viesse. E, quando a porta se abria para dar passagem à professora Joana, todos os alunos sentiam vontade de ir à casa de banho [ao banheiro brasileiro]. 

A professora era mulher de ter estações e, naquele dia, era um Inverno bem estampado no rosto: o baton desbotado e a fugir dos lábios, um rimel que não rendia homenagens à simetria, os cabelos despenteados… Em dias assim, os alunos concentravam-se em sobreviver, invisíveis, fundidos na mobília. Até as moscas paravam de voar.”

Eram dias “unifrásicos”, como lhes chamava a Ana: 

“Páginas quarenta a quarenta e cinco!”, “páginas cem a cento e três”, “páginas cento e sete a cento e vinte e três!…” 

Ao contrário dos companheiros, a Ana nunca aceitou ser mobília de sala de aula. Do fundo da coragem e da baixa estatura, o dedo indicador emergia, desafiando a lei da gravidade. Perante qualquer problema de compreensão, ele ia subindo, subindo, devagar, mas subindo… 

Numa sala de aula (nesse tempo, ainda havia salas de aula), se o aluno levantava o braço, o professor dava-lhe a palavra. Quando soava a campainha (ainda havia escolas em que os alunos andavam a toque de campainha), o mesmo aluno passava para outra sala e, perante uma dúvida, erguia o seu braço. Logo ouvia o que não queria: 

“Ó menino, acaba lá com essa palhaçada! Isso era lá na escola primária. Aqui falas quando eu te mandar! Ouviste bem?” 

Na aula seguinte, o aluno já não sabia se deveria erguer o braço, ou se o deveria manter quieto. A alternância das atitudes dos docentes instalava na psique dos alunos uma subtil espécie de esquizofrenia. 

A Ana se fez professora. E, como me pedistes que contase mais estórias da Ana, o farei em próximas cartinhas.

Um beijo!

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXVII)

Santo André, 26 de agosto de 2042

O nascimento de uma criança era motivo para celebrar a vida, num tempo de celebração da morte, em que havia quem dissesse não querer ter filhos num mundo assim. Certo é que um amigo descreveu num email o nascimento da sua primeira filha. 

Certamente, não te recordarás, querido Marcos, de teres apercebido da emoção que assaltou este avô piegas, enquanto lia a mensagem. Não despegaste os olhos dos meus olhos molhados. A solução do embaraço foi ler a mensagem de modo que tu a ouvisses. 

Como a entendeste eu não sei. Sei que a escutaste, muito atento, até ao final. Depois, voltaste para as tuas brincadeiras. Não manifestaste estranheza, talvez porque a beleza fosse tua companheira habitual. 

Não conseguia imaginar o alvoroço de alma do Amândio, perante a visão de uma criança rompendo um ventre de mãe. Nem esse sentir caberia em palavras.

Ouso transcrever algumas das escritas pelo meu amigo no email, assumindo o pecado da indiscrição, para poder partilhar o que senti: 

“Quando vi a Diotima sair da mãe, a minha primeira impressão foi a de um gesto repetido mil vezes, algo muito para além de uma vida. Senti-me um deus humilde e criador. Olhei a janela, e a cidade estava envolta num vermelho como só em Roma, e só quando morre um imperador. A Lua Cheia erguia-se dominadora entre os sinais do céu, e tudo começou.”

O meu amigo e a mãe da Diotima eram atores de teatro. Representavam como quem respirava. Eram dois seres que geraram filhos com o mesmo amor de que era feita a sua arte. Eram inteiros e puros. 

Criança que, no útero, esteve atenta à doce música de tenras palavras, criança que iria ser embalada em braços geradores de beleza, nascia abençoada. Se fazia poeta ao nascer. Conseguia “ver” o Amândio falando com Diotima, num enleado olhar calado, que tudo dizia. 

Nem só de palavras vive a poesia. Também é feita da sabedoria dos silêncios. Sobre eles se constrói, tal como a música. E como dói encontrar adultos que não sabem que só a poesia é real!

Quando, na Ponte (já cá faltava a escolinha) outras crianças-poetas (é redundante, mas é propositada a justaposição) quiseram estudar a “cor das vogais”, o trabalho culminou em contributos para um belo livro, que deu pelo nome de “As palavras são como as cerejas”:

“Esta palavra é amor / Aquela palavra é irmão / Esta palavra é espera / Aquela palavra é dor / Esta palavra é silêncio / Aquela palavra é beijo / Esta palavra é o pão / Aquela palavra é o linho / Cada palavra é um gesto / Cada gesto uma palavra / São a vida estas palavras.”

Estes versos aconteceram, como acontecia a madrugada, no quotidiano de uma escola, onde a alegria e a tristeza – matéria de que é feita a poesia – andavam a par. Quando se pediu às crianças uma definição de escola, elas escreveram: 

“A minha escola é como plantar um sonho no jardim das letras e é chorar mil palavras num rio de lágrimas.”

O impulso poético revelava-se e ganhava raízes, se o aprender a ler e a escrever não fosse repetir carreirinhas de letras, mas um exercício de canseira e paixão. A poesia consubstanciava-se na palavra, mas não só – inscrevia-se no mais íntimo de educadores como o João Condesso, a Cecília Pinheiro e tantos outros. 

Numa escola onde se respirasse poesia – lá volto a ser redundante, pois só haverá escola onde se respire poesia – a toda a hora, as crianças reinventavam a palavra: 

“Gostaria de ser astronauta, para espiar as estrelas. Ser feliz é poder acampar nas nuvens de todas as cores. Em cada cor há um sentimento. Quando fecho os olhos, as cores estão lá. Eu vejo-as. Eu sinto-as. Sinto tanta coisa cá dentro do peito. Eu acho que podia fazer um poema.”

Por: José Pacheco

Scroll to top